Conferência sobre a ditadura do proletariado em Barcelona

Por Louis Althusser, via Revista Revue, traduzido por Rosemary Grund

“O comunismo é a nossa única estratégia […], não somente é ele quem comanda hoje, mas ele começa hoje. Ou melhor: já começou.” Com essas palavras, proferidas em 1976, Louis Althusser defendia a ditadura do proletariado. O XXII Congresso do PCF acabava de abandonar o conceito.Iniciando uma reflexão de longo prazo, Althusser retorna, na ocasião dessa conferência, até então inédita em francês, ao sentido do sintagma “ditadura do proletariado”. Ele revela seus subentendidos, mal-entendidos e propõe, discretamente, uma nova leitura, na qual a deterioração do Estado “começa quando as organizações populares se apropriam de certas funções do novo Estado: a partir de sua instauração ou mesmo antes. […] Onde? Quando? Basta abrir os olhos. O que são, portanto, as organizações comunistas da luta de classes senão já o comunismo? E o que são as iniciativas populares que vemos nascer aqui e ali, na Espanha, na Itália ou nas usinas, nos bairros, nas escolas, nos manicômios, senão já o comunismo?”

Eu não vou falar dos problemas concretos da luta de classe na Espanha, França, Itália ou em qualquer outro país do mundo. Sou incapaz de fazê-lo. Para tal, é necessário dispor do que Lênin chamava de análise concreta da situação concreta em cada uma dessas formações sociais e do estado da luta de classes em escala internacional. Para dispor dos resultados de tal análise concreta é necessário que tal análise tenha sido feita.  Pelo que sei, os partidos comunistas, que fazem uso em princípio da teoria marxista, que é uma ciência (o materialismo histórico), ou os marxistas que não são comunistas, mas que como marxistas fazem uso dessa ciência, ainda não consumaram o tão longo e difícil trabalho de realizar tais análises concretas da luta de classe em cada país. Nós dispomos somente de descrições generalizadas, que não são falsas, mas insuficientes. Para conduzir uma luta de classe em toda sua certeza e sua força, é necessário mais do que apenas descrições gerais, estimativas gerais, conclusões gerais; é necessário entrar no detalhe, no mínimo detalhe, ou seja, no concreto, no concreto das relações da luta de classe, não somente da classe trabalhadora e dos movimentos populares, mas também, e em primeiro lugar, da luta de classe do imperialismo, em todas as áreas, na base, na política e na ideologia. Pois nós sabemos, por meio da ciência marxista das formações sociais (o materialismo histórico) que a luta de classe não se limita à luta econômica, mas se estende também à luta de classe política e envolve a luta de classe ideológica.

Não falarei, portanto, dos problemas concretos da luta de classe do movimento comunista internacional, de sua crise, ou da eventual resolução dessa crise. Falarei de outra coisa: da ditadura do proletariado.

Podemos dizer que essa questão está na ordem do dia de todos os partidos comunistas do mundo inteiro. Está na ordem do dia na China popular, onde o Partido comunista chinês enfatiza com insistência a necessidade de compreender, de respeitar e de aplicar a ditadura do proletariado. Ela está na ordem do dia na União Soviética desde 1936, ou seja, desde que Stalin declarou oficialmente que a ditadura do proletariado estava superada na URSS, ou seja, não se encontrava mais na ordem do dia na URSS. Mas ao mesmo tempo em que Stalin constatava que a ditadura do proletariado estava superada na URSS, o mesmo Stalin declarava que a ditadura do proletariado era indispensável aos outros partidos comunistas, pois ela não estava superada para eles, uma vez que eles não haviam superado a luta de classes e uma vez que não haviam ainda atingido o socialismo, como havia feito a URSS. Eu noto de passagem que, esta ideia de Stalin, de que uma vez que uma formação social tenha atingido o socialismo – ideia que sustenta todo o seu raciocínio sobre a ditadura do proletariado – essa torna-se superada para tal país, é uma ideia em contradição completa com as teses de Marx e Lênin, que declararam repetidamente que a ditadura do proletariado, longe de se encontrar superada sob o socialismo, coincidia ao contrário com toda a fase do socialismo.

Passo agora aos partidos comunistas do mundo imperialista. A ditadura do proletariado está na ordem do dia, de maneira paradoxal. O Partido comunista francês acaba de abandonar oficialmente, em seu XXII congresso, a ditadura do proletariado, mas o mesmo congresso votou por unanimidade uma resolução que repousa inteiramente, de A à Z, na ditadura do proletariado, sem jamais nomeá-la de fato. O Partido comunista italiano que apagou dos seus estatutos desde o fim da guerra, sob a influência de Togliatti, a menção à ditadura do proletariado, se interessa por ela, uma vez que nunca oficialmente a abandonou, e uma vez que toda sua política repousa na teoria de Gramsci em torno da noção de hegemonia. Mas como a noção de hegemonia em Gramsci é uma noção ambígua, particularmente em como Gramsci deixa entender que a hegemonia, que é em princípio o consenso obtido por uma classe quando ela consegue tomar o poder do Estado, pode existir antes da tomada de poder do Estado. Gramsci deixa entender, ao menos é isso que dizem certos comentadores que se situam na mesma linha de interpretação de Togliatti, que a hegemonia anterior à tomada de poder do Estado não é apenas uma hegemonia do proletariado sobre seus aliados (que é a tese de Lênin) mas uma hegemonia sobre toda a sociedade; a ditadura do proletariado se torna ela mesma o meio privilegiado de tomada de poder do Estado, ou seja, o meio privilegiado para tomar e exercer tal poder, portanto para garantir a hegemonia do mesmo proletariado. Podemos dizer o mesmo ao dizer que para esses intérpretes de Gramsci, que são muito sutis, e mais sutis ainda do que Lênin, que nunca vislumbrou tal possibilidade, a hegemonia do proletariado apresenta essa característica extraordinária de existir antes das condições históricas, ou seja, econômicas, políticas e ideológicas de sua própria existência, ou seja, antes da tomada de poder do Estado. Isso constitui o que os lógicos e o primeiro homem chamam de círculo vicioso. Ora, não é possível permanecer indefinitivamente em um círculo vicioso. No entanto é o que fazem os intérpretes de Gramsci aos quais me referi. Mas como são intelectuais, não há muita importância, com exceção de que isso pode paralisar certas formas da luta de classes, primeiramente nos intelectuais comunistas, marxistas e nos outros que não são nem comunistas nem marxistas, porque isso obscurece e perturba a teoria marxista em um dos seus principais princípios. E isso pode certamente ter também consequências na linha e na prática política do Partido comunista italiano, no qual os intelectuais têm um papel muito importante. Em todo caso, se o círculo é fechado, a questão permanece aberta e ela será regida pelos desenvolvimentos da luta de classes na Itália.

O Partido comunista espanhol não se pronunciou, pelo que sei, sobre a questão da ditadura do proletariado, mas é evidente que as simpatias teóricas e políticas têm relação com as posições do Partido comunista italiano que exercem uma grande influencia na Espanha, sobretudo na Catalunha, menos em Andaluzia, para falar somente das regiões espanholas que conheço diretamente.

O Partido comunista português se pronunciou claramente, pela voz de A. Cunhal, no seu X congresso realizado na clandestinidade em 1974. A. Cunhal disse em termos claros: devemos eliminar de nosso vocabulário algumas poucas expressões. Nós devemos fazê-lo pois, após 50 anos de fascismo, o povo português não pode absolutamente compreender como o partido comunista, que luta pela liberdade, possa empregá-las, como por exemplo, a expressão ditatura do proletariado. E Cunhal disse com muita calma e força: mas que ninguém se engane; nós abandonamos somente, unicamente, a expressão ditadura do proletariado e nada do conceito, que é o conceito chave da teoria marxista em matéria de luta de classes. Em poucas palavras, A. Cunhal dizia como disse antigamente Maquiavel: quando a situação política obriga a abandonar palavras, é necessário fazê-lo, mas nesse caso não se deve jamais, jamais abandonar a coisa, os princípios ou conceitos, pois se os abandonamos não só em palavras, mas em realidade, ou seja, na prática, perdemos a direção e a orientação, o que os marxistas chamam de linha política a seguir. E quando se perde a linha política é como na navegação, não se pode chegar ao porto, ao destino.

Eu acrescento que o paradoxo mais surpreendente é que todas as declarações pela ditadura do proletariado, ou pelo seu abandono, ou pelo abandono da expressão, e mesmo as declarações de Stalin sobre a necessidade de abandonar a ditadura do proletariado uma vez que a URSS já a teria ultrapassado e já teria entrado no socialismo, podem também ser consideradas somente como meras declarações, como palavras. Esse ponto é muito importante, porque não se interrompe a luta de classes declarando que ela foi interrompida ou superada.

