A fracassada recuperação imperial dos Estados Unidos

Por Claudio Katz, via blog do autor, traduzido por João Pedro Noronha Ritter

A ideologia imperial dos Estados Unidos enfrenta as mesmas dificuldades da concepção americanista do mundo. Ambos exaltam os valores do capitalismo, priorizam o individualismo, idealizam a competição, glorificam o lucro, mistificam o risco, elogiam o enriquecimento e justificam a desigualdade.

EM BUSCA DA SUPREMACIA

A tentativa americana de recuperar o domínio mundial é a principal característica do imperialismo do século XXI. Washington pretende recuperar essa primazia diante das adversidades geradas pela globalização e pela multipolaridade. Enfrenta a ascensão de um grande rival e a insubordinação de seus antigos aliados.

A primeira potência perdeu autoridade e capacidade de intervenção. Procura neutralizar a expansão do poder mundial e a erosão sistemática de sua liderança. Nas últimas décadas, ele tentou vários caminhos sem sucesso para reverter seu declínio e continua a sondar essa ressurreição.

Todas as suas ações são baseadas no uso da força. Os Estados Unidos perderam o controle da política internacional que exibiam no passado, mas mantêm grande poder de fogo. Expande um arsenal destrutivo para forçar sua própria recomposição. Esse comportamento confirma a aterrorizante dinâmica do imperialismo como mecanismo de dominação.

Na primeira metade do século XX, as grandes potências contestaram a liderança mundial por meio da guerra. No período subsequente, os Estados Unidos exerceram essa liderança com intervenções armadas na periferia para enfrentar a ameaça socialista. Atualmente, o capitalismo ocidental enfrenta uma crise muito severa com seu timoneiro danificado.

Washington procura recuperar a supremacia em três áreas que definem o domínio imperial: a gestão dos recursos naturais, a subjugação dos povos e a neutralização dos rivais. Todas as suas operações visam capturar riquezas, reprimir rebeliões e dissuadir concorrentes.

O controle das matérias-primas é essencial para sustentar a primazia militar e garantir suprimentos que impactam o curso da economia. A contenção das revoltas populares é fundamental para estabilizar a ordem capitalista que o Pentágono assegurou por décadas. Os Estados Unidos procuram manter a força com que tradicionalmente intervieram na América Latina, África, Oriente Médio e Sul da Ásia. Ele também precisa lidar com o desafio chinês para derrotar outros rivais. Nessas batalhas são resolvidas o êxito ou naufrágio da ressurreição imperial dos EUA.

A CENTRALIDADE BÉLICA

Imperialismo é sinônimo de poder militar. Todas as potências dominaram através desta carta, sabendo que o capitalismo não sobreviveria sem exércitos. É verdade que o sistema também recorre à manipulação, engano e desinformação, mas não substitui a ameaça coercitiva do Simples preeminência ideológica Combina violência com consentimento e afirma um poder implícito (soft power) que se baseia no poder explícito (hard power).

Esses fundamentos devem ser lembrados, diante das teorias que substituem o imperialismo pela hegemonia como um conceito ordenador da geopolítica contemporâneo. Certamente os poderosos reforçaram sua pregação através da mídia. Eles desenvolvem um trabalho sistemático de desinformação e ocultação da realidade. Eles também aperfeiçoaram o uso das instituições políticas e judiciais do estado para garantir seus privilégios. Mas, na ordem internacional, a supremacia das grandes potências se resolve por meio de ameaças militares.

O sistema global opera com uma guerra comandada pelos Estados Unidos. Desde 1945, a primeira potência realizou 211 intervenções em 67 países. Atualmente mantém 250.000 soldados estacionados em 700 bases militares distribuídas em 150 nações (Chacón, 2019). Essa megaestrutura tem guiado a política americana desde o lançamento das bombas atômicas em Nagasaki e Hiroshima e a formação da OTAN como braço auxiliar do Pentágono.

Os três principais ataques da guerra fria (Coréia em 1950-1953, Vietnã em 1955-1975 e Afeganistão em 1978-1989) demonstraram o alcance mortal desse poder. Washington construiu uma estrutura internacional de instalações militares sem precedentes na história (Mancillas, 2018).

O controle das matérias-primas tem sido um fator determinante em muitas operações militares e os massacres sofridos pelo Oriente Médio para determinar quem detêm o petróleo ilustram essa centralidade. Essa disputa iniciou a sangria do Iraque e da Líbia e influenciou as incursões do Afeganistão e da Síria. As reservas de petróleo bruto são também os saques cobiçados pelos generais que organizam o assédio ao Irã e o cerco à Venezuela.

ECONOMIA ARMAMENTISTA

A política externa americana é condicionada pela rede de empresários que se enriquecem com a guerra. Eles lucram com a fabricação de explosivos que devem ser testados em algum canto do planeta. O aparato industrial-militar precisa desses conflitos. Ele prospera com gastos que aumentam não apenas em períodos de guerra intensa, mas também em fases de afrouxamento.

Grande parte da mudança tecnológica ocorre na órbita militar, sendo a ciência da computação, a aeronáutica e a atividade espacial os epicentros dessa inovação. Os grandes fornecedores do Pentágono aproveitam a proteção do orçamento do Estado para fabricar aparelhos vinte vezes mais caros que seus equivalentes civis. Operam com grandes somas, em um setor autônomo das restrições competitivas do mercado (Katz, 2003).

Este modelo de armas está se desenvolvendo em sintonia com as exportações. As 48 grandes empresas do complexo militar-industrial controlam 64% da manufatura da guerra mundial. Entre 2015 e 2019, o volume de suas vendas cresceu 5,5% em relação ao quinquênio anterior e 20% em relação ao período 2005-2009.

Em 2017, os gastos militares globais atingiram seu nível mais alto desde o fim da guerra fria (1,74 trilhão de dólares), com os Estados Unidos liderando todas as transações (Ferrari, 2020). A primeira potência concentra metade dos gastos e patrocina as cinco principais empresas dessa atividade.

