Há “pós-capitalismo” que não seja socialista?

Por Gustavo Freire Barbosa

Nos primeiros anos após o fim da União Soviética, a tese do “Fim da História”, ou do capitalismo como derradeiro estágio civilizatório da humanidade, ganhou força total. O filósofo Francis Fukuyama, guru intelectual de Ronald Reagan em seus mandatos na presidência dos EUA, foi um dos principais responsáveis pela percepção de que o desmoronamento do socialismo soviético seria a prova viva da superioridade da democracia liberal e do modo de produção capitalista.

Foi também nesse período que virou moda renegar o marxismo-leninismo e sua tradição, fundamental não apenas nas lutas anticoloniais travadas no decorrer do século XX, mas também na configuração dos parâmetros civilizatórios do mundo ocidental capitalista e no constrangimento de obrigá-lo a fazer concessões à classe trabalhadora. Nesse sentido, a queda da União Soviética desequilibrou as relações entre capital e trabalho em favor daquele, facilitando o avanço do neoliberalismo e fazendo com que partidos comunistas ou deixassem de existir ou mudassem de nome, adaptando sua prática política às balizas da ordem neoliberal. Palavras como “socialismo” minguaram no vocabulário da esquerda, cujos horizontes passaram a se restringir aos da História que, nos dizeres de Fukuyama, acabara de ultrapassar a linha de chegada.

A realidade, no entanto, fez Fukuyama revisitar suas teses. O filósofo declarou em 2018 não só que Marx estava certo em suas formulações sobre a dinâmica da acumulação capitalista, mas que “o socialismo deveria voltar” [1]. Uma leitura cuidadosa fará notar, porém, que o que defende não é o socialismo propriamente dito, e sim um modelo de redistribuição de riquezas para combater a desigualdade social – ou o retorno da social-democracia contra a qual investiu o neoliberalismo, embalado pela conversa mole de que a História teria chegado ao fim.

O fato é que não dá para ser mais católico que o Papa. A concessão intelectual de Fukuyama e o reconhecimento de que a história não acabou são, estas sim, provas contundentes do vigor da tradição teórica e política do marxismo-leninismo, tradição que continua não apenas viva, mas permanece sendo a mais apropriada para compreender o real significado dos fenômenos sociais e servir de marco zero para ações políticas verdadeiramente radicais e emancipatórias. É tempo do socialismo retomar seu lugar como cunha desagregadora da ordem capitalista – mas não o socialismo de Fukuyama, expressão vulgar do velho estado de bem-estar social, e sim o socialismo de Marx e Engels, aqui na América Latina muito bem teorizado por nomes como José Carlos Mariátegui e Florestan Fernandes.

Parte da esquerda, todavia, continua caindo na mesma vala de Fukuyama – a vala que reconhece as contribuições do marxismo e até o cita acessoriamente como espécie de pedágio intelectual, mas não o leva realmente à sério. Não adianta, por exemplo, reivindicar o materialismo histórico e ao mesmo tempo renegar categorias como revolução e centralidade do trabalho. Foi mais ou menos por esse caminho que andaram Eduard Bernstein e Karl Kautsky – este último o principal teórico da Segunda Internacional, demolido sem piedade por Lenin, ao passo que Bernstein teve sua condição de espadachim da ordem exposta por Rosa Luxemburgo.

Essa esquerda não raramente desfere contra o marxismo críticas que têm origem nas mesmas fontes democrático-liberais que – com razão – o veem como ameaça. Se Marx, em sua crítica ao Programa de Gotha, desconstruiu as teses do “socialismo estatal” de Lassalle, Lenin escancarou o reformismo de Kautsky ao mostrar como ele estava preso à democracia burguesa na medida em que insistia em louvar as formas políticas do capitalismo (o parlamento burguês, segundo ele, poderia servir tanto à classe dominante como à trabalhadora em lugar dos sovietes). Acreditar que de grão em grão a galinha enche o papo, ou que de voto em voto chegaremos ao socialismo, é uma fantasia reacionária que representa não só o abandono da tática revolucionária, mas do próprio socialismo em si, como bem explicou Rosa Luxemburgo a Bernstein. Os golpes de Estado na América Latina, muitos em resposta a governos reformistas e democraticamente eleitos como o de João Goulart, mostraram que ela estava mais do que certa.

Outro exemplo dessa esquerda anti-marxista está na análise que José Paulo Netto faz dos escritos de Boaventura de Sousa Santos sobre Marx. [2] O sociólogo português é uma das grandes referências intelectuais das chamadas “teorias decoloniais”, do “direito insurgente” e das “Epistemologias do Sul”. Suas concepções sobre o direito também são alvo de críticas na linha proposta por José Paulo Netto. [3] Notoriamente, decolonial difere de anticolonial, vez que este bebe diretamente das fontes teóricas do marxismo-leninismo que, reitere-se, serviu de base para as grandes lutas de libertação nacional no século XX.