Do mesmo modo, não se interrompem as suas exigências objetivas, portanto científicas, que são expressas pelo conceito de ditadura do proletariado, ao declarar que se abandona o conceito, ou sua expressão, ou o que alguns chamam, para sair dessa dificuldade, de noção de ditadura do proletariado, ou mesmo declarando como o fez Stalin em 1936 e como continua a fazê-lo Brejnev agora, que a ditadura do proletariado foi superada na URSS uma vez que o socialismo já existe ali, e que como consequência o Estado soviético seria um “Estado de todo o povo”, o que é um absurdo do ponto de vista da teoria marxista. A teoria marxista demonstra de fato que cientificamente o Estado existe somente em formações sociais onde existem as classes, e, portanto, a luta de classes, uma classe dominante que exerce a sua ditadura. Por conseguinte, teoricamente falando, a noção de um Estado que seria “Estado de todo o povo” não tem nenhum sentido. E como os aspectos dominantes da formação social soviética não parecem – contrariamente ao que pensam os camaradas chineses dos quais é necessário examinar os argumentos seriamente, mas infelizmente os argumentos não foram desenvolvidos – como os aspectos dominantes da formação social soviética não parecem sair da ditadura da burguesia, mas não parecem também da ditadura do proletariado,  somos então obrigados a nos perguntarmos : qual é atualmente a relação de produção dominante na URSS, a relação de produção e as relações sociais, politicas e ideológicas correspondentes?

Se nós pudéssemos enfim propor uma resposta científica a essa questão-chave, essa resposta poderia contribuir, ao seu nível, a esboçar uma solução a um dos aspectos mais graves da crise do movimento comunista internacional, quero dizer, a divisão atual do movimento comunista internacional, divisão que é a força principal do imperialismo. Eu sinalizo ainda que o movimento comunista internacional está abordando diretamente essa questão, graças à iniciativa política tomada pelos partidos comunistas ocidentais, dos quais o PCUS teve de reconhecer em parte a bem fundado no comunicado final da conferência de Berlim.

Tudo o que eu acabei de expor levanta evidentemente várias questões, que seria necessário poder examinar em detalhe. Mas antes de fazê-lo, eu simplesmente farei uma exposição da teoria marxista da ditadura do proletariado, como a encontramos em Marx e Lênin. Não falarei de Gramsci porque seu posicionamento é complicado. Em seus Quaderni [Cadernos] ele nunca empregou a expressão “ditadura do proletariado”, o que pode se explicar pelo fato que ele estava preso e submetido a uma censura implacável. Nós sabemos, por exemplo, que é devido à censura que Gramsci, que não acreditava absolutamente que a filosofia marxista fosse uma “filosofia da práxis” nem que a ciência marxista fosse uma filosofia, empregava a expressão “filosofia da práxis” para designar o pensamento de Marx, a teoria de Marx, portanto tanto a ciência marxista quanto a filosofia marxista. Temos o direito de supor que se Gramsci pudesse ter se exprimido com toda liberdade, ele teria empregado a expressão ditadura do proletariado e não a expressão de hegemonia para designar o conceito de ditadura do proletariado e sua realidade. Se ele tivesse podido se expressar com toda liberdade, isso teria levantado boas dificuldades e os intérpretes italianos, espanhóis, franceses e outros, que tentam compreender o pensamento de Gramsci e encontram dificuldades consideráveis para fazê-lo, não perderiam tempo com interpretações inúteis e o movimento comunista internacional que é, de forma justa, muito apegado à Gramsci, ganharia uma imensa vantagem: a de ver claramente essa questão, que é politicamente decisiva, e também a vantagem de não mais cometer erros políticos em nome dessas interpretações inexatas. Graças a isso, nós poderíamos finalmente colocar as palavras de acordo com as coisas, as declarações oficiais dos partidos comunistas de acordo com a prática real da luta de classes das massas populares, porque aí está o drama, o paradoxo, e também o fundamento da nossa certeza de vitória; as massas populares, quer sejam ou não conscientes da verdade científica da ditadura do proletariado, quer conheçam a ditadura do proletariado ou não, sabem não com palavras, nem mesmo com a cabeça, mas nas e por meio das lutas concretas o que é a ditadura do proletariado, porque elas sabem o que é a ditadura da burguesia, a ditadura do imperialismo. Basta que elas o saibam, porque a ditadura do proletariado é no princípio, como vou demonstrar, a mesma coisa que a ditadura da burguesia, com a evidente a diferença que na ditadura do proletariado é o proletariado que exerce a ditadura, e não a burguesia.

Chego agora ao meu tema, a ditadura do proletariado, e, para começar, coloco essa simples questão: qual é o estatuto teórico da expressão “ditadura do proletariado”?

E respondo: essa expressão possui o estatuto de um conceito científico, no sentido forte, no sentido mais forte que exista, no sentido de uma verdade científica demonstrada, provada e indefinidamente verificada na prática. E acrescento: esse conceito científico pertence, como conceito científico, à ciência fundada por Marx, não ao que se chama de filosofia marxista, que na minha opinião não existe, quero dizer, e me explico, não sob a forma clássica do que chamamos – na divisão intelectual do trabalho burguês – “a filosofia”, portanto não ao que nós chamamos de filosofia marxista, mas à ciência que Marx fundou, e que é em geral designada pela expressão de “materialismo histórico”. Qual é objeto dessa ciência (uma vez que diferentemente da filosofia que não tem objeto, toda ciência tem um objeto)? O objeto dessa ciência são as leis da luta de classes. Não é, como acreditava o próprio Engels e como acreditavam marxistas demais, a economia política.

Karl Marx demonstrou, e muito bem, no sentido mais forte que exista do que é uma demonstração científica, que o que se chama economia política, e o que existe sob esse nome nas sociedades imperialistas e infelizmente também na União Soviética e nos países socialistas, não é uma ciência, mas uma formação teórica da ideologia burguesa, portanto uma formação teórica produzida pela luta de classe ideológica burguesa contra o proletariado, uma formação teórica da ideologia burguesa que tem naturalmente, se somos materialistas, consequências práticas na luta de classe burguesa contra o proletariado; ou melhor, uma formação teórica da ideologia burguesa produzida para produzir esses efeitos de luta de classe contra a luta de classe do proletariado.

Portanto o objeto da ciência fundada por Marx, são, e são unicamente, as leis da luta das classes nas diferentes formações sociais decorrentes do que Marx chamava de os diferentes modos de produção.

Se a expressão ditadura do proletariado é um conceito científico, isso quer dizer que ela fornece o verdadeiro conhecimento da realidade que leva o mesmo nome. Em toda ciência as coisas são assim: as palavras designam as coisas elas mesmas, o que é verdadeiro somente quando se chega à verdade científica. Mas isso é falso quando se permanece na ideologia política por exemplo, seja ela prática ou teórica. Um exemplo dessa inadequação: a União Soviética, onde, apesar das declarações dos dirigentes soviéticos que dizem que a ditadura do proletariado foi superada, não o sabemos exatamente se o foi efetivamente. Quando erramos com relação à realidade, erramos as palavras e vice-versa. Isso nós sabemos desde que as ciências existem, quer dizer, como nos apontou Espinosa, desde que a primeira ciência no mundo capaz de fornecer demonstrações passou a existir e a demonstrar ipso facto que era uma ciência, ou seja, a matemática.

Se a expressão de ditadura do proletariado designa um conceito científico da teoria cientifica fundada por Marx que tem por objeto as leis da luta de classes nas sociedades de classe, é evidentemente necessário reconhecer que essa expressão, que designa também, e ao mesmo tempo, de direito, a realidade que ela designa, uma vez que ela fornece o seu conhecimento, é necessário reconhecer que essa expressão pode, enquanto expressão, ter outros papéis subordinados. Ela pode servir de ideia (ou seja, de ideia que pode ser justa sem ser explicitamente objeto de uma demonstração), ela pode servir também de noção e mesmo de ideia falsa, ou seja, de erro (quando ao pronunciar uma palavra designamos outra coisa que a realidade e o seu conhecimento); ela pode também servir de palavra de ordem na ação política, etc.

Todos esses diferentes empregos são secundários com relação ao primeiro, ao emprego da expressão de ditadura do proletariado como conceito científico. E é muito importante entender bem isso, pois ela quer dizer duas coisas, que são uma única só:

  1. É a partir do emprego da expressão como conceito científico que é possível compreender os outros empregos da mesma expressão, incluindo os empregos equivocados, os empregos falsos e
  2. o inverso não é verdadeiro. Tal verdade, o mesmo Espinosa exprimiu em sua famosa fórmula: verum index sui et falsi, o que quer dizer: é somente a partir de um conceito científico verdadeiro que se pode demonstrar que se trata de um conceito científico e que ele é verdadeiro, e é somente a partir deste mesmo conceito científico verdadeiro que é possível compreender os falsos empregos da mesma expressão, quer dizer, o erro, ou o que Espinosa chama de falsum, o falso.

Continuemos. Se a expressão ditadura do proletariado é um conceito científico da teoria marxista, designando de maneira adequada, como diz Espinosa, o seu objeto, ou seja, fornecendo o conhecimento objetivo de seu objeto, a interpretação historicista da ditadura do proletariado, defendida pelos dirigentes do Partido comunista francês, é evidentemente absurda. Um conceito científico, uma verdade objetiva, não pode ser, como disse um dirigente do Partido comunista francês, ultrapassado “pela vida”. Para todos os homens que viveram, desde que as matemáticas forneceram a demonstração de que 2+2=4, a verdade de 2+2= 4 não poderá jamais ser ultrapassada, não poderá jamais ser “ultrapassada pela vida”. O mesmo é válido para o conceito de ditadura do proletariado. A sua verdade é, como dizia Espinosa, de todas as verdades cientificas, eterna; quer dizer válida em todo tempo e em todo o lugar. Isso quer dizer que essa verdade é sempre válida, mesmo quando seu objeto não existe, mas que ele é evidentemente aplicável unicamente quando seu objeto existe. A diferença entre validade universal, independentemente da existência atual de seu objeto, de uma verdade cientifica, e da aplicabilidade prática desta mesma verdade, é uma diferença evidente, ainda que a mesma verdade não possa ser aplicada a seu objeto a não ser que ele exista efetivamente.

Isso quer dizer concretamente que a ditadura do proletariado é verdadeira para nós, ainda que a ditadura do proletariado, ou o socialismo, não exista em nosso país. Quando o proletariado já tomou o poder, a verdade da ditadura do proletariado existe de outra maneira, uma vez que seu objeto existe efetivamente; essa verdade é, portanto, diretamente aplicável, ainda que para nós hoje ela o seja apenas indiretamente ou estrategicamente.

Do mesmo modo, quando o comunismo reinar sobre o mundo, a verdade da ditadura do proletariado existirá sempre, como sendo a verdade do que se passou sob o socialismo, ainda que ela não tenha mais oportunidade de se aplicar ao que se passará sob o comunismo, uma vez que as classes e a luta de classes terão desaparecido e a ditadura do proletariado terá se tornado supérflua.

Eu tinha que fazer esses esclarecimentos para sair enfim do atoleiro do historicismo, que é uma das formas de ideologia filosófica burguesa das mais perigosas que existem para o movimento operário internacional, pois o historicismo consegue fazer duvidar do caráter científico da teoria cientifica de Marx. O historicismo é sem dúvida hoje, com o neopositivismo, a forma mais perigosa da luta de classes ideológica da burguesia para o movimento operário. Há ainda profundas afinidades com o neopositivismo, pois são ambas formas de empirismo, o inimigo filosófico número um da luta de classes do proletariado. Isso pode ser facilmente demonstrado, mas eu não posso fazê-lo hoje.

Aqui nos colocamos inevitavelmente a pergunta: não se trata de um problema de vocabulário? A palavra ditadura não caracteriza realmente uma dificuldade?

Claro, há um problema de palavras. Pois todo conceito deve se exprimir, ou seja, se fixar na linguagem, e então se identificar com palavras definidas, nos dois sentidos do termo: se reconhecer nelas, e se misturar a elas.

A exigência objetiva absoluta de ter de se identificar com as palavras e a relativa independência do sentido do conceito com relação às palavras que o exprimem fazem que em princípio nada se oponha a que se mudem as palavras, se necessário o for, ou a que se achem melhores. Sabemos que Gramsci, por exemplo, não utiliza praticamente nunca a expressão “ditadura do proletariado” em seus Cadernos do cárcere. Talvez para desviar da censura, como já o dissemos acima. Mas o fato é: ele faz uso de várias palavras, mas sem abandonar o conceito.  Serão elas melhores? Pode ser: algo a se examinar de perto.

Podemos então, em princípio, mudar as palavras. Mas temos sempre necessidade delas e a margem de liberdade não é, de fato, tão grande assim: pois é necessário passar pelas limitações da linguagem estabelecida que é sempre conservadora, uma vez que registra as coisas e os sentidos reconhecidos pela ideologia dominante. E quando se quer lhe fazer dizer, em uma fórmula breve e surpreendente, como foi o caso de Marx, algo de inaudito, que a perturba em suas certezas, é preciso violentá-la.

Violentar a linguagem: todos os poetas, os filósofos e os sábios o sabem, todos os militantes revolucionários também.

Pois enfim, se Marx forjou em 1852, após ter chamado no Manifesto (1848) o proletariado a se estabelecer “como classe dominante”, a expressão “ditadura do proletariado”, servia bem para forçar a ver, sob a enorme camada de “evidências” da ideologia burguesa, uma realidade que ninguém antes dele tinha descoberto. E pela força das circunstâncias, não havia evidentemente nenhum nome na linguagem existente para designar essa realidade. Marx fez como todo mundo. Ele teve que tomar as palavras que lhes eram necessárias, ali onde elas estavam. Ele tomou uma palavra da linguagem política: ditadura. Ele tomou uma palavra da linguagem do socialismo: proletariado. E as forçou a coexistir em uma expressão explosiva (ditadura do proletariado) para exprimir, em um conceito sem precedentes, a necessidade de uma realidade sem precedentes.

É, portanto, perfeitamente exato: ao juntar a palavra proletariado à palavra ditadura, Marx, devemos reconhecê-lo, violentou a palavra ditadura. Ele desviou o seu sentido: mas para se servir dele.

Pois se, na tradição clássica, e então na linguagem existente, a palavra ditadura designava um poder absoluto, tratava-se então unicamente do poder político, ou seja, do poder de governar tal como tomado por um homem (Roma) ou por uma assembleia (a Convenção), e ainda sob forma legal nos dois casos. Mas ninguém antes de Marx tinha imaginado que se poderia falar em ditadura de uma classe social, pois essa expressão não tinha nenhum sentido no quadro de referência obrigatória das instituições políticas. É justamente isso que faz Marx: ele toma a palavra ditadura de seu domínio de poder político para forçá-la a exprimir uma realidade radicalmente diferente de toda forma de poder politico: essa espécie de poder absoluto, sem nome antes dele, que toda classe dominante necessariamente exerce (feudalismo, burguesia, proletariado), não só na politica, mas bem além, na luta de classes que incorpora o todo da vida social, da base à superestrutura, da exploração à ideologia de passagem, mas somente de passagem, pela politica. Tentem fazer melhor em duas palavras e verão: não é tão fácil! Falar de dominação de classe (como o faz o Manifesto) ou de hegemonia de classe (como faz Gramsci), podem ser ou parecer expressões demasiado fracas ou sábias. Era preciso uma palavra familiar bem forte, que arrebatasse, para fazer não somente compreender, mas sentir a força inaudita desta relação de “poder absoluto” de classe. Havia necessidade de uma palavra que desse a ideia de um “poder absoluto” acima de toda lei: ditadura.

Mas ao mesmo tempo, era preciso uma palavra excepcional para designar esse poder de exceção: um poder que é “absoluto” justamente porque ele está acima das leis, traduzam por mais elevado, vasto e profundo que somente o poder político. Ora, como ditadura continha a ideia se um poder absoluto acima das leis, Marx se apropriou desse sentido para forçá-lo a dizer, ao associar ditadura ao proletariado, algo completamente diferente: na luta de classes, o poder da classe dominante está acima das leis, ou seja, bem acima e além da política.

Lênin escreveu:

“Ditadura, é um palavrão rude, sangrento, uma palavra que exprime a luta impiedosa, a luta à morte de duas classes, de dois mundos, de duas épocas da história universal. Não se usam tais palavras à toa.”

É assim que o conceito de ditadura do proletariado, vestido dessas duas únicas palavras, entrou praticamente nu na teoria e na história, como uma violência feita à linguagem, como uma violência da linguagem para relatar a violência da dominação de classe.

Isso quer dizer que o conceito de ditadura do proletariado repousa na ideia de que a dominação de classe é à sua maneira um poder absoluto que não se reduz às formas de poder político?

Por ora eu responderia: sim.

Mas isso quer também dizer que o conceito de ditadura do proletariado não pode ser compreendido sozinho. E, de fato, ele remete sempre a um outro conceito: o conceito de ditadura da burguesia. Os dois conceitos são idênticos. O que muda é a classe que domina. Mas o que não muda é a alternativa: ou uma classe ou a outra, ou a burguesia, ou o proletariado. Mas para compreender essa alternativa, é necessário adicionar: é o conceito de ditadura da burguesia que detém o “segredo” do conceito de ditadura do proletariado.

Todo o mundo conhece os famosos paradoxos de Marx, Engels e Lênin sobre a ditadura da burguesia. Quando cem vezes Lênin afirma que a democracia parlamentar burguesa mais “livre” é a forma por excelência da ditadura da burguesia (eu não discuto aqui a ideia contestável que possa existir uma forma “por excelência”) o que ele está fazendo? Ele coloca em evidência essa distinção fundamental: as formas políticas pelas quais se exerce a ditadura de uma classe na luta de classes é uma coisa, e outra coisa é essa mesma ditadura de classe. E Lênin acrescenta: a ditadura de uma classe se exerce em suas formas políticas e através delas, mas ela não se reduz a isso. O que, em resumo, quer dizer: não se pode compreender o sentido e a função das formas políticas (variáveis segundo o curso da luta de classes) da ditadura de uma classe sem os referir à ditadura dessa classe nas lutas de classes e às relações de força dentro de uma mesma luta de classe.

Essa distinção entre ditadura de classe e formas políticas que contribuem a realizar essa ditadura vale tanto para o proletariado como para a burguesia. E é por isso que, colocando desta vez o mesmo paradoxo a serviço da ditadura do proletariado, Lênin pode sustentar a ideia que a forma política (e social, veremos por que) por excelência da ditadura do proletariado é “a democracia das mais largas massas”, “mil vezes mais livre” que a mais livre das democracias burguesas.

Se não apreendermos com firmeza essa distinção entre a ditadura da classe dominante na luta de classes e a as formas políticas nas quais e pelas quais essa ditatura também se exerce, não podemos compreender “a necessidade” da ditadura do proletariado (Marx).

Essa distinção repousa em uma grande ideia, que é fundamental na teoria marxista. Para Marx, na verdade, as relações de luta de classe, (mesmo) sancionadas e reguladas pelo direito e pelas leis em benefício da classe dominante, não são, em última instância, relações jurídicas, mas relações de luta, ou seja, relações de força, resumindo, relações de violência declarada ou não. Isso não quer dizer que para Marx o direito e os direitos sejam de essência “jurídica” pura, portanto sem violência, mas sim quer dizer que as relações de classe são, em última instância, relações extra-judiciais (contendo uma outra força além do direito e das leis), portanto são relações “acima das leis” porque são, em última instância, relações de força e de violência declarada ou não e que a dominação de uma classe na luta de classes deve ser “necessariamente” pensada como “poder acima das leis” : ditadura.

Se há alguns minutos eu parecia ter alguma reserva ao dizer “por ora”, era para assinalar que seria necessário ir mais longe. Mas cá estamos.

Pois não basta dar uma definição somente negativa e dizer: o poder de dominação de classe é, em última instância, “extra-jurídico”, quer dizer, “não jurídico”. É necessário dizer positivamente qual é esse poder absoluto e é necessário mostrar o que designa a “última instância”.

Ora, não é possível responder a essas questões sem levar realmente em conta a teoria marxista da luta de classes, tal como ela surge a partir da análise do modo de produção capitalista, O Capital.

Mais atenção: não é necessário cair nas armadilhas dos adversários atuais e crer, como eles pretendem, que a teoria da luta de classes teria começado com Marx, e pertenceria propriamente ao marxismo, como descoberta ou invenção. Não foi Marx quem descobriu “a existência das classes e da sua luta”. Ele mesmo o diz: “Não sou eu, mas os historiadores e economistas burgueses” e Marx acrescenta: “O que eu trouxe de novo, foi […] a ideia que a luta de classes conduz necessariamente à ditadura do proletariado” (carta a Wydermeyer, 1852). Nós estamos no ponto mais crucial onde o que distingue a teoria burguesa da luta de classes da teoria marxista da luta de classes é… a ditadura do proletariado: ao ponto onde a teoria marxista da luta de classes e o conceito de ditadura do proletariado são tão próximos como os lábios dos dentes.

Em vista dessa advertência surpreendente, nós podemos entrar no que é a teoria burguesa da luta de classes para a opor ao que é realmente a teoria marxista da luta de classes.

É possível dizer que os teóricos burgueses pensam segundo uma concepção que distingue as classes de um lado e a luta de classes do outro, e mais frequentemente, em uma concepção que coloca o primado lógico ou histórico das classes acima da luta de classes. Que existam as classes, mesmo se eles as chamam de outro modo, os teóricos burgueses reconhecem. Como eles as pensam como sendo separadas da luta de classes, caem numa concepção econômica ou sociológica ou psicossociológica das classes: nada de surpreendente, a economia política, a sociologia, a psicossociologia foram forjadas para servir teoricamente e praticamente a essa concepção burguesa da luta de classes pela ideologia burguesa, é possível prová-lo historicamente e teoricamente. De qualquer modo, eles pensam primeiramente na existência das classes, e a luta de classes como vindo em seguida, como um efeito secundário, derivado, mais ou menos contingente à própria existência de classes e de suas relações. Como pensam então a luta de classes? Em termos de sociologia, de psicossociologia, de política e de ideologia: a ideologia burguesa lhes fornece tudo o que é necessário para isso.

Mas o que é interessante são as consequências políticas dessa concepção.  Se a luta de classes é um efeito derivado, mais ou menos contingente, é sempre possível encontrar o meio de eliminá-la, ao tratá-la pelos meios apropriados: esses meios são as formas históricas de colaboração de classe, onde o reformismo do movimento operário se combina com os métodos capitalistas da “participação” dos trabalhadores na própria exploração.

Marx pensa de acordo com uma outra concepção. Contrariamente aos teóricos burgueses que estipulam uma diferença entre as classes e a luta de classes e que colocam em geral o primado das classes acima da luta de classes, Marx coloca a identidade da luta de classes e, ao interior dessa identidade, o primado da luta de classes acima das classes. Eu me desculpo por empregar esta fórmula que é abstrata e parece difícil de compreender. Ela significa que a luta de classes, longe de ser um efeito derivado e mais ou menos contingente da existência das classes, é uma coisa só com o que divide as classes em classes e reproduz a divisão em classes na luta de classes. Filosoficamente falando se diz: de acordo com os diferentes períodos históricos, primado da contradição sobre os contrários, ou identidade da contradição e dos contrários.

Para ver concretamente se operar essa divisão em classes sob o efeito da luta de classes, para ver concretamente em que a existência de classes é idêntica à luta de classes, basta analisar o que se passa na base econômica “determinante em última instância” e examinar justamente a relação da luta de classe que divide as classes em classes: a relação de produção capitalista.

Ora, o que vemos nessa relação? Com a condição de a considerar por si mesmo e por suas pressuposições que são também seus efeitos (o conjunto das relações sociais que, ao condicioná-la, dependem dela), vemos isso. Formalmente, a relação de produção capitalista se apresenta como uma relação jurídica: de compra e venda da força de trabalho. No entanto, essa relação não se reduz nem a uma relação jurídica, nem mesmo a uma relação política, nem a uma relação ideológica. A detenção dos meios de produção pela classe capitalista (que se mantém por trás de cada capitalista individual) mesmo sendo sancionadas e reguladas pelas relações jurídicas (cuja aplicação pressupõe o Estado), não é uma relação jurídica, mas uma relação de força ininterrupta, desde a violência aberta da expropriação durante o período de acumulação primitiva, até a extorsão contemporânea da mais-valia. A venda da força de trabalho da classe trabalhadora (que se mantém por trás de cada trabalhador produtivo) mesmo sendo sancionadas pelas relações jurídicas, é uma relação de força ininterrupta, uma violência feita aos despossuídos, quer eles passem do exército de reserva ao trabalho ou inversamente.

No centro dessa relação de produção capitalista, que divide as classes em classes, e reproduz essa divisão pelo duplo processo de acumulação e de proletarização, vemos que, em última instância (ou seja, ancorada nessa “última instância” que é a produção), a violência de classe, essa violência “fora da lei”, que a classe capitalista exerce sobre a classe trabalhadora.

A ditadura da burguesia é ditadura porque ela não é nada além, em última instância, do que essa violência mais forte do que as leis. Em última instância, mas em última instância somente, porque essa violência não pode se exercer sem as formas do direito que a sancionam e a regulam, sem as formas políticas que sancionam e regulam a detenção do poder de Estado pela classe dominante em vista da sanção do direito, e sem as formas ideológicas que impõem a submissão à relação de produção, ao direito e às leis da classe dominante. Se a guerra, entendida no sentido da guerra a que se entregam dois Estados através de seus exércitos é, segundo Clausewitz, “a política continuada por outros meios”, então é necessário dizer que a política é a guerra (de classe) continuada por outros meios: o direito, as leis políticas e as normas ideológicas. Mas sem essa guerra, sem essa violência, sem a violência da exploração de classe, não é possível compreender nem a o direito, nem as leis, nem a ideologia.

A relação de classe é, portanto, uma relação de luta, de força “anterior a todo direito” e é necessariamente uma relação antagonista. É essa relação inconciliável que realiza o primado da luta de classes.

É esta “lei” não jurídica, não política, da luta de classes que “conduz necessariamente” (Marx) não somente à ditadura da classe dominante, mas também à alternativa: ou ditadura da burguesia ou ditadura do proletariado.

Imaginamos sem dificuldade que essa concepção nada tenha a ver com “a economia política”, a sociologia ou a psicologia, essas formações da ideologia burguesa com as quais o marxismo não tem nada a ver, uma vez que são as próprias armas da luta de classe burguesa na ideologia da “sociedade”. Mas é possível ver sem dificuldade que essa concepção desenha uma outra política que a concepção burguesa e a social-democracia. Se a luta de classes não é um efeito derivado e mais ou menos contingente da existência de classes, a colaboração de classe e o reformismo se tornam o que são: as armas da burguesia na sua luta de classe. Por outro lado, as organizações da luta de classe trabalhadora devem se apropriar da lei natural e científica que rege a luta de classe e retirar na teoria e na prática as consequências de sua alternativa: ou a ditadura da burguesia (quaisquer que sejam as formas políticas), ou a ditadura do proletariado (quaisquer que sejam suas formas políticas? Veremos.) É o objetivo que O Manifesto designava ao proletariado: “Se constituir como classe dominante”. Mas podemos nos contentar com isso? A questão do Estado….