A liderança tecnológica norte-americana depende dessa primazia internacional no setor bélico. O desenvolvimento do capitalismo digital na última década passou por fabricações militares prévias e é congruente com o uso de armas dentro do país. Os Estados Unidos são o principal mercado para os 12 bilhões de balas fabricadas anualmente. A Associação Nacional de Rifles oferece apoio material e cultural à contínua centralidade do Pentágono.

Mas essa centralidade da economia armamentista também gera muitas adversidades ao sistema produtivo. Requer um volume de financiamento que o país não pode prover com seus próprios recursos. O buraco está coberto por um déficit fiscal e endividamento externo que ameaçam a dominância do dólar.

Os Estados Unidos sustentaram seu andaime militar desde o pós-guerra com a grande dívida que impôs a seus parceiros. Esse fardo encontra resistência atualmente por aliados europeus e desencadeou uma crise de financiamento da OTAN. Com o desaparecimento da União Soviética, o Velho Continente se opõe à utilidade de um dispositivo que Washington usa para seus próprios interesses.

A economia militar dos Estados Unidos é baseada em um modelo de altos custos e baixa competitividade. O gendarme do capitalismo conseguiu por muito tempo forçar a subordinação de seus rivais desarmados. Mas ele não tem mais a mesma margem para administrar suas inovações onerosas na área militar. Outros países desenvolvem as mesmas inovações tecnológicas com operações mais baratas e eficientes na esfera civil.

Os gastos com a guerra têm uma influência muito contraditória no ciclo da economia norte-americana. Ele direciona o nível de atividade quando o Estado canaliza impostos para uma demanda cativa. Também absorve capital excedente que não encontra investimentos lucrativos em outros ramos. Mas em tempos adversos, aumenta o déficit fiscal e captura porções dos gastos públicos que poderiam ser usados ​​para numerosas alocações produtivas. Em tais momentos, as receitas geradas pelos gastos militares com tecnologia e exportações não compensavam a deterioração (e direcionamento desastroso) dos recursos públicos.

AS GUERRAS DE NOVO TIPO

A atual intervenção externa dos Estados Unidos recria os velhos padrões da ação imperial, mas a conspiração persiste como componente central dessas modalidades. A velha tradição da CIA em golpes contra governos progressistas reapareceu em muitos países.

Washington também assume a “guerra por procuração” em áreas prioritárias para perseguir as nações crucificadas pelo Departamento de Estado (China, Rússia, Irã, Coréia do Norte, Venezuela) (Petras, 2018).

Mas o fracasso do Iraque marcou uma mudança nas modalidades de intervenção. Esta ocupação levou a um grande fracasso devido à resistência enfrentada no país e devido à inconsistência da própria operação, este fiasco levou à substituição das invasões tradicionais por uma nova variedade de guerras híbridas (VVAA, 2019).

Nessas incursões as atuais ações militares são substituídas por um amálgama de ações não convencionais, com maior peso de forças paraestatais e uso crescente do terrorismo. Esse tipo de operação predominou nos Bálcãs, Síria, Iêmen e Líbia (Korybko, 2020).

Nestes casos, a ação imperial assume uma conotação policial de assédio, que privilegia a submissão à vitória explícita sobre os adversários. Essas intervenções ampliam as operações que a DEA aperfeiçoou em sua batalha contra o tráfico de drogas. O controle do país violado torna-se mais relevante (ou factível) do que a sua derrota e a agressão com alta tecnologia ocupam um lugar de destaque (“guerras de quinta geração”).

Em inúmeros casos, o componente terrorista dessas ações ultrapassou o curso traçado pela Casa Branca, gerando uma seqüência autônoma de ações destrutivas. Essa falta de controle foi verificada com o Taliban, inicialmente treinado no Afeganistão para perseguir um governo pró-soviético. O mesmo aconteceu com os jihadistas, formados na Arábia Saudita para erodir os governos seculares do mundo árabe.

Por meio de guerras híbridas, os Estados Unidos tentam controlar seus rivais, sem necessariamente realizar intervenções bélicas. Combina o cerco econômico e a provocação terrorista, com a promoção de conflitos étnicos, religiosos ou nacionais em países estigmatizados. Também encoraja a canalização do descontentamento da direita por meio de líderes autoritários que lucraram com as “revoluções coloridas”. Essas operações permitiram que vários países do Leste Europeu se juntassem ao cerco da OTAN contra a Rússia.

As guerras híbridas incluem campanhas de mídia mais difundidas do que a velha munição do pós-guerra contra o comunismo. Com novos inimigos (terrorismo, islamistas, narcotráfico), ameaças (Estados falidos) e perigos (expansionismo chinês), Washington desenvolve suas campanhas, por meio de uma extensa rede de fundações e ONGs. Ele também usa a guerra de informação nas redes sociais.

Os ataques imperialitas incluem uma nova variedade de recursos. Basta observar o que aconteceu na América do Sul com a operação implementada por diversos juízes e meios de comunicação contra lideranças progressistas (lawfare), para medir o alcance dessas conspirações. Porém, essas agressões causam comoções sem precedentes em inúmeros níveis.

CENÁRIOS CAÓTICOS

Durante a primeira metade do século XX, as guerras assumiram uma escala industrial, com massas de soldados exterminados pela máquina de guerra – e tantos mortos anônimos sepultados que essas guerras sem fim são rememoradas em tumbas de “soldados desconhecidos” (Traverso, 2019).

Nas últimas décadas, outra modalidade de atuação na guerra tem prevalecido com a diminuição do destacamento das tropas nos campos de batalha. Os Estados Unidos tem aperfeiçoado essa abordagem, usando bombardeios aéreos que destroem aldeias sem a presença direta dos fuzileiros navais. Este tipo de intervenção consolidou-se com o uso generalizado de drones e satélites.

Com essas modalidades, o imperialismo do século XXI destrói ou balcaniza os países que impedem o ressurgimento da dominação norte-americana. O aumento do número de membros das Nações Unidas é um indicador dessa remodelação.

A população desarmada tem sido a principal afetada pelas incursões que desfizeram a antiga distinção entre combatentes e civis. Apenas 5% das vítimas da Primeira Guerra Mundial eram civis. Este número subiu para 66% na Segunda Guerra Mundial e é em média de 80-90% nos conflitos atuais (Hobsbawm, 2007: Cap. 1).

