Prefácio à edição inglesa de “Sobre a ditadura do Proletariado”, de Étienne Balibar.

Por Grahame Lock, traduzido por Eliabe Barbosa.

Assim, somos obrigados a concluir com Étienne Balibar que aqueles que abandonam a ditadura do proletariado são conscientemente ou não, motivados não pelo desejo de preservar ou estender a democracia mas sim pelo medo do que a genuína democracia de massa possa realmente significar (…)


“Penso que é inapropriado gritar aos quatro ventos que isso ou aquilo seria o verdadeiro Leninismo. Eu estava recentemente relendo os primeiros capítulos de O Estado e a Revolução (…) onde Lênin escreve “O que acontece agora com a teoria de Marx(…) aconteceu muitas vezes através da história com as doutrinas dos pensadores revolucionários (…) Tentativas foram feitas para os converter em ídolos inofensivos, para os canonizar, em outras palavras, para esvaziar seus nomes (…) ao mesmo tempo que roubam da teoria sua substância revolucionária”. Penso que essa dura citação nos obriga a não esconder tais e quais concepções sob o rótulo do Leninismo, mas sim a chegar na raiz de todas as questões. (…) Para nós, marxistas, a verdade é o que corresponde com a realidade. Vladimir Ilitch costumava dizer: O ensinamento de Marx é poderoso porque é verