O inviável recurso ao desenvolvimentismo: colonialidade e setor parapetrolífero no Brasil

Por Felipe Montiel da Silva

Hoje os convido a iniciar o percurso pela norma posta. O objetivo, como anuncia o título, é refletir sobre a inviabilidade objetiva do desenvolvimentismo, isto é, forma de controle nacional sobre o processo de expansão e acumulação de capitais baseado na ruptura com a dependência e com a segregação social. A empreitada recorrerá à contextualização das relações sociais de produção que conferem sentido ao referido termo, valendo-se, ao longo do caminho e como exemplo da impossibilidade da saída desenvolvimentista, de breve análise sobre as cláusulas de conteúdo local aplicadas aos contratos administrativos de extração e produção de petróleo e gás natural.

O caso é: na medida em que toda norma constitucional é revestida de algum grau de eficácia jurídica é possível sustentar a existência de um direito ao desenvolvimento a partir da dicção do segundo objetivo fundamental da República Federativa do Brasil. No contexto, embora o desenvolvimento tenha sido alçado ao patamar de objetivo republicano (art. 3º, II, CF) é nítido que a norma constitucional não expressa o significado concreto do desenvolvimento que defende. É a aridez da definição normativa sobre o desenvolvimento, pois, que justifica a reflexão ora apresentada.

Pois bem, para compreender o sentido que informa a ideia de desenvolvimento é preciso referenciar três períodos históricos mundiais a partir da realidade brasileira, ou seja, a compreensão do significado que informa a noção de desenvolvimento não abre mão de análise que relacione o papel que as determinações mais amplas produzem nas formas mais particulares e que as próprias formas particulares produzem na reconfiguração das determinações mais amplas.

As máquinas que produzem máquinas e o aumento da demanda central por bens primários 1850-1910

A transferência de riquezas operada ao longo do colonialismo propiciou a organização político-produtiva da Europa, levando-a a alcançar a capacidade de produzir máquinas que produzem máquinas em meados da segunda metade do século XIX (BAMBIRRA, 2019, p. 63-102). O salto qualitativo na capacidade produtiva euro-ocidental reivindicou o aumento da demanda europeia por bens primários e alimentares, gerando impactos significativos nas relações sócio-produtivas brasileiras.

De saída é forçoso considerar que o aumento da demanda europeia por insumos produtivos nacionais exigiu ampliação da infraestrutura de escoamento da produção local, viabilizando o ingresso de capitais externos ociosos de valorização como fonte de estímulo ao fortalecimento do papel primário-exportador da produção brasileira. No contexto, as inversões externas constituíram pequenas indústrias vinculadas ao setor primário-exportador nacional, assumindo controle direto ou indireto de setores decisivos para o desenvolvimento sócio-produtivo brasileiro, ou seja, entre a segunda metade do século XIX e o início do século XX as bases da dependência político-econômica do Brasil aos grandes centros produtivos são realicerçadas, afastando a sociedade nacional do controle das dinâmicas sociais baseadas na acumulação de capitais (MOURA, 2020, p. 29-150).

Recessão, Guerras e substituição das importações: 1910 a 1945

As relações entre metrópoles e colônias ou, posteriormente, entre centros e periferias pressupõem funções produtivas distintas aos pólos categoriais que formam cada conjunto, indicando, ao mesmo tempo, substantiva disparidade na atribuição dos valores encarnados nos objetos trocados entre as sociedades dominantes e as sociedades subordinadas (MARINI, 2017, p. 328-333). Na qualidade de sociedade dependente e estruturada por laços coloniais o Brasil foi integrado à divisão mundial do trabalho como território de extração (SILVA, 2019, p. 17-66), ou seja, o papel preponderante da malha sócio-produtiva brasileira é providenciar insumos para valorização de organizações comerciais radicadas ou controladas pelos territórios centrais ou anteriormente metropolitanos.

Em meio ao contexto, é fundamental considerar que a organização sócio-produtiva do Brasil está articulada com a produção mundial, indicando a inconsequência das formulações que tentam captar as leis gerais de reprodução do Brasil a partir da vontade política e das boas ou más intenções das classes e frações de classe que administram os fatores sociais de produção locais ou os centros de decisão burocrático-institucionais em favor dos grandes núcleos de acumulação.

Pois bem, o ponto de partida que propicia o desenvolvimentismo está nas pequenas unidades industriais que assessoraram o setor primário-exportador brasileiro a partir da segunda metade do século XIX. Com a emergência das duas grandes guerras mundiais as principais potências ocidentais voltaram suas capacidades produtivas para o suprimento das demandas internas (RAMOS, 1995, p. 59-77), exigindo que a manutenção do consumo de bens industrializados nos circuitos centrais e importados pelas oligarquias rurais brasileiras implicasse a emergência de processo nacional de industrialização (BAMBIRRA, 2019, p. 63-102; MARINI, 2017, p. 342). Entre 1910 e 1945, portanto, as relações sócio-produtivas mundiais permitiram que as elites rurais brasileiras apoiassem ou não interferissem na sofisticação industrial do Brasil, criando as condições de possibilidade para o surgimento de uma burguesia industrial nacionalista que pretendia controlar os rumos do desenvolvimento das relações sociais de produção locais sem a interferência imediata dos capitais monopolizados que direta ou indiretamente detinham a posse das decisões político-produtivas do Brasil desde 1850 (MOURA, 2020, p. 29-150).

Enquanto elaboração teórica interessava ao desenvolvimentismo “compreender a capacidade de a sociedade nacional controlar o processo de mudança social impulsionado pela acumulação capitalista (SAMPAIO JR, 2012, p. 681)”, reconhecendo que o controle interno do processo produtivo não abria mão do combate à satisfação dos ímpetos dos capitais externos e de visceral enfrentamento à segregação social que constituía e ainda constitui o Brasil. Para obtenção do controle interno da acumulação capitalista, portanto, a crítica desenvolvimentista combatia o imperialismo, isto é, rechaçava as desestabilizações sócio-produtivas promovidas pelos Estados-nacionais centrais contra os Estados-nacionais subordinados em favor da valorização das corporações monopólicas vinculadas aos centros da acumulação de capitais.

O combate ao imperialismo promovido pela crítica desenvolvimentista estava baseado na existência de uma burguesia industrial nacionalista que deveria assumir a centralidade da dinâmica produtiva nacional, alterando o papel do Brasil na divisão mundial do trabalho por meio da sofisticação e da diversificação da indústria, do aumento da produtividade, da ruptura com as oligarquias rurais brasileiras, da reforma agrária e da consequente criação de um mercado interno para consumo das mercadorias produzidas pela indústria local. No plano teórico-abstrato, portanto, o Brasil migraria em direção ao reequilíbrio no mercado mundial, deixando para trás o papel de país primário exportador de industrialização débil que até então o caracterizava e ainda hoje o caracteriza na divisão mundial do trabalho.

Muito embora a crítica desenvolvimentista pareça ter acertado no diagnóstico da dupla determinação, ou seja, que o controle nacional do processo de acumulação de capitais não pode ser feito na presença do imperialismo e da segregação social, faltou ao desenvolvimentismo enquanto elaboração teórica observar os movimentos concretos da realidade, compreendendo, antes de qualquer coisa, a profunda fratura racial que marca a integração da nação brasileira. Em primeiríssimo lugar, é pertinente pontuar que as cepas que permitiram a emergência da burguesia industrial brasileira estão no aumento da demanda por alimentos e bens-primários havido após a segunda revolução industrial (BAMBIRRA, 2019, p. 63-102; MOURA, 2020, p. 29-150), ou seja, a burguesia industrial brasileira nasce subordinada ao sucesso das empreitadas extrativistas administradas pelas oligarquias rurais brasileiras em favor dos monopólios industriais radicados nos países centrais.