As operações apoiadas pelo Pentágono varreram definitivamente todas as normas das Convenções de Haia (1899 e 1907), que distinguiam fardados de civis. A mesma dissolução ocorre nos conflitos externos e internos de vários estados nacionais. A fronteira entre paz e guerra se turvou, aumentando o sofrimento indescritível dos refugiados. A agência que calcula o número de pessoas sem abrigo registrou em 2019 um total de 79,5 milhões de pessoas desalojadas.

Este número monumental de transferências forçadas ilustra o grau de violência elevada. Embora os conflitos não alcancem a escala generalizada do passado, as suas consequências sobre os civis são proporcionalmente maiores.

A agressão imperialista rompe sistematicamente as fronteiras entre os países. Ela impõe uma reformulação geográfica que contrasta com as rígidas barreiras das fronteira da Guerra Fria. Essas linhas definiam campos estritos de enfrentamento e continham rigidamente as populações em suas localidades de origem.

Os atuais surtos de guerra elevam os efeitos da crescente pressão da emigração em direção aos centros do hemisfério norte. A fuga da guerra converge com a fuga em massa da devastação econômica sofrida por vários países da periferia.

O imperialismo dos EUA é a principal causa das tragédias das guerra contemporâneas. Ele fornece armas; promove tensões raciais, religiosas ou étnicas; e promove práticas terroristas que destroem os países afetados (Armanian, 2017).

O que aconteceu no mundo árabe ilustra essa sequência de eventos. Sob as ordens de sucessivos presidentes, os Estados Unidos implementaram a demolição do Afeganistão (Reagan-Carter), do Iraque (Bush) e da Síria (Obama). Esses massacres envolveram 220.000 mortes no primeiro país, 650.000 no segundo e 250.000 no terceiro. A desintegração social e o ressentimento político gerado por esses massacres, por sua vez, desencadearam ataques suicidas nos países centrais. O terror levou a respostas cegas de mais terror.

Atrocidades imperiais minaram os próprios objetivos iniciais dessas incursões. Para deslocar Gaddafi, o imperialismo pulverizou a integridade territorial da Líbia e desfez o sistema de comunicações construído no Norte da África para conter a emigração para a Europa. O país se tornou um centro de exploração de migrantes, dirigido pelas máfias que o Ocidente financiou para assumir o controle da Líbia. Diante desse caos, os antigas metrópoles coloniais não projetam mais novas fronteiras formais. Eles apenas improvisam mecanismos de contenção de refugiados (Buxton; Akkerman, 2018).

O Pentágono também implantou cerca de 50 bases escondidas na África, enquanto as empresas petrolíferas ocidentais controlam com ação armada seus campos na Nigéria, Sudão e Níger (Armanian, 2018). Esse apetite por recursos naturais é o pano de fundo das tragédias no continente negro. A ação imperial encorajou confrontos étnicos ancestrais para aumentar a gestão desses recursos.

A FRATURA INTERNA

O principal obstáculo para a recomposição imperial dos EUA é o colapso da coesão interna no país. Durante décadas, esse foi o alicerce que sustentou a intervenção da primeira potência no resto do mundo. Mas o gigante do Norte passou por uma mudança radical em conseqüência de retrocessos econômicos, polarização política, tensões raciais e sua nova composição étnico-populacional. A uniformidade cultural que alimentou o “sonho americano” desapareceu e os Estados Unidos enfrentam uma divisão interna sem precedentes.

As divisões corroeram as condições de sustentação da interferência norte-americana no exterior. As operações militares não têm o respaldo do passado e foram afetadas pelo fim do recrutamento obrigatório. Washington não embarca mais em suas incursões com um exército de alistados involuntariamente, nem justifica suas ações com mensagens de fidelidade cega à bandeira. Para realizar operações cirúrgicas, optou pelo uso de armamentos mais limitados e precisos. Prioriza o impacto na mídia e a contenção de baixas em suas próprias fileiras.

A privatização da guerra sintetiza essas tendências. O uso de mercenários e milícias contratadas para negociar o preço de cada massacre se generalizou. Esta forma de beligerância sem o compromisso da população explica a perda de interesse geral nas ações imperialistas. Guerras sem recrutas exigem gastos maiores, mas atenuam a resistência interna. Elas inclusive evitam a percepção das falhas em territórios distantes (Iraque, Afeganistão) como adversidades próprias.

No entanto, a contrapartida dessa ruptura é a crescente dificuldade imperial em se aventurar em projetos mais ambiciosos. É muito difícil reconquistar a liderança global sem a adesão de segmentos significativos da população.

O imperialismo do pós-guerra foi baseado em uma autoridade oficial que se dissipou. O fim do alistamento em massa introduziu um novo direito democrático, que paradoxalmente prejudica a capacidade do estado dos EUA de recuperar seu poder imperial decadente (Hobsbawm, 2007: cap. 5).

A privatização da guerra acentua, por sua vez, os efeitos traumáticos da separação entre os militares e a população. O trauma dos regressos do Iraque ou Afeganistão ilustra esse efeito. O uso de mercenários também expande a militarização interna e a explosão incontrolável de violência causada pelo livre porte de armas.

Essa sequência de corrosões assume um alcance maior com a canalização de descontentamento social da direita. Manifestado no Tea Party, consolidou-se com o trumpismo.

Xenofobia, chauvinismo e supremacia branca se espalharam com discursos racistas que culpam minorias, migrantes e estrangeiros pelo declínio do Estados Unidos. Mas essa fúria nacionalista apenas aprofunda a fratura interna, sem recriar a extensa base social que o imperialismo norte-americano usou para invadir no exterior.

AS FALHAS DE TRUMP

Os últimos quatro anos forneceram um retrato nítido da tentativa fracassada dos EUA de reconquistar o domínio imperial. Trump priorizou a recomposição da economia nacional e esperava usar a superioridade militar do país para impulsionar um novo arranque produtivo.