Em texto publicado no blog da Boitempo, Ruy Braga, professor titular do Departamento de Sociologia da USP, analisa o último livro de Boaventura de Sousa Santos, “O futuro começa agora: da pandemia à utopia”. Intitulado “O futuro pós-capitalista, pós-colonialista e pós-patriarcal de Boaventura de Sousa Santos” [4], o artigo traz que “no intuito de respaldar seu diagnóstico, Boaventura mobilizou todo o aparato de sua afamada teoria descolonizadora. Da análise do capitalismo abissal à crítica ao Estado de exceção, da reconstituição histórica da velha mercantilização à investigação dos autoritarismos emergentes, Boaventura coteja a pandemia viral ao pandemônio mundial, ofertando-nos uma inovadora interpretação do século XXI”.

Pelo teor do ensaio de Braga, supõe-se que Boaventura, coerente com o conjunto de sua obra, dá mais uma contribuição à esquerda que critica o capitalismo mas, ainda no rescaldo dos anos 90, resiste em falar em socialismo, substituindo-o por termos mais palatáveis como “pós-capitalismo”, provavelmente na expectativa de não ser confundido com os “dinossauros marxistas-leninistas”.

Não há novidade se não se propõe a dar um passo à frente. Assim, é importante perguntar: o que seria o pós-capitalismo se não o socialismo? Há possibilidades reais de superação do capitalismo que não pelo socialismo? Concretamente, qual a alternativa que temos à sociabilidade atual, fundada na propriedade privada, na apropriação da riqueza coletivamente produzida e na exploração? Quais as experiências que podem nos servir de ponto de partida? A Revolução Russa teria eclodido sem a manifesta inspiração na Comuna de Paris, com seus erros e acertos? A partir de uma lupa histórica, pode-se bater o martelo e dizer que a Comuna de Paris e o socialismo soviético foram de fato derrotados? Quem tem a onisciência histórica para dizer que a derrota não faz parte do acúmulo histórico necessário para a vitória, como sugere Alain Badiou em “A hipótese comunista”, também publicado pela Boitempo? Deve-se substituir todo desse acúmulo por “decolonialidades” e “pluralismos jurídicos” como tetos de uma emancipação que, muitas vezes, não leva em conta o trabalho como elemento central e pretende se manter no aconchego das formas políticas da democracia burguesa?

As indagações são muitas. Quaisquer que sejam, nenhum avanço substancial ocorrerá se o socialismo for negado, encoberto ou substituído por expressões dóceis e colonizadas pela ordem capitalista. Querendo ou não, o marxismo-leninismo continua sendo o principal arsenal teórico e político para que cheguemos não ao pós-capitalismo difuso, indefinido e cooptável por leituras reformistas, mas ao socialismo concreto e efetivo, nascido das entranhas do mundo velho e do sepultamento das formas históricas do modo de produção capitalista.


O autor é advogado e professor, mestre em direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Notas:

[1] https://www.newstatesman.com/culture/observations/2018/10/francis-fukuyama-interview-socialism-ought-come-back

[2] https://lavrapalavra.com/2019/11/06/de-como-nao-ler-marx-ou-o-marx-de-sousa-santos/

[3] https://lavrapalavra.com/2021/01/19/as-flores-imaginarias-de-boaventura-de-sousa-santos/

[4] https://blogdaboitempo.com.br/2021/04/28/o-futuro-pos-capitalista-pos-colonialista-e-pos-patriarcal-de-boaventura-de-sousa-santos/#prettyPhoto

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1 comentário em “Há “pós-capitalismo” que não seja socialista?”

  1. Caro Professor.
    Concordo com seu artigo. De fato há uma tremenda confusão intelectual qto ao “fim do capitalismo” e o início do socialismo. Por tudo que compreendo deste fenômeno historio e em particular do pensamento marcista/bakunista e suas correntes é de o socialismo é um ciclo histórico para transição p’os-capitalista para o ciclo comunista. Sem rupturas abruptas por questão de adaptação social, contigente ao processo democrático embricado com a cultura, do nível de acumulação material para socializar o excedente e não a carEncia, enfim. Entretanto, ainda que definida a transição como socialista, tendo-se a disposição apenas teorias e poucas experiências históricas, todo um outro sistema (social, político, econômico) deverá ser de acertos e erros frente ao conhecimento disponível. Certo é que será uma construção planeada e não pragmática.
    Neste pensar, permita-me sugerir:
    Fatores de Produção Integrados Coperacionista. Exemplo de produção agropastoril. O Governo apresenta ou recebe do agente privado ou do coletivo fe trabalhadores um projeto de produção específico. O agente público investe na infraestrutura necessária (Comunidade/Distrito obreiro (politicamente constituído como ente público com equipamentos públicos e recursos financeiros – orçamento plurianual – para consumo familiar e aquisição insumos, maquinário); O agente público fica o preço mínimo a aquisição assegurada da produção, bem como o tributo remunerativo do investimento sobre o lucro partilhado. O agente privado entra com o meio de produção (patrimônio/capital) o qual será remunerado de acordo com preço final apurado na partilha da receita líquida da produção. O agente laboral (coletivo) investe o valor social do trabalho coletivo calculado na relação de um percentual da composição do preço mínimo e um valor justo de remuneração pelo trabalho e a remuneral mínima do agente privado. A produtividade e o preço de comércio, já indexado ao mínimo possibilitará lucro maior e capacidade de poupança dos trabalhadores, capitalizando a compra do meio de produçao ou associando a propriedade.. (Em apertadíssima síntese)
    Abraços.

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