Claro, não podemos nos contentar com isso.  Mas era preciso começar aí para ver bem como as coisas se mantém.

Aqui necessitamos de um pouco de atenção, pois a questão do Estado é complicada, e a teoria marxista não é sempre bem compreendida.

Uma vez admitida a existência da luta de classes, e a dominação (ditadura) de classe, ainda nos resta de fato compreender: por que o Estado?

A teoria marxista se opõe, aqui também, à teoria burguesa do Estado. O Estado não é uma realidade exterior à luta de classes, superior à luta de classes, uma realidade de “vocação” superior à de classes, universalista ou “espiritual”, um arbítrio se identificando mesmo parcialmente ao que se designa como sendo do “interesse geral” ou “público”. O Estado não se compreende a não ser em função da luta de classes e da dominação de classe. Instrumento da dominação de classe a serviço da classe dominante, o Estado não serve somente para intervenções pontuais (violentas ou não), mas sobretudo à reprodução das condições gerais (jurídicas, econômicas, políticas e ideológicas) da relação de produção, das relações de classes existentes em prol da classe dominante.

Quando se tem essa concepção firme nas mãos, se descobre naturalmente três questões: a questão da natureza própria do Estado, a questão da detenção do poder de Estado, e a questão da destruição do aparelho do Estado.

Não basta de fato repetir piedosamente as fórmulas: O Estado é instrumento da dominação de classe na luta de classe, etc.; é necessário ainda saber de que é feito esse “instrumento” que não é um, e como funciona caçoando do “funcionalismo”. Ora, Marx e Lênin sempre responderam com uma extrema insistência, por duas palavras novas (mais uma vez: as palavras novas!): O Estado é um “aparelho”, o Estado é uma “máquina”. Mas como eles diziam também (e com razão) que este aparelho era antes um aparelho de repressão e essa máquina uma máquina de repressão, apenas se reteve dessas palavras (aparelho, máquina) a ideia de um instrumento, de um mecanismo repressivo, remetendo à dominação de classe pela violência, etc. Na verdade, passamos tranquilamente por cima dessas palavras: aparelho, máquina. Ora, elas têm um sentido muito específico. Pois elas têm um sentido em comum, mas não aquele em que se acreditava. Na verdade, o que esse aparelho e máquina tem em comum é de significar “uma montagem mecânica ou orgânica operadora das transformações (de matéria, de forma, de movimento, de energia, etc). É obviamente necessário tomar “aparelho” e “máquina” literalmente e dizer: o Estado é uma montagem de mecanismos que opera transformações, uma transformação por excelência. Qual?

Assim como a máquina à vapor opera a transformação do calor em movimento, eu diria que o Estado é essa máquina que transforma a violência em poder, mas precisamente essa máquina que transforma as relações de força da luta de classes em relações jurídicas reguladas por leis. Montesquieu dizia justamente isso quando falava da divisão ou separação dos poderes. O que é que transforma a violência de classe em poderes, senão a própria máquina de Estado, e as separa como convém para que a ditadura de classe seja assegurada nas melhores condições? – senão a máquina do Estado? É de fato esse o assunto, ainda que cego, de O espírito das leis.

Eu proponho, portanto, de levar em conta essa ideia forte de máquina e de dizer: O Estado é essa máquina que opera a transformação da força em poder, da luta de classes em relações jurídicas (direito, leis, normas). Eu proponho que se diga: o Estado é uma máquina de poder e que esse poder, sua força própria, transforma “o poder absoluto abaixo das leis” em poder das leis.

A vantagem dessa fórmula é mostrar que as leis (tudo o que é lei, não somente as leis políticas, mas toda “prescrição” escrita ou não, “emanando da autoridade soberana” e o que quer que seja o domínio jurídico, político, ideológico) são apenas relações de força, que se exercem sob a forma do direito ou seja sob a forma da regra e da famosa pureza do direito (quer ele seja comercial ou politico, privado ou público) e das normas (ideológicas, religiosas, morais ou filosóficas) é apenas a forma transformada da violência das leis, o que esclarece a violência que reina nas leis, e essa violência particular que acompanha o reino consentido das normas, ou seja, valores disfarçados de “ideias” : a ideologia. O interesse dessa fórmula está em mostrar que para transformar a violência de classe em leis o Estado precisa, como primeira máquina existente, de uma estrutura e de uma força determinadas que sejam suas e forme o seu corpo, precisamente de uma estrutura que seja capaz, por sua própria força, de condensar a violência de classe em força de Estado para servir à sua transformação em leis. Essa estrutura é o que chamamos atualmente com uma palavra equivocada (pois pode fazer pensar que o Estado existiria antes de seu aparelho), o aparelho de Estado. Mas eu deixo de lado esse ponto importante.

A vantagem dessa fórmula que define o Estado é enfim mostrar a dependência íntima existente entre o Estado e classe dominante.

Essa dependência, a teoria marxista a traduz em dois conceitos decisivos que concernem a ditadura do proletariado: o caráter de classe inconciliável do poder de Estado e o caráter de classe de aparelho de Estado.

Como o Estado possui, enquanto aparelho e máquina, uma estrutura e uma força próprias, poder-se-ia pensar que, mesmo como produto e meio de luta de classes, a inércia da força própria do Estado (enquanto aparelho e máquina) o neutralize realmente ou virtualmente. E o poder do Estado poderia então ser detido, como todo instrumento neutro e indiferente a seu detentor, seja por uma classe, seja por outra, seja por uma aliança de classes dividindo o poder. Mas isso é esquecer que a dependência do poder de Estado com respeito à luta de classes abre definitivamente uma alternativa só: somente uma classe pode deter o poder de Estado, ou a burguesia ou o proletariado.  A natureza de classe (da detenção) do poder de Estado é de fato uma proposição essencial à teoria marxista. Essa ideia não exclui absolutamente a necessidade de uma aliança de classe para a conquista do poder de Estado, nem a possibilidade da participação, a igualdade de “direitos” com a classe trabalhadora, de várias camadas sociais, ao exercício do poder de Estado após a revolução. Ela indica apenas, mas sem apelo, que as relações de força na luta de classes fazem sempre, qualquer que seja a aliança ou a participação, pender o poder de Estado do lado de uma classe e uma só: a classe efetivamente dominante.

O mesmo se dá com o que chamamos de aparelho de Estado. Aí também se poderia pensar que, mesmo produto e meio da luta de classes, a inércia da força própria ao aparelho de Estado o neutralize realmente ou virtualmente, e que bastaria à nova classe dominante dar suas ordens ao antigo aparelho para ser obedecida, e assentar assim sua dominação de classe. Mas isso é esquecer que o aparelho de Estado se assemelha a um cão que apenas obedece ao seu mestre, é esquecer (abandonemos o cachorro) a dependência do aparelho de Estado quanto às formas da luta de classes. Pois nenhuma classe escolhe as formas de sua luta e, portanto, as formas jurídico-político-ideológicas de sua dominação de classe; sendo assim a estrutura de seu aparelho de Estado lhe são impostas pelas formas de sua exploração econômica e pela opressão política e ideológica que dela resulta.

É por isso que quando ela se torna dominante, tendo conquistado o poder de Estado, a nova classe dominante é, quer ela queira ou não, constrangida a transformar o aparelho de Estado o qual herda para adaptá-lo a suas próprias formas de exploração e opressão. Essa transformação pode ser mais ou menos profunda e mais ou menos rápida: ela é de todo modo, inevitável. Como um único exemplo, a burguesia não poderia se impor como classe dominante sem transformar profundamente e de modo durável o aparelho de Estado herdado do feudalismo. E se essa transformação leva tempo, é necessário tomar esse tempo no sentido forte: é o tempo necessário à nova classe dominante para transformar, através de uma luta de classe adaptada à sua exploração, o aparelho de classe da antiga classe dominante.

E como essa luta de classe é apenas uma parte da luta de classe como um todo, e como essa luta de classe como um todo dura e muda, não devemos nos surpreender que a configuração do aparelho de Estado mude: o aparelho de Estado imperialista de 1976 na França não é mais, como podemos bem ver, o aparelho de Estado capitalista de 1880.

Mas eis-nos portanto imersos nos problemas políticos concretos ligados à ditadura do proletariado: tomada do poder do Estado, destruição do aparelho de Estado, formas políticas da ditadura do proletariado, extinção do Estado….

Tentemos então ver com um pouco de clareza essas questões tão atuais e tão controversas, nos colocando sempre do ponto de vista para qual Marx nos chama, ou seja, do ponto de vista da fusão do movimento operário com a teoria marxista, ou seja, do ponto de vista da ditadura do proletariado, o que quer dizer simplesmente do ponto de vista da teoria marxista no seu esclarecimento do conceito de ditadura do proletariado e tal como o conceito de ditadura do proletariado esclarece a teoria marxista.