Apesar deste suporte, ele enfrentou negociações externas muito duras no esforço de estender ao plano comercial as vantagens monetárias que o dólar mantém. Ele promoveu acordos bilaterais e questionou o livre comércio para tirar vantagem da primazia financeira de Wall Street e do Federal Reserve.

Trump tentou preservar a supremacia tecnológica por meio de demandas crescentes de pagamento de propriedade intelectual. Com o controle da financeirização e do capitalismo digital, ele esperava forjar um novo equilíbrio entre os setores globais e americanos da classe dominante. Ele apostou em combinar protecionismo local com negócios globais.

O bilionário priorizou a contenção da China. Ele lutou brutalmente para reduzir o déficit comercial, para repetir a submissão que Reagan impôs ao Japão na década de 1980. Ele também buscou consolidar uma primazia sobre a Europa, aproveitando a existência de um aparato estatal unificado em oposição aos concorrentes transatlânticos que não conseguiram estender sua unificação monetária ao plano fiscal e bancário. Sob o pretexto de uma desordem improvisada, o ocupante da Casa Branca concebeu um ambicioso plano de recuperação dos EUA (Katz, 2020).

Mas sua estratégia dependia do aval de aliados (Austrália, Arábia Saudita, Israel), da subordinação dos sócios (Europa, Japão) e da complacência de um adversário (Rússia) para forçar a capitulação de outro (China). Trump não conseguiu esses alinhamentos e o novo arranque norte-americano falhou desde o início.

O confronto com a China foi seu principal fracasso. As ameaças não intimidaram o dragão asiático, que aceitou mais importações e menos exportações sem validar a abertura financeira e o freio aos investimentos tecnológicos. A China não acomodou sua política monetária às reivindicações de um devedor que colocou a maior parte de seus títulos em bancos asiáticos.

Nem os sócios dos Estados Unidos desistiram de negócios com o grande cliente asiático. A Europa não aderiu ao confronto com a China e a Inglaterra continuou a jogar seu próprio jogo no mundo. Para finalizar, a China aumentou seu comércio com todos os países do hemisfério americano (Merino, 2020).

Trump só conseguiu induzir um alívio econômico, sem reverter nenhum desequilíbrio significativo da economia norte-americana. Essa falta de resultados veio à tona na crise precipitada pela pandemia e em sua própria expulsão da Casa Branca.

As mesmas adversidades foram constatadas na órbita geopolítica. Trump tentou neutralizar o pesado legado de fracassos militares. Ele foi favorável à uma abordagem mais cautelosa das aventuras de guerra em face do fiasco do Iraque, da degradação da Somália e dos debates sobre a Síria.

Para reverter as campanhas malsucedidas de Bush, ele ordenou a retirada das tropas nos locais mais expostos. Ele transferiu as operações para seus parceiros sauditas e israelenses e reduziu o protagonismo prévio das tropas norte-americanas. Ele apoiou a anexação da Cisjordânia e os massacres dos iemenitas, mas não comprometeu o Pentágono a outra intervenção. Ele retirou os fuzileiros navais da crise na Líbia, retirou tropas da Síria e abandonou os aliados curdos. Naquela região, ele endossou a crescente intervenção da Turquia e consentiu para a preeminência da Rússia.

Trump novamente experimentou a mesma impotência de seus predecessores no controle da proliferação do poder nuclear. Essa incapacidade de restringir a posse de bombas atômicas a um seleto clube de potências ilustra as limitações norte-americanas. Os Estados Unidos não podem ditar o curso do planeta se uma determinada quantidade de países compartilha o poder de convencimento via ameaça concedida pela sua capacidade nuclear.

Os acordos fracassados com a Coréia do Norte confirmaram essas fraquezas de Washington. Kim aperfeiçoou a estrutura do mísseis e rejeitou a oferta de desarmamento em troca de suprimentos de energia ou alimentos. Ele sabe que só o poder nuclear impede que se repita em seu país o que aconteceu no Iraque, na Líbia ou na Iugoslávia.

Esse abrigo atômico é a proteção contra um império que impôs a divisão da península coreana e rejeita qualquer acordo de reunificação. Os Estados Unidos vetam constantemente avanços na proposta russo-chinesa de frear a militarização de ambos os lados (Gandásegui, 2017). Mas depois de várias ameaças, Trump guardou sua pose arrogante e aceitou a simples continuidade das negociações.

Uma barreira muito semelhante foi encontrada no Irã. Também aí a prioridade imperialista tem sido travar o desenvolvimento nuclear para garantir o monopólio atômico regional de Israel. Trump quebrou o acordo de desarmamento assinado por Obama que o reconhecimento internacional tornou viável.

Ele redobrou as provocações com embargos e ataques. O assassinato do general Soleimani foi o clímax dessa agressão. Foi um flagrante ato de terrorismo contra o chefe de gabinete de um país que não praticou nenhuma agressão contra os Estados Unidos. Mas esse tipo de crime – seguido da eliminação de vários cientistas de alto escalão – falhou em impedir a incorporação gradual do Irã ao clube de países protegidos pela armadura atômica.

Essa mesma disseminação do poder nuclear impede que Washington imponha sua arbitragem em outros conflitos regionais. As tensões entre Paquistão e Índia, por exemplo, ocorrem entre dois exércitos com este tipo de armamento e uma conseqüente capacidade de se tornarem autônomos da tutela imperialista.

Trump também falhou em seus ataques contra a Venezuela. Ele promoveu todas as conspirações imagináveis para recuperar o controle da principal reserva de petróleo do hemisfério, mas foi incapaz de subjugar o Chavismo. Suas ameaças esbarraram na impossibilidade de repetir as antigas intervenções militares na América Latina.

A NOVA ESTRATÉGIA DE REARMAMENTO

Trump não se limitou em conter a presença militar no exterior na esperança de realçar a economia. Ele aumentou drasticamente o orçamento militar para descartar qualquer sugestão de uma retirada imperial efetiva. Essas despesas saltaram de $ 580 bilhões (2016) para $ 713 bilhões de dólares (2020). Ele garantiu lucros recordes aos fabricantes de mísseis e testou uma megabomba de alcance sem precedentes no Afeganistão.