A segunda questão é: quem são as oligarquias rurais brasileiras? Na visceral análise sobre o escravismo pleno Clóvis Moura (2020, p. 29-81) identifica que as oligarquias rurais brasileiras derivam das classes senhoriais que durante o colonialismo compensavam o desequilíbrio comercial com as metrópoles a partir do aumento da inversão inicial na aquisição de corpos escravizados através do tráfico transatlântico, acumulando capitais de maneira subsidiária enquanto administravam a extração de riqueza e a transferência de valor do Brasil para os países centrais. A partir da exploração racial do trabalho as contemporâneas oligarquias rurais deram início à dinâmica de superexploração do trabalho e dos recursos naturais brasileiros ainda durante o escravismo (MARINI, 2017, p. 333-336; MOURA, 2020, p. 76-78), desinteressando-se, em plenitude e desde o colonialismo, por qualquer tipo de arranjo que as aproximem e as identifiquem com os povos e com o território que constitui o Brasil.

Em verdade, as oligarquias rurais e as classes que dela derivam possuem identificação racial com os territórios centrais, nutrindo apreço por todo tipo de realização humana que as aproximem das características simbólicas do euro-ocidente (CASTRO-GOMÉZ, 2010, p. 68-89). Eis uma das razões pelas quais o processo de manufatura local dos insumos extraídos do próprio território não apraz em plenitude as classes dominantes locais, ou seja, há, a partir de um habitus modulado pela colonialidade imediata do poder (MALOMALO, 2014, p. 185; QUIJANO, 2002, p. 13; SILVA, 2020, p. 47), certa predileção pela mercadoria “assinada” pela branquitude que compõe o território central. No contexto, a submissão do objeto extraído da periferia ao processo de industrialização realizado nos grandes centros saneia os componentes locais e racialmente subalternizados que o constituem, aproximando as oligarquias rurais brasileiras da identidade branca a partir do consumo de produtos importados do euro-ocidente. Dito de outra forma: o consumo da mercadoria produzida a partir de insumos locais e fabricada por meio da elaboração euro-ocidental defere às elites subordinadas certa pertença à identidade branca ainda que na qualidade de branquitude dominante-dominada (BAMBIRRA, 2019, p. 151).

Pois bem, diante da desconsideração das dimensões concretas de estruturação da nação brasileira a aplicação teórica do desenvolvimentismo conduziu diretamente à modernização conservadora, ou seja, o acordo de modernização nacional manteve intacta a concentração fundiária que garante a posição primário-exportadora do Brasil na divisão mundial do trabalho, conservando, ao mesmo tempo, o acoplamento que une as oligarquias rurais e a subserviente burguesia industrial em favor do aumento da exportação de bens primários desde a segunda metade do século XIX (BAMBIRRA, 2019, p. 63-102; MOURA, 2020, 82-150; RAMOS, 1995, p. 59-77). Talvez seja possível maior precisão. A prática desenvolvimentista havida entre 1910 e 1964 aumentou a participação econômica da burguesia industrial brasileira sem desafiar, contudo, a função precípua do Brasil na divisão mundial do trabalho.

A deficiência da crítica desenvolvimentista foi incapaz de compreender que a emergência de um projeto antiimperialista no Brasil passa necessariamente pela elaboração de uma simbologia nacional que fulmine as identidades raciais, isto é, para que fosse eventualmente possível controlar a indispensável sofisticação produtiva com maior distanciamento e autonomia dos grandes centros de acumulação era indispensável refundar a simbologia nacional sem recorrer às falsas representações da realidade que simulavam o combate à segregação social através da democracia racial, ou seja, forma de ocultação do apartheid sócio-racial brasileiro encontrada pelo desenvolvimentismo para dar vazão ao projeto heterogêneo de modernização. Mas, em verdade, a deficiência vai além.

Reconheçamos que o desenvolvimentismo não apenas compreendeu, mas apontou para a necessidade de combater o imperialismo e a segregação social, olvidando-se, porém, do combate direto à estruturação racial que sobrepõe o conflito capital/trabalho nas relações sociais de produção brasileiras. Embora não seja possível concluir é possível aventar que o emprego da democracia racial como ferramenta de concretização da modernização conservadora tenha derivado mais das condições sociais objetivas do que da ausência de vontade política para aplicação prática da crítica teórica promovida pelo desenvolvimentismo, ou seja, a impossibilidade concreta de estabelecer integração nacional contrária à segregação sócio-racial deriva justamente da particularidade assumida pelo capitalismo em nações dependentes de legado colonial como o Brasil, conduzindo, pois, o desenvolvimentismo ao arranjo de modernização possível, ou seja, à modernização conservadora.