Primeiramente, a questão da tomada de poder do Estado pelo proletariado. É incontestável que na tradição histórica e política herdada pelos militantes comunistas vivos, o conceito de ditadura do proletariado é 100 por cento identificado hoje com a tomada violenta do poder de Estado. É um fato do qual seria necessário um estudo histórico e político para esclarecer as razões. Eu não posso aqui examinar as causas dessa identificação. Mas é já claro que, do ponto de vista teórico, essa identificação não corresponde a nenhuma necessidade teórica, nem também a nenhuma necessidade histórica geral, a menos que se caia em um fatalismo histórico incapaz de se elevar acima da brutalidade do “fato consumado”.

Na realidade, tomado em si mesmo, ou seja, no contexto da teoria marxista, o conceito de ditadura do proletariado não permite determinar nenhuma das formas concretas da tomada do poder de Estado. O que não quer absolutamente dizer que ele seja indiferente a elas, mas isso quer dizer: não se pode deduzir do conceito de ditadura do proletariado as formas concretas históricas da tomada de poder do Estado, em tal país, em tal momento. Eu lembro a vocês que o conceito de ditadura do proletariado designa “o poder absoluto acima das leis”, o poder de classe, na luta de classes, da classe trabalhadora que alcança o poder. Nessas condições, esse conceito não determina em nada, a priori, a forma política (violenta ou pacífica, legal ou não, portanto violenta-legal, violenta-ilegal, pacífica-legal, pacífica-ilegal) da crise de poder do Estado. Marx e Lênin eram bem conscientes, uma vez que, mesmo reconhecendo que a “passagem pacífica” (portanto democrático-burguesa) da classe trabalhadora ao poder era “excepcional” e mesmo que no tempo deles a situação histórica impusesse praticamente a passagem insurrecional, eles reconheciam, no entanto, a sua “possibilidade”. E que não se objete que as razões que eles mantinham em favor dessa possibilidade (a fraqueza do aparelho do Estado na Inglaterra ou nos EUA) desapareceram com as circunstâncias. O que as circunstâncias fizeram, outras circunstâncias podem refazer. E como se tratava definitivamente de uma possibilidade que, no espírito de Marx e de Lênin, se baseavam somente no cálculo de uma relação de forças porque outras circunstâncias não poderiam conduzir à mesma conclusão? O essencial é evidentemente não errar no cálculo da relação de forças.

É possível concluir com toda certeza e, portanto, claramente afirmar que o conceito de ditadura do proletariado não possui nenhuma competência teórica para decidir entre a passagem violenta ou a passagem pacífica ao “socialismo”. A única coisa que pode decidir essa escolha histórica é a relação de força existente na luta de classes presente.

A questão da destruição do aparelho de Estado correlativa à construção de um novo aparelho de Estado é aparentemente mais difícil. Pois afinal, por que o proletariado, tornado classe dominante pela tomada do poder de Estado não imitaria as outras classes dominantes? Por que ele não se contentaria, ele também em transformar pela sua luta de classes o aparelho de Estado herdado, ainda que tenha ele também que passar por diferentes configurações do aparelho de Estado? E é o que parece dizer Lênin quando ele afirma a possibilidade da existência dessas “diferentes formas políticas” sob a ditadura do proletariado. Mas por que é absolutamente necessário, de acordo com uma palavra de Marx e Lênin, que ele também, cometa uma espécie de violência contra a linguagem, “quebrar” ou “destruir” o aparelho de Estado burguês?

Bons observadores, que sabem desde Engels e das metralhadoras que o tempo das barricadas acabou, vêm para nos lembrar que o aparelho de Estado burguês compreende “tropas de homens com armas”, de uma potência desmesurada contra toda insurreição popular, e que ele representa um perigo mortal para toda insurgência das massas revolucionárias (veja o Chile). Mas esses profetas, que falam sempre das armas dos outros, são profetas que desarmam. Pois, mesmo sabendo que são as relações de classe que são determinantes em última instância, quem impede de comparar as forças das classes àquelas dos exércitos? E o que impede de responder de acordo, se se trata de uma questão de relação de força, e se, em tal circunstância, em tal país, em uma determinada época definida, a relação das forças de classe é bem favorável, se a aliança da classe popular for poderosa e ao mesmo tempo (e pelas mesmas razões) o aparelho do Estado burguês for profundamente perturbado e dividido, quer dizer, em alguns dos seus ramos ao menos, em parte, claramente ou confusamente, vencido pela classe popular, – então por que não?

Poderão dizer que seu eu falo assim das forças armadas, para as comparar às forças de classe, pareço falar de insurreição e de guerra civil, portanto da tomada de poder do Estado e não da destruição do aparelho do Estado. Mas não nos enganemos. É uma só e a mesma questão, pois em última instância não combatemos com as mesmas armas, quer se queira tomar o poder do Estado ou destruir o aparelho de Estado. A essa mesma questão, eu respondo com uma pergunta: se todas as condições de forças necessárias forem preenchidas, por que não?

No entanto, Marx e Lênin insistem claramente: “quebrar”, “destruir” o aparelho de Estado. E nós aprendemos a levar essa insistência a sério. Poderiam eles querer dizer, como os anarquistas, que é preciso “fazer tábua rasa do Estado?” Não, uma vez que se trata de substituí-lo por um outro Estado, estado singular, “Estado que seja um não-Estado”, ou ainda, “Comuna”, ou ainda semi-Estado. Esse novo Estado é o Estado da ditadura do proletariado em pessoa. Evidentemente, para que esse Estado singular seja o Estado da ditadura do proletariado, é necessário fazer mais do que transformar o antigo Estado burguês, é necessário “quebrar” e “destruir” uma coisa no Estado burguês: justamente aquilo que faz o Estado da ditadura da burguesia. Mas o quê?

Não podemos responder a essa primeira pergunta: a destruição do aparelho do Estado burguês sem colocar uma segunda pergunta: a deterioração do Estado. O que quer dizer, concretamente, que a questão da destruição do aparelho do Estado burguês só pode ser compreendida a partir da deterioração do Estado, isso quer dizer nas posições do comunismo. Essa condição é absoluta.

Transformada em dominante pela tomada de poder do Estado, a classe trabalhadora não se encontra no mesmo estado que as antigas classes dominantes. Todas as classes dominantes anteriores eram classes exploradoras: elas tinham (pensem na burguesia) feito o seu ninho na antiga sociedade, jogado as bases materiais e sociais de um novo modo de produção, elas tinham se introduzido no aparelho do Estado. Elas não tinham em mente “destruir”, mas simplesmente substituir uma forma de exploração por outra. Isso dava medo? Era possível um acordo. Doando, doando: o aparelho de Estado da antiga classe dominante podia retomar o serviço, bastava transformá-lo sob medida para adaptá-lo à nova forma de exploração. Pedia-se somente isso: que se retomasse o serviço.

A classe trabalhadora é outra classe, farinha de outro saco. É uma classe explorada que não explora nenhuma outra. É a primeira classe na história que chega ao poder sem impor um modo de exploração já instalado na sociedade antiga e sem a cumplicidade objetiva que existe sempre entre as classes exploradoras. A classe trabalhadora não esconde os seus objetivos: o fim da exploração, a sociedade sem classes, o comunismo. E já são mais de 130 anos que ela o proclama, que ela se constituiu de organizações de luta de classe, que ela forneceu a prova de sua resolução por seus sacrifícios. Ela luta com o rosto descoberto pelo comunismo. Ela provoca tanto medo quanto a burguesa já provocou uma vez: com ela não é mais doar, doar. Ela convoca a união popular e pede que o sim seja um sim. O aparelho de Estado burguês pedirá, por meio de uma iluminação miraculosa, para retomar o serviço? A classe trabalhadora ao menos pede para ver.

Pois, quando se pensa na função policial, militar, econômica, política e ideológica do Estado, quando se pensa não somente no Estado visível (as instituições políticas, a polícia, o exército, os tribunais, etc.) mas ainda no Estado invisível, em todas as ligações infinitamente mais sutis porém sólidas da ideologia burguesa dispensada pelos aparelhos ideológicos do Estado, quando se pensa que é necessário não somente controlar esse aparelho de Estado, mas o transformar para ir em direção ao comunismo, então a palavra “transformar” se torna fraca, e a palavra “quebrar” começa a ressoar. Digo apenas isto: entre o mundo da burguesia e o mundo do comunismo, há em alguma parte uma ruptura; entre a ideologia burguesa, que domina, estrutura ou inspira todo o aparelho de Estado, seus diferentes aparelhos (repressivos e ideológicos: do qual o sistema político, o sistema sindical, o sistema escolar, a informação, a “cultura”, a família, etc.), o seu dispositivo, a sua divisão do trabalho, suas práticas, etc. e a ideologia do comunismo, há em alguma parte uma ruptura. “Quebrar” o aparelho de Estado burguês é encontrar cada vez, para cada aparelho, ou mesmo para cada divisão de um aparelho, a forma certa desta ruptura, e a realizar concretamente no próprio aparelho burguês.