Trump relançou o programa Star Wars[1] e quebrou os tratados de desarmamento nuclear. Ele também endossou a mudança em direção à “Grande Competição de Potência” (GPC), substituindo a “Guerra Global contra o Terrorismo” (GWOT). Essa mudança tende a substituir a identificação, rastreamento e destruição de forças adversas em áreas remotas da Ásia, África ou Oriente Médio por um rearmamento preparatório de conflitos mais convencionais. Essa reviravolta encerrou o capítulo das incursões de Bush em áreas remotas, para retomar o confronto tradicional com os inimigos do Pentágono (Klare, 2020).

Com essa perspectiva, Trump complementou a pressão comercial sobre a China com um grande deslocamento da frota no Pacífico. Ele exigiu a desmilitarização da costa do mar do Sul da China para quebrar o escudo defensivo de seu rival. Ele reforçou drasticamente o movimento de tropas, iniciado por Obama, do Oriente Médio para o continente asiático.

A pressão sobre a China aumentou com a expansão da marinha e a aquisição de um número impressionante de navios e submarinos. A Força Aérea foi modernizada em sintonia com todas as inovações em inteligência artificial e treinamento de guerra cibernética.

Para atormentar a China, Trump reforçou o bloco formado com Índia, Japão, Austrália e Coréia do Sul (o Quad). Esse alinhamento militar pressupõe que eventuais confrontos com Pequim serão travados nos oceanos Pacífico e Índico. Um conhecido conselheiro do Departamento de Estado localiza o resultado do confronto sino-americano naquela região (Mearsheimer, 2020).

A estratégia contra a Rússia foi mais cautelosa e moldada à tentativa inicial de atrair Putin para um acordo contra Xi Jinping. Do fracasso dessa operação surgiram as iniciativas de reforçar os exércitos terrestres no continente europeu. A Casa Branca continuou seu trabalho de cooptação militar dos países vizinhos à Rússia e estendeu a rede de mísseis da OTAN das Repúblicas Bálticas e da Polônia até a Romênia.

Com essa nova estratégia, o desenvolvimento de armas nucleares retomou sua antiga centralidade. Trump aprovou o desenvolvimento de munições atômicas baseadas em ogivas de alcance limitado e mísseis balísticos lançados pelo mar. A primeira série dessas bombas já foi fabricada e entregue ao alto comando.

Para desenvolver esses dispositivos explosivos, Trump quebrou os diversos tratados de racionalização nuclear concluídos em 1987. Ele pôs fim ao mecanismo compatível com a Rússia de tornar a destruição de armas obsoletas. Ele também patrocinou o primeiro teste de um míssil de médio alcance desde o fim da Guerra Fria.

A nova estratégia de guerra explica a demanda brutal de maior financiamento europeu para a OTAN. O valentão da Casa Branca lembrou ao Ocidente que ele deve pagar pela ajuda fornecida pelos Estados Unidos. Essa demanda gerou a maior tensão transatlântica desde o pós-guerra.

Trump tentou arrastar seus aliados para conflitos com a China e a Rússia, que minam os negócios no Velho Continente. Nessa região existe uma forte resistência à militarização promovida pelos Estados Unidos. Mas o capitalismo europeu não foi capaz de se emancipar da guerra belicista norte-americana e por isso acompanhou as incursões no Iraque e na Ucrânia. Rejeitam a exigência de mais gastos com a OTAN, mas sem romper com sua subordinação a Washington.

O imperialismo alternativo da Europa concebe seu próprio sistema de defesa em estreita ligação com o Pentágono e, por essa razão, não consegue a unificação de seu próprio exército. Há um divórcio entre a supremacia militar da França e o poder econômico da Alemanha que impede a materialização dessa iniciativa (Serfati, 2018).

Trump foi incapaz de subjugar a Europa, mas seus interlocutores em Bruxelas, Paris e Berlim continuaram a não ter uma orientação própria. Essa indefinição aumentou a capacidade exibida pela Rússia de conter a recomposição imperial norte-americana. Putin reforçou o dique defensivo que estabeleceu com Xi Jinping e saiu impune da queda de braço geopolítica na Síria, na Crimeia e em Nagorno-Karabakh. O abismo contínuo entre esses resultados e a desintegração que prevaleceu na era Yeltsin é muito visível.

Como a China não disputa com a mesma frontalidade geopolítica, suas conquistas são menos visíveis, mas exibe resultados econômicos impressionantes na competição com os Estados Unidos. No final, Trump retratou a incapacidade americana de recuperar a primazia imperial.

O ASSALTO AO CAPITÓLIO

Trump se despediu com uma aventura que retrata a magnitude da crise política americana. A invasão do Congresso não foi um ato improvisado. Os grupos de extrema direita divulgaram o plano com antecedência, financiaram viagens, reservaram hotéis e transportaram armas. Dentro do recinto, seguiram as vias de acesso aos escritórios indicados dos Congressistas cúmplices.

A polícia criou uma zona de liberação e garantiu a presença dos agressores por horas. Se um grupo de afro-americanos tivesse tentado tal ação, eles teriam sido instantaneamente abatidos. Manifestações pacíficas neste mesmo lugar terminaram, nos últimos anos, com centenas de feridos e detidos.

Trump participou diretamente do golpe. Ele instigou os manifestantes, manteve comunicação com seus líderes e prometeu apoiá-los. O objetivo da ação foi pressionar parlamentares republicanos que questionaram a contestação do resultado eleitoral. Isso incluiu ameaças para forçá-los a seguir as instruções do presidente. Com a provocação no Capitólio, Trump tentou apoiar sua alegação absurda de fraude. Ele conseguiu manter a lealdade de uma centena de legisladores e atrasar o despejo, mas, no final, abandonou o jogo e condenou os ocupantes.

O ataque foi tão surreal quanto os espécimes que o perpetraram. O grupo de alucinados que foi fotografado nas poltronas do Congresso parecia extraído de uma série de fantasia da TV. Mas sua ação bizarra não apaga a marca fascista da operação.