A chave de leitura ora apresentada impõe a reformulação do problema inicial apresentado pelo desenvolvimentismo. Em outros termos: a questão inicial não é como a sociedade nacional pode guiar o desenvolvimento social realizado a partir da acumulação de capitais, enfrentando, no caminho, a brutal segregação social e a dependência político-econômica havida em relação aos grandes centros de acumulação. A própria hipótese que admite a possibilidade da sociedade nacional controlar os rumos do desenvolvimento das forças produtivas a partir da acumulação de capitais é insustentável diante da estruturação racial imediata e do imperialismo, isto é, o desenvolvimentismo enquanto forma de superação da dependência política e econômica do Brasil aos grandes centros não possuía e nem possui bases concretas de realização, tendo fracassado enquanto teoria e enquanto prática na conjuntura que mais o favoreceu.

Reafirmação dos pactos entre burguesias brasileiras e burguesias centrais: hoje ainda é 1964

O fim da segunda guerra mundial legou aos Estados Unidos da América substantivo acúmulo econômico, técnico e produtivo, estimulando-os a darem início à reversão do processo de substituição das importações que propiciou a modernização conservadora brasileira entre 1910 e 1964. Quando Franklin Delano Roosevelt realiza o discurso da paz duradoura [1] na cerimônia de posse do seu quarto mandato a janela que materialmente alicerçava um processo de desenvolvimento capitalista autônomo no Brasil se encerra, remodelando, a partir de arranjo abertamente conservador, as próprias premissas que fundavam a crítica teórica promovida pelo desenvolvimentismo.

No pós-1964 a ideia de desenvolvimento deixa de guardar relação com autonomia político-econômica para encontrar vínculo com as fórmulas ditadas pelos países euro-ocidentais com ênfase para os Estados Unidos da América e os seus órgãos de política externa, encontrando-se entre eles a Agência Norte Americana para Desenvolvimento Internacional (Usaid [2]). Basicamente, a superação das dificuldades sociais encontraria solução no crescimento produtivo dos Estados-nação que a partir da obediência às prescrições centrais deixariam a condição de subdesenvolvidos para serem alçados à condição de países em desenvolvimento.

Entre as receitas transmitidas pelos ianques estava a industrialização realizada através da alocação de capitais externos, garantindo para os países centrais o escoamento das maquinarias em estado de obsolescência, a retração do ímpeto de investimento periférico em ciência e aplicação tecnológica, a ampliação de mercado para as peças e formações técnicas vinculadas às maquinarias centrais e, gradualmente, a transferência de valor realizada a partir da montagem e venda de produtos industriais estrangeiros no Brasil (MARINI, 2017, p. 342-346).

Se o desenvolvimentismo errou nas prescrições e nas práticas, as reformulações que passam a gestar o novo desenvolvimentismo abrem mão das bases mais acertadas do movimento teórico-político anterior, reeditando, a partir do banimento da crítica e do combate ao imperialismo, o pacto civilizatório contido na catequização colonial. Vale à pena lembrar que para Guinés Sepúlveda os ritos de imolação realizados pelos povos originários de Abya Yala eram mais uma prova da selvageria que os acometia, exigindo que a própria cristandade os imolasse como forma indulgente de conduzi-los à civilização (DUSSEL, 2015, p. 27). Guardadas as devidas proporções tanto o que era civilizado quanto o que é desenvolvido deriva do poder simbólico concentrado nas organizações sociais dominantes, cabendo às formações sócio-produtivas subordinadas a simples adoção de esquemas que reforçam a subordinação sob a forma de violência simbólica (BOURDIEU; WACQUANT, 2002, p. 21).