Eu tenho, como cada um, uma ideia sobre o sentido dessa “destruição”, mas como são ideias individuais, eu as calo. Não se trata de demolir de um dia para o outro as instituições, nem de despedir os homens a fortiori. A destruição do aparelho do Estado burguês é uma tarefa política que como toda tarefa política exige uma análise, uma estratégia e uma tática, e que, acima de tudo, exige que se reconheça a “conexão decisiva” e o momento oportuno para cada ação, mas roubando-o.  Para tomar apenas um exemplo, Lênin dizia que era necessário quebrar após a tomada de poder do Estado essa peça essencial do aparelho de Estado burguês que é a democracia parlamentar “ativa e viva” eliminando nela particularmente a divisão de trabalho entre o legislativo e o executivo e transformando os eleitos em revogáveis a todo momento pelo povo. Destruição? É na verdade um remanejo profundo, para tornar esse aparelho político apto a servir ao comunismo.

Uma pergunta que permanece, no entanto, em suspenso: quais podem ser as formas políticas nas quais se realiza a ditadura do proletariado?

Creio ter mostrado que não se poderia deduzir da ditadura de uma classe (burguesia, proletariado) as formas políticas nas quais se realiza também essa ditadura. Eu digo também para deixar claro que a ditadura de classe se realiza na escala de toda a sociedade, portanto não somente pelas formas políticas de seu poder, mas também pelas formas de sua exploração econômica e pelas formas de sua dominação ideológica.

É imperativo mencionar essas três formas: econômica, política e ideológica – para não se deixar obcecar por aquilo que se passa somente ao nível dito político.

Dito isso, é necessário antes de mais nada descartar um mal-entendido fundamental que pesa infelizmente ainda sobre a “questão” da ditadura do proletariado e que assimila a DP a diferentes formas possíveis de ditadura politica, quer ela seja o feito de um homem (Stalin) ou de um partido (o PC): a ditadura do proletariado, que se limita a designar o fato da dominação de uma classe na luta de classes, impõe a priori somente a forma politica de sua realização, seja ela a de ditadura, definida politicamente como poder tirânico, seja a de um homem ou de um partido.

Que Lênin tenha podido, em tal momento da história da revolução soviética constatar que a ditadura do proletariado se exercia, de fato, sob a forma da ditadura política do partido bolchevique, confundido com o enorme aparelho do Estado mal desconstituído e fortemente burocratizado, e denunciar esse desvio em termos patéticos, prova de uma vez o risco histórico sempre possível de uma confusão ou de uma degenerescência que Stalin devia conceder com a consciência ou a voz trêmula, mas também a incompatibilidade e a heterogeneidade de princípio dos termos: ditadura do proletariado e forma política da ditadura.

Confusão histórica, incompatibilidade ou heterogeneidade teórica e política dos termos, nós não devemos esconder: nós estamos aqui numa encruzilhada. O que devemos compreender não é que existam caminhos (para isso temos mapas à venda), mas que eles se cruzam, ou melhor, divergem. Nós devemos compreender que, com relação à questão das formas políticas da ditadura do proletariado, há caminhos que se cruzam, não por acaso, mas por necessidade. É essa necessidade que precisa ser explicada, agora ou nunca.

Para ver onde levam os caminhos, sobretudo quando eles se cruzam, é necessário ver longe no espaço futuro: é preciso uma estratégia, a estratégia do comunismo. É preciso ver longe no futuro da luta de classe, sem a qual, dizia Marx, a melhor organização da luta de classe proletária se obscurece no oportunismo: basta que se sacrifiquem os interesses futuros do proletariado em nome dos interesses imediatos.

Porque enfim não se levou a sério, verdadeiramente a sério, o que Marx dizia do socialismo: período de transição entre o modo de produção capitalista e o modo de produção comunista. Não se levou a sério essa simples realidade: não há modo de produção socialista, mas uma transição, a forma inferior do comunismo que se chama socialismo (Marx). E como consequência, não se levou a sério essa outra realidade: não que não exista modo de produção socialista, não existe e (é justo) relações de produção socialistas. E não se levou a sério essa ideia de Marx e de Lênin: a luta de classe se conduz no período de transição chamado de socialismo (e a prova é a de que o Estado permanece) sob novas formas, sem relação visível com as formas familiares ao modo de produção capitalista, mas reais.

O que há por trás de todas essas afirmações concordantes e que a prática de Lênin sob a Revolução soviética nunca desmentiu? Há essa definição do período de transição, portanto do socialismo, de Lênin: período definido pela contradição entre o capitalismo e o comunismo, pela contradição entre “elementos” capitalistas e “elementos” comunistas. Os termos (“elementos”) não são particularmente corretos. Mas há aí uma ideia vaga ou abstrata? Nem um pouco.

Quando a classe trabalhadora, vinda ao poder de Estado, toma suas primeiras medidas, o que ela faz? Ela expropria (por lei, como em Portugal, pela vontade dos trabalhadores: os trabalhadores dos bancos “tomaram o poder em suas empresas”, a lei veio somente depois. Quer ela venha antes ou depois, a lei é simplesmente uma forma de violência feita à realidade estabelecida) os detentores dos meios de produção e troca. Ao fazê-lo, a classe trabalhadora “nacionaliza” os grandes meios de produção e troca. Eis aqui o ponto absolutamente decisivo, a encruzilhada: considerado em si mesmo, esse ato é contraditório. Pois nacionalizar é destruir a classe burguesa em seus bastiões, nacionalizar é, portanto, formalmente desenhar o futuro da apropriação dos meios de produção, é formalmente antecipar a abolição da “separação” entre os produtores diretos e os meios de produção que define o modo de produção capitalista, portanto é formalmente se engajar pela via do comunismo. Mas ao mesmo tempo, nacionalizar é apenas revestir o capitalismo de outra forma, a forma do capitalismo de Estado que assombrava Lênin, e que é apenas a realização da tendência mais profunda do capitalismo, aquela da qual não se quer falar, a de um “capitalismo sem capitalistas”, onde o Estado burguês concentra e distribui as funções de acúmulo de investimento, portanto da reprodução da relação capitalista.

Sim, a relação capitalista, uma vez que o assalariado subsiste e com ele a exploração, e com ela as relações mercantis, quer dizer, o poder do dinheiro.

Estudando as primeiras formas de existência histórica do modo de produção capitalista, Marx distinguia a “submissão formal” (onde as antigas formas de trabalho, a “profissão” dos artesãos subsistem sob a nova relação capitalista : o assalariado) da “submissão real” (onde as antigas formas de trabalho, a “profissão” dos artesãos correspondem a nova relação capitalista de divisão e de organização do trabalho, fim da profissão, trabalho em migalhas, picado, parcializado) correspondente à nova relação capitalista (a concentração, a divisão do trabalho e sua concentração capitalista). É uma contradição desse tipo que se joga na apropriação coletiva dos meios de produção: com essa diferença que é a antiga relação (capitalista) que deve ser submetida à nova forma (comunista).

Eu disse forma comunista: pois ela é, na transformação das condições de produção (propriedade coletiva, planificação) meramente forma, porque ela não inclui a relação de produção (o assalariado) porque ela não toca a organização e a divisão do trabalho. Mas eu digo ao mesmo tempo forma comunista: porque é já é uma formalização, uma submissão que tende ao seu futuro, que espera desse futuro que ele lhe garanta a realidade e a existência. E é verdade que tudo se dá nessa indecisão, nesse cruzamento de caminhos: ou bem a antiga relação capitalista o levará à nova forma comunista ou a nova forma comunista se tornará real e irá se impor como nova relação. Nessa alternativa, o que decide é a relação de força na luta de classes. Mas como dizê-lo? Nesse começo e por um longo tempo, a luta de classes, que permanece ancorada na produção que é seu lugar forte, se desloca em direção a outros lugares e se exprime de outras formas que não tem a ver somente com a produção, mas a superestrutura. A luta de classes se dá no novo Estado, que detém a nova propriedade dos meios de produção e de trocas e em torno desse Estado, em torno do novo caráter de classe desse Estado e do seu aparelho, no partido e em torno do partido da classe trabalhadora, que organizou a luta de classes das massas, nas massas e em torno das massas, de sua capacidade e vontade revolucionárias. É então que se engaja uma enorme e longa prova de força, que se chama a luta de classes sob a ditadura do proletariado, ao mesmo tempo dentro da produção, da política e da ideologia.

Se então nos perguntamos quais são as formas políticas próprias à ditadura de classe do proletariado, elas se originam naturalmente das características próprias e das condições concretas dessa luta de classe. Para que a subsunção formal do comunismo se torne o comunismo real, para que a apropriação formal dos meios de produção se torne real, para que a indecisão da relação de produção penda não para o lado do capitalismo, mas para o lado do comunismo, é necessário que entre em jogo, multiplicados com o máximo de lucidez e de consciência, todas as forças das massas populares na luta de classes. O que tinha aparecido, no instante de um raciocínio, a propósito da única “destruição” do aparelho de Estado, como a invenção de formas novas próprias a destituir o Estado de suas funções transformadas, se torna cem vez mais verdadeiro quando se trata da luta de classes em toda sua amplitude. Sem “a maior democracia de massa”, a luta de classe proletária, ou seja, a ditadura do proletariado, é impossível e impensável.