Todos os insanos que participaram do assalto fazem parte de uma ou de outra das milícias da supremacia branca. Eles operam em seitas fanáticas (QAnon Shaman) ou referem-se à congressista que ganhou seu mandato com o símbolo da metralhadora (Marjorie Taylor Greene). A polícia que abriu as portas do Congresso também participa dessas formações ultradireitistas.

Os grupos paramilitares têm 50.000 membros bem equipados. Eles se especializam em atacar a juventude ou em manifestações democráticas e, há alguns meses, eles ensaiaram um tribunal do golpe na frente da legislatura de Michigan. Um quarto dessas milícias é formado por militares ou policiais, e essa filiação foi confirmada na lista dos presos pelo ataque ao Capitólio.

A grande presença militar nos pelotões fascistas forçou dois pronunciamentos do alto comando rejeitando o envolvimento das forças armadas nas aventuras do trumpismo. Dez ex-secretários de defesa assinaram esse aviso, e o FBI organizou a inauguração de Biden com uma operação sem precedentes para desmantelar possíveis ataques. Depois de muitos anos de liberdade de movimento e pregação, os grupos fascistas se tornaram a principal ameaça terrorista. Os supremacistas (e não os herdeiros de Bin Laden) são apontados como o grande perigo em ascenção. Ao contrário do que aconteceu com as Torres Gêmeas, desta vez o inimigo é interno.

Esses grupos são sustentados por uma base social racista que atualizou os emblemas neo-confederados. Eles são uma retomada de ondas periódicas de reação contra as conquistas democráticas. No passado, eles executaram escravos libertos ou violaram os direitos civis. Agora eles rejeitam a integração racial, o multiculturalismo e a ação afirmativa.

Os afro-americanos continuam a ser o principal alvo de um ressentimento que se estende aos imigrantes. Por esse motivo, o desafio ao resultado da eleição anti-Trump foi tão intenso em estados com eleitores negros e latinos. Extremistas evangélicos acrescentam sua cruzada contra o aborto e o feminismo à campanha ultraconservadora.

O ataque ao Capitólio não era a antítese da realidade americana que Biden imaginou. Expressa o estado de agonia do sistema político e complementa todas as anomalias que surgiram durante as eleições. A irrupção de fascistas armados no Congresso não é estranha ao sistema eleitoral antidemocrático que a plutocracia governante criou.

Tentativas de golpe era o único ingrediente que faltava naquele esquema infame. As hordas de trumpianos preencheram esse vazio, enterrando toda a zombaria contra os regimes políticos da América Latina. Desta vez, o episódio típico de uma Republica das Bananas aconteceu em Washington. Os bandidos não invadiram os parlamentos de Honduras, Bolívia ou El Salvador. A operação que o Departamento de Estado exporta e a embaixada ianque organiza foi feita em casa.

As consequências políticas desse episódio são incomensuráveis. Elas afetam diretamente a capacidade de intervenção imperialista. A OEA terá que reinventar seus roteiros para condenar “violações das instituições democráticas” em países que simplesmente imitam o que aconteceu em Washington. Deve também explicar por que a liderança dos republicanos e democratas tolerou essa incursão, sem qualquer retaliação contundente contra os responsáveis.

Os efeitos mais duradouros ainda são nebulosos, mas as comparações feitas com a captura de Roma pelos bárbaros ou com as marchas de Mussolini ilustram a gravidade do ocorrido. Vários historiadores avaliam que o país enfrenta o maior confronto interno desde a guerra civil do século XIX.

No futuro imediato, existem dois cenários opostos ao declínio ou ressurgimento de Trump. Os expoentes da primeira notam, em particular, que a aventura do golpe acentuou uma deterioração já sofrida pelo magnata, em consequência da pandemia e da derrota eleitoral (PSL, 2021; Naím, 2021). Ele foi liberado do cargo (Emenda 25), mas não de um impeachment que poderia desqualificá-lo no futuro. Ele acenou para funcionários desertores, rejeição de congressistas republicanos e um vergonhoso perdão de seus cúmplices. A inauguração militarizada dissuadiu as marchas planejadas para apoiar seu governo.

Trump foi abandonado por setores financeiros e industriais que apoiaram sua campanha, e o setor de tecnologia o repudiou cortando suas contas no Twitter e no Facebook. O establishment teme os efeitos incontroláveis das ações do ex-presidente. Se o declínio de Trump for confirmado, o ataque ao Capitólio será comparado ao “Tejerazo” da Espanha em 1981 (a tentativa final e fracassada do regime de Franco de reter o poder).

Mas uma quantidade oposta de analistas estima que o que aconteceu não modificará a sólida inserção política do trumpismo (Vandepitte, 2021; Farber, 2021; Post, 2020). O milionário tem uma base social que reuniu 47% dos eleitores e sujeitou o Partido Republicano à sua liderança. Muitos legisladores repetiram sua fábula de fraude eleitoral, com a adição louca de que foi perpetrada por um grupo de esquerda fantasma (Antifas).

Essa visão postula que o trumpismo se consolidou na estrutura do Estado (polícia, juízes, burocracia) e poderia construir uma terceira coluna para desafiar o bipartidarismo, caso não consiga domar o caldeirão republicano. A desqualificação de Trump seria neutralizada pelo protagonismo de seus filhos ou de algum outro sucessor. E a animosidade dos financistas seria compensada por outros contribuintes.

Mas as duas opções de queda ou continuidade do trumpismo não dependem apenas do comportamento das elites e dos realinhamentos dos republicanos. Ainda pendente no pólo oposto está a reação dos jovens, dos trabalhadores precários, afro-americanos, feministas e latinos, que, antes do período eleitoral, ocupavam as ruas com grandes manifestações. Se essas vozes voltarem a estar presentes – com a reivindicação de democratização do sistema eleitoral – o futuro do magnata se estabelecerá em outro cenário.

CONTINUIDADES E QUESTÕES

A saída de Trump irá diminuir o tom da retórica imperial, mas não a intensidade da agressão dos EUA. Com maior uso da diplomacia e da hipocrisia, Biden compartilha as políticas de estado de seu antecessor.