A redução do desenvolvimento à figura do crescimento econômico realizado a partir de tipo muito específico de diversificação produtiva ancorada na injeção de capitais externos operou a Reforma do Estado brasileiro havida em 1995, abrindo margem para a participação estrangeira em setores infraestruturais que haviam sido protegidos pelas elaborações desenvolvimentistas postas em prática entre 1930 e 1964. É no interior da referida dinâmica que a flexibilização do monopólio estatal sobre a atividade petrolífera foi realizada, gerando, a partir de 1999, a celebração de cláusulas de conteúdo local nos contratos administrativos firmados entre o Brasil e as sociedades empresariais atuantes na exploração e extração de hidrocarbonetos.

Tais cláusulas exigem que as sociedades comerciais que atuam no setor contratem índice mínimo de bens e serviços nacionais na exploração das atividades que receberam em concessão ou partilha de produção, propiciando, em tese, a internalização de divisas e tecnologias externas que auxiliariam na sofisticação e na diversificação da produção nacional. É preciso notar que as cláusulas de conteúdo local aplicadas aos contratos administrativos de extração e produção de hidrocarbonetos visam o estímulo da indústria parapetrolífera nacional, ignorando que o novo desenvolvimentismo endossa o crescimento econômico a partir da franca participação de capitais externos em setores infraestruturais monopolizados por companhias comandadas do interior dos Estados-nacionais centrais.

No contexto, as cláusulas de conteúdo local parecem esquecer que o novo desenvolvimentismo não está alicerçado na defesa e na indução da indústria local, mas, sim, na expansão industrial interna operada por meio de capitais externos, isto é, a abertura do Brasil para alocação de capitais exógenos havida a contar de 1964 reforçou a dependência da produção local em setores de alta exigência tecnológico-produtiva, impedindo, atualmente, que o setor parapetrolífero brasileiro sequer possua condições de prestar as atividades necessárias ao setor petrolífero no índice exigido pelas cláusulas de conteúdo local. De acordo com a linha de raciocínio até então adotada a incapacidade em questão deriva do papel da produção brasileira no mercado mundial, ou seja, o Brasil é estruturalmente desestimulado a investir em vanguarda tecnológica na medida em que as classes dominantes locais historicamente se comprazem com o acúmulo subsidiário de capitais em relação às classes dominantes dos países centrais (SILVA 2020b), minando, em consórcio com a política externa dos centros do capitalismo, quaisquer planos de desenvolvimento nacional que as coloquem como elites economicamente competitivas no cenário mundial. Na medida em que estruturalmente a burguesia industrial brasileira está comprometida com as demandas de baixa complexidade da burguesia latifundiário-exportadora de bens primários, fração da burguesia que melhor representa o Brasil na produção mundial, atividades de alta complexidade tecnológica como a extração e a produção de hidrocarbonetos saem das possibilidades concretas da classe industrial brasileira, determinando, com lastro na histórica subordinação-associativa das elites nacionais às elites centrais, que as atividades vinculadas à indústria parapetrolífera devam ser substancialmente exercidas por sociedades comerciais vinculadas aos países radicados no centro do capitalismo.

Em recente artigo publicado na Revista de Direito Administrativo da Fundação Getúlio Vargas, Alexandre Aragão (2019, p. 52) aduz que as cláusulas de conteúdo local não possuem eficácia frente à inexistência de fornecedores locais ou não possuem exigibilidade diante da desproporção entre a oferta dos fornecedores brasileiros e a oferta dos fornecedores externos. Basicamente, Aragão caminha nas raias da teoria geral do direito para rechaçar juridicamente o que as relações sociais de produção concretamente já haviam rechaçado, ou seja, a aplicação de políticas voltadas à proteção da indústria nacional que, em certa medida, venham a embaraçar o ingresso irrestrito de capitais externos em setores infraestruturais da produção brasileira.

No intuído de sofisticar o argumento desenvolvido por Aragão, é preciso referir que a inexistência de fornecedores locais não ocorre por simples falta de estímulo público, mas, sim, que a própria ausência de induções públicas ao setor deriva do baixo apetite que os industriais brasileiros nutrem por atividades monopolizadas pelas elites industriais radicadas nos centros da produção mundial, isto é, a rarefação de investimentos públicos nas oil service companies nacionais deriva das funções de baixa complexidade desempenhadas pela burguesia industrial brasileira no mercado mundial. Em outros termos: a ineficácia jurídica das cláusulas de conteúdo local é mero efeito da posição do Brasil na divisão mundial do trabalho.