Democracia, portanto. E Lênin adiciona ainda “democracia até o fim”. Mas estas palavras emprestadas também da linguagem da política existente, quer dizer burguesa, não se enganam quanto ao seu sentido. É de uma outra democracia que a democracia burguesa, parlamentar, com seus escrutínios manipulados, a demagogia de seu dispositivo (tudo pela clientela eleitoral), sua estabilidade artificial (dos eleitos por tantos anos), sua divisão do trabalho interno e externo (o legislativo separado do executivo e do judiciário), etc. que se trata. E quando Lênin diz “democracia até o fim” é preciso segui-lo à margem do rio, para se dar conta de que a democracia de massa começa na outra margem. Que a “democracia de massa” incorpora as formas da democracia parlamentar transformando-as, que ela quebra as interdições de sua divisão do trabalho, não há dúvida. Mas ela “quebra” também a interdição de duas outras grandes divisões do “trabalho” para as quais a democracia parlamentar burguesa é cega: a que se conclui na produção e a que se conclui na ideologia. Como não ver a hipocrisia dessa democracia burguesa que nada quer saber do que se passa no local de trabalho, na exploração, que nada quer saber das condições reais (elas não cansam de mudar), nada saber das condições das condições de alojamento dos trabalhadores, nada saber das suas condições de “transporte” individual ou em comum! Como não denunciar a hipocrisia dessa democracia burguesa que confina, ou seja, estrangula, a política no ato dos eleitores e nas deliberações dos deputados e que ignora soberbamente o que se passa no domínio da ação do aparelho de Estado e dos outros aparelhos ideológicos do Estado?  A democracia de massa, segundo Lênin, são as massas intervindo não só na política, no sentido burguês, pelo sistema parlamentar, mas também dentro do aparelho do Estado, também na produção e na ideologia. É necessário encontrar as formas apropriadas? Sim, e no fim das contas, não é tão difícil assim, mas para encontrá-las é necessário procurá-las e inventá-las, mas para isso é necessário primeiramente sabê-lo e querê-lo. É verdade que não se pode querê-lo se não se reconhece que essas intervenções são vitais para a luta de classes das massas, se não se sabe que o direito, as leis e as normas são os meios e o que está em jogo na luta de classes, se não se sabe que a política, concebida no sentido estrito que a concedeu a burguesia, é algo pequeno no domínio imenso da luta de classes.

Saber isso vem de uma experiência. Ela se dá pela prática das massas. Ela se concentra na experiência da luta de classes. Ela se transmite pela memória das massas que são as organizações da luta de classes. Se o partido comunista não se confundir com o Estado, se ele for atento à vontade das massas, “um passo adiante, mas um passo somente”, e sobretudo não três passos para atrás, ele pode ter um papel decisivo. E seu papel é nesse ponto tão decisivo que podemos muito bem dizer que a posição do partido pode servir de testemunha na encruzilhada dos caminhos da ditadura do proletariado, à boa orientação da tendência histórica. Diz como funciona o partido e te direi quais são as formas políticas da ditadura do proletariado, diz quais são essas formas e te direi se teu Estado se desfaz ou se reforça, diz qual é o teu Estado e te direi de qual classe, proletariado ou burguesia, é a tua ditadura.

É apenas um modo de dizer. Pois se pode afirmar o mesmo juízo tomando as coisas por outro viés completamente diferente. Diz qual é a tua organização de trabalho…diz qual é a tua planificação… diz quais são os teus sindicatos…diz qual é a tua “revolução cultural”, etc. Em todo caso, as questões conduzem à mesma encruzilhada: em qual ditadura se engaja? Em direção a qual ditadura se caminha? E isso quer se queira ou não.

Aqueles que o possam, releiam Lênin e leiam E. Balibar que o explica de maneira luminosa em seu último livro: encontrarão em cada página ou em quase todas essas perguntas, quer dizer, a mesma questão dilacerante, sempre repetida: onde estamos? para onde iremos? A mesma pergunta dilacerante e dramática: porque para se ter uma resposta, é necessário se colocar todas essas questões ao mesmo tempo, e como cada uma remete à outra, é necessário contê-las todas de uma vez. Mas o que mantém todas as questões no espírito de Lênin, nos piores horrores da guerra e da guerra civil, nas catástrofes da fome, nas provas do bloco mundial, é a visão aguda de uma luta impiedosa que vai oscilar em direção a uma ditadura se ela não for mantida pela consciência, pelo esforço, pelo heroísmo e pelo sangue, em outra ditadura, a de uma classe trabalhadora que sabe que ela luta com a vida e à morte. Nós voltamos a: “A ditadura é um palavrão rude, sanguinolento, uma palavra que exprime uma luta impiedosa, uma luta mortífera de duas classes, de dois mundos, de duas épocas da história universal: não se jogam palavras ao vento.”

É bem por isso que eu relembro todos esses pontos da teoria: não se pode deixar intimidar por aqueles que invocam, contra a teoria que os incomoda, uma prática que lhes seja conveniente. A história mostra bem como a teoria marxista, quando não é recitada como uma oração ou invocada como uma autoridade, fala diretamente do real e de modo satisfatório.

Por exemplo, que se destrua ou transforme o aparelho do Estado burguês, se nos fabricam um novo aparelho de Estado e fim de conversa, sem que ele sirva, sob a intervenção das massas, a sua própria desintegração, nós teremos um novo aparelho de Estado burguês. A desintegração deve começar desde a destruição ou transformação. E não se trata de palavras ao vento. O processo começa quando as organizações vindas das massas tomam certas funções do novo Estado: desde a sua instalação, ou mesmo antes. Paradoxalmente, poderá se dizer? Eu não creio. Pois não há tempo único na luta de classes, mas há tempos que se sobrepõem, um em avanço, o outro em espera. Alguma coisa pode começar antes da revolução que será depois o efeito da revolução. Onde? Quando? Basta abrir os olhos. O que são, portanto, as organizações comunistas da luta de classes senão já o comunismo? E o que são as iniciativas populares que vemos nascer aqui e ali, na Espanha, na Itália ou nas usinas, nos bairros, nas escolas, nos manicômios, senão já o comunismo?

Eis por que, pela última vez, eu defendo o conceito de ditadura do proletariado. É o que, restaurado, nos abre a estratégia do comunismo.

Ele nos lembra, e isso é hoje um ponto doloroso e crucial, que o socialismo não é um modo de produção, no qual “relações de produção socialista” “corresponderiam” a forças produtivas definidas: não há relações de produção socialistas. [Ele nos lembra] que o socialismo não é essa sociedade estável, dotada de um Estado monopolista potente que sabe se resguardar das crises e distribuir segurança de emprego e de serviços sociais, – mas um “período de transição” contraditório onde, se tudo caminha como previsto, os elementos comunistas prevalecem a cada dia um pouco mais sobre os elementos capitalistas, onde a luta de classes e as classes continuam sob novas formas e onde a iniciativa das massas se apropria cada vez mais funções de Estado, na perspectiva, não de um socialismo desenvolvido, mas simplesmente de comunismo.

E uma vez que se fala de comunismo, o conceito de ditadura do proletariado nos lembra também e acima de tudo, que o comunismo não é uma palavra, nem um sonho por um futuro perdido qualquer. O comunismo é nossa única estratégia e, como toda estratégia verdadeira, não somente ele comanda hoje, mas começa hoje. Melhor: já começou. Ele nos repete a velha palavra de Marx: o comunismo não é para nós um ideal, mas o movimento real que se produz sob nossos olhos. Sim, real. O comunismo é uma tendência objetiva já inscrita na nossa sociedade. A coletivização acumulada da produção capitalista, as formas de organização e de luta do movimento operário, as iniciativas das massas populares e porque certas audácias de artistas, escritores, pesquisadores, são a partir de hoje esboços e rastros de comunismo.

É preciso acreditar que Lênin dizia algo semelhante quando, com suas próprias palavras, que são também as nossas, afirmava: a ditadura do proletariado é a democracia das grandes massas, uma liberdade que os homens jamais conheceram!

6 de julho de 1976

Esse texto inédito é reproduzido aqui com a generosa autorização de François Boddaert et o concurso do Instituto Memórias da edição contemporânea (IMEC).

Um grande agradecimento à Lucie-Lou Pignot e a Maria Suveran pelo precioso trabalho de transcrição.

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1 comentário em “Conferência sobre a ditadura do proletariado em Barcelona”

  1. Bom dia, excelente texto e muito atual, ditadura do proletariado, violência, sua relação, inclusive os arautos da não violência, e no texto tem uma frase que não é simplismente um axioma, é o que nós vemo em grande medida, ele diz: ” Mas esses profetas, que falam sempre das armas dos outros, são profetas que desarmam.” Saudações e abraços!

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