Os dois partidos do establishment alternaram-se na gestão das estruturas que sustentam a preeminência militar da potência dirigente. A evidência desse belicismo compartilhado está além da conta. Os democratas não apenas iniciaram as grandes guerras na Coréia e no Vietnã, como Clinton e Obama autorizaram mais incursões externas do que Trump, e o próprio Biden apoiou a invasão do Iraque em 2002, supervisionou a intervenção na Líbia e endossou o golpe em Honduras (Luzzani, 2020).

O sistema imperial dos EUA é baseado em um sistema político não democrático que garante a distribuição regular de cargos públicos entre os dois partidos tradicionais. Nas últimas eleições, foi particularmente visível como funcionam esses mecanismos de manipulação. Nos Estados Unidos, o princípio elementar de uma pessoa-um voto não funciona. Também não há registro eleitoral federal ou uma única autoridade eleitoral. Você tem que se registrar, e o vencedor de cada estado obtém o voto do Colégio Eleitoral.

A plutocracia que administra esse sistema garante sua continuidade com o enorme financiamento de campanha fornecido por grandes empresas (US $ 10,8 bilhões em 2020). Os 50 americanos mais ricos – que possuem uma riqueza equivalente a metade da população do país – têm o controle do regime garantido. Apoiados nesta base, eles definem as estratégias imperiais usadas para ditar lições de democracia para o resto do mundo.

Biden está prestes a retomar a política externa tradicional maculada pela cólera do seu antecessor. Ele tentará naquele ambiente o mesmo retorno à “normalidade” que promete internamente. A mídia concorda com essa maquiagem.

O novo residente da Casa Branca sustenta o neoliberalismo com alguns toques de progressismo na agenda das minorias, feminismo e mudança climática. Essa mesma mistura será instrumental na arena estrangeira, cercando as diretrizes básicas do império com mais ornamentos de retórica amigável. Essa linha foi sugerida por consultores tradicionais do Departamento de Estado (Nye, 2020). Biden implementará essa combinação com base em sua longa experiência de meio século nos interstícios de Washington.

Ele já colocou a mesma equipe de funcionários de Obama em cargos-chave da política externa, mas não poderá simplesmente repetir o globalismo multilateral desse governo. Com os acordos de livre comércio transpacífico e transatlântico, Obama fomentou uma rede de alianças asiáticas para cercar a China e uma estrutura de acordos com a Europa para isolar a Rússia. Nenhum desses acordos pôde ser finalizado antes de seu sepultamento brutal pelo bilateralismo mercantilista de Trump. É altamente improvável que Biden consiga retomar a abordagem anterior como o pilar econômico de sua estratégia imperial.

Comandar os mega-acordos comerciais com a Europa e a Ásia requer uma economia altamente eficiente que os Estados Unidos não administram mais. O dólar, a alta tecnologia e o Pentágono já não são suficientes. Nem mesmo no próprio hemisfério americano Washington conseguiu implementar uma estratégia de livre comércio. Só alcançou o NAFTA 2.0 (CUSMA / USMCA / T-MEC[2]) sem restabelecer nenhuma variante da ALCA no resto da região.

Por outro lado, a crise da globalização persiste e a pregação de Trump para confrontar adversários comerciais tem conquistado o eleitorado. Há uma forte corrente de opinião que é hostil ao globalismo tradicional das elites costeiras. Somado a esse mal-estar está o Grande Confinamento gerado pela pandemia e a paralisia sem precedentes do transporte e do comércio internacional. A confluência de obstáculos para a retomada do multilateralismo é muito significativa.

Biden terá que conceber um novo pilar para seu programa externo com outro equilíbrio entre americanistas e globalistas. Da mesma forma que Trump se distanciou do intervencionismo de Bush, Biden terá que propor uma receita mais distante do formato democrata tradicional.

Seus primeiros passos visarão reconstruir relações tradicionais com aliados da OTAN. Ele tentará curar as feridas deixadas por seu antecessor, assumindo projetos para lidar com as mudanças climáticas (Acordo de Paris). Ele buscará “descarbonizar” o setor de energia com incentivos para energias renováveis e promoção de carros elétricos. Mas essas iniciativas não resolvem o grande dilema da estratégia em relação à China.

Nesta área existem muitos sinais de continuidade. Biden intensificará a pressão por uma OTAN Pacífico-Indiana (Dohert, 2020). A Austrália já decidiu participar de exercícios navais com o Japão e se tornar o grande porta-aviões regional do Pentágono. Por sua vez, Taiwan recebeu novas armas aéreas e a Índia está dando sinais de aprovação à ameaça no Mar da China (Donnet, 2020).

O novo presidente tentará trazer a Europa para esta campanha. Ele se prepara para suturar as feridas deixadas por Trump, aproveitando o novo clima de adversidade para a China que está surgindo entre as elites do Velho Continente. A União Europeia designou o gigante oriental como um “concorrente estratégico” e os governos da Alemanha, França e Inglaterra estão negociando o veto da Huawei em suas redes 5G. Macron acaba de nomear um representante francês para o quarteto belicista que o Pentágono formou na Ásia (o Quad).

Mas ninguém sabe ainda como a OTAN será financiada, e a lista das questões de conflito com a Europa é muito extensa. Inclui a posição dos EUA sobre o Brexit e esclarecimentos sobre o projeto de acordo de livre comércio anglo-americano de Trump. A posição do Departamento de Estado em relação ao gasoduto que ligará a Alemanha à Rússia também está pendente.

Essas definições influenciarão a estratégia de guerra do presidente Biden. Ele terá que escolher entre a escassez de tropas que caracterizou Trump ou o intervencionismo favorecido por Obama-Clinton. Impulsionar guerras híbridas ou rearmamentos para grandes confrontos envolve outra decisão importante. Mas em qualquer uma dessas variantes, ele está pronto para insistir no projeto imperial de recuperação americana.

CONGESTIONAMENTO NA IDEOLOGIA

Biden provavelmente retornará à bandeira dos direitos humanos como justificativa para a política imperial. Esta cobertura tem sido tradicionalmente usada para mascarar operações de intervenção. Trump abandonou essas mensagens e simplesmente optou por afirmações ultrajantes, sem pretensão de credibilidade.