No segundo caso, isto é, inexigibilidade das cláusulas de conteúdo local frente ao baixo desempenho ou alto custo dos fornecedores brasileiros, é preciso realizar no mínimo duas observações: em primeiro plano é indispensável reforçar que a baixa complexidade da indústria e da aplicação tecnológica nacional não pode ser analisada sob o prisma da vocação produtiva, ou seja, a base factual concreta evidencia que a indústria brasileira foi insculpida ao redor do setor primário-exportador que ao longo do colonialismo e durante o período escravagista subsidiou a primeira e a segunda revolução industrial nos territórios centrais. Portanto, no campo da análise concreta das relações de produção é inviável supor que a indústria parapetrolífera brasileira possa possuir índice de produtividade maior ou mesmo equivalente ao da indústria parapetrolífera radicada nos países centrais, evidenciando que a debilidade do setor parapetrolífero nacional não advém da ausência de induções estatais ou da incapacidade vocacional da burguesia brasileira, mas, sim, de relações de produção atravessadas pelo colonialismo e pela colonialidade, ou seja, de relações estruturais.

Em segundo lugar, urge observar que a eventual utilização do Estado para indução do crescimento das oil service companies nacionais é belicosamente combatida a partir dos axiomas gerais de liberdade contidos na teoria geral do direito, indicando que a questão da presença ou da ausência de investimentos públicos supera a decisão político-neodesenvolvimentista sazonal. Dito de outra forma: mesmo quando eventualmente setores da burguesia industrial constituem apetite para disputar atividades produtivas monopolizadas pelas elites dos países centrais, utilizando, para tanto, o capital político que ostentam para criação de políticas estatais de indução e proteção da indústria nacional, o consórcio estabelecido entre as elites centrais e os demais setores da burguesia nacional aciona a blindagem jurídico-colonial-liberal que deslegitima a instituição de políticas estatais de proteção à indústria setorial brasileira sob o argumento da obliteração da livre iniciativa e da presença de intervenção estatal arbitrária na economia, reequilibrando, através do Direito, o arranjo de forças entre os setores agrários e industriais da burguesia que em última instância resulta na manutenção do papel subordinado do Brasil na economia mundial.

Por fim, a resistência à tímida e idílica política de desenvolvimento industrial esboçada por Aragão (2019) indica que o estímulo público-neodesenvolvimentista às burguesias nacionais atuantes no setor parapetrolífero não agrada outros setores da burguesia nacional, desagradando, ao mesmo tempo, as burguesias setoriais externas. Evidente, pois, que no interior do referido arranjo político qualquer plano de desenvolvimento nacional autônomo é fadado ao fracasso.


* Felipe Montiel da Silva é mestre em Direito a partir programa de Pós-Graduação da Universidade La Salle Canoas/RS, Graduado em Direito a partir da Faculdade de Desenvolvimento do Rio Grande do Sul. Integrante do grupo Teorias Sociais do Direito (TSD). Advogado. Contato: montiels@gmail.com

Notas:

[1] ROOSEVELT, Franklin Delano. Fourth Inaugural Address of Franklin D. Roosevelt. Disponível em: https://avalon.law.yale.edu/20th_century/froos4.asp. Acesso em: 08 set. 2020.

[2] A Agência dos Estados Unidos da América para o Desenvolvimento Internacional foi tema de estudo de Laura Gonzáles Carranza. A pesquisadora analisa as ações da USAID nos países em “desenvolvimento”, apontando, entre outras coisas, que a Agência promove a desestruturação política de governos democraticamente eleitos que contrariam os interesses político-econômicos dos Estados Unidos da América. Basicamente a USAID trabalha na lógica de desradicalização e desorganização política dos trabalhadores e explorados da terra, construindo e institucionalizando mecanismos que dissolvam reivindicações antisistêmicas em modelos de solução disponíveis na ordem. Disponível em: https://biblio.flacsoandes.edu.ec/libros/149284-opac. Acesso em 12 nov. 2020.


REFERÊNCIAS

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