A pressão sobre a China que Biden prevê certamente incluirá alguma alusão à falta de democracia. Nesse caso, ele anunciará condenações às mesmas ofensas que são perpetrados em países associados a Washington. O que não é dito sobre Arábia Saudita, Colômbia ou Israel ocuparia o primeiro plano das questões para Pequim.

Biden substituiria as acusações grosseiras de concorrência desleal ou fabricação do coronavírus por críticas à ausência de liberdade de expressão e assembléia. Talvez ele também aponte para a responsabilidade chinesa na deterioração do meio ambiente, para atrair seu subordinado cúmplice europeu.

Mas não será fácil colocar a China na lista de países afetados por uma tirania. O imperialismo dos direitos humanos tem sido habitualmente usado para proteger nações pequenas (ou médias). Nestes casos, destaca-se a ineficácia de um “estado falido” e a consequente necessidade de ajuda humanitária. Esse foi o cartão postal dos ataques à Somália, Haiti, Sérvia, Iraque, Afeganistão ou Líbia.

Os invasores nunca explicam a seletividade desse patrocínio. Excluem inúmeros países sujeitos às mesmas anomalias. Além disso, desqualificam a população “resgatada”, apresentando-a como uma multidão incapaz de administrar o seu próprio destino.

A contenção dos massacres decorrentes de confrontos étnicos, religiosos ou tribais foi outro pretexto para a intervenção. Tem sido usado na África e nos Bálcãs, alegando a necessidade de conter os massacres entre populações distantes. Também nesses casos, foi assumido que somente uma força armada estrangeira pode pacificar os povos em conflito.

Mas esse patrocínio imperial contrasta com a frequente incapacidade de arbitrar os próprios conflitos internos. Ninguém sugere mediação externa para resolver essas tensões. A essência do imperialismo reside precisamente no direito auto-atribuído de intervir em outro país, e de administrar problemas que são caseiros sem qualquer interferência externa.

O mesmo ocorre com a acusação do culpado. Os réus de países periféricos estão sujeitos às regras do direito internacional, que não se aplicam aos seus pares do Primeiro Mundo. Milosevic pode encarar um tribunal, mas Kissinger está invariavelmente isento desse infortúnio.

Com essa conduta, os Estados Unidos atualizam o amontoado de hipocrisia herdado da Grã-Bretanha. No século 19, a frota inglesa atormentou o comércio internacional de escravos com argumentos libertários, encobrindo seu propósito de controlar a totalidade do transporte marítimo. Washington hastea uma bandeira semelhante e esquece os desastres monumentais produzidos pelos poderes que se concebem como salvadores da humanidade. Essas intervenções geralmente pioram os cenários que prometeram corrigir.

Se Biden tentar seguir aquele velho roteiro liberal, isso aumentará a perda de credibilidade que atualmente afeta os Estados Unidos. O discurso oficial dos direitos humanos está desgastado. Foi a grande bandeira da Segunda Guerra Mundial e perdeu consistência durante o macarthismo. Reapareceu com a implosão da URSS, mas foi novamente arrancado pelas agressões de Bush e pelas cumplicidades de Obama.

Isso se aplica também à bandeira da democracia, que na variante imperial dos Estados Unidos sempre combinou universalismo com excepcionalidade. Com o primeiro pilar, o papel missionário salvador do poder primordial foi justificado, e com o segundo, o ocasional recuo isolacionista.

A mitologia que Washington cultiva mistura um apelo à liderança planetária (“o mundo está destinado a nos seguir”) com mensagens de proteção de seu próprio território (“não envolva o país em causas externas”). Dessa mistura emergiu a autoimagem dos Estados Unidos como uma força militar ativa, mas sujeita a operações solicitadas, pagas ou imploradas pelo resto do mundo (Anderson, 2016).

As facetas intervencionistas e isolacionistas sempre tiveram bases divergentes nas mistificações das elites nos litorais e nos preconceitos no interior dos Estados Unidos. Ambas as correntes se complementaram, se fundiram e se fraturaram novamente. Esse contraponto foi atualizado pelas forças globais contra os americanistas, e agora, por Biden contra Trump.

Mas ambos os lados são sustentados pela mesma obsessão imemorial pela segurança, em um país curiosamente privilegiado pela proteção geográfica. O medo da agressão externa atingiu picos de paranóia durante a tensão com a URSS e ressurgiu com ondas de pânico irracional durante a recente “guerra ao terror”.

A ideologia imperial dos Estados Unidos enfrenta as mesmas dificuldades da concepção americanista do mundo. Ambos exaltam os valores do capitalismo, priorizam o individualismo, idealizam a competição, glorificam o lucro, mistificam o risco, elogiam o enriquecimento e justificam a desigualdade.

Esses princípios consolidaram a hegemonia americana do pós-guerra e alcançaram certa sobrevivência complementar sob o neoliberalismo. Mas eles não são mais sustentados pela primazia econômica da América do Norte e foram transformados por sua reconversão em ideais de outras classes capitalistas do mundo. Os mitos americanos não têm a preeminência do passado (Boron, 2019).

Na segunda metade do século 20, o imperialismo dos EUA suplementou a coerção com uma ideologia que ganhou destaque na linguagem e na cultura. Essa influência persiste, mas com modalidades mais autônomas da matriz norte-americana, portanto as tentativas de recomposição imperial devem dar conta desse fato. •

REFERÊNCIAS

[1] N.T.: Um programa militar do Departamento de Defesa dos EUA criado durante o governo Reagan, a Iniciativa Estratégica de Defesa ficou conhecida como Star Wars, devido ao uso de um sistema de radares terrestres combinados com satélites anti-mísseis no espaço capazes de interceptar um eventual ataque nuclear contra o território americano.

[2] N.T.: Siglas se referem ao Acordo Estados Unidos-México-Canadá.

Claudio Katz é professor de economia na Universidade de Buenos Aires, Argentina. Ele escreve em katz.lahaine.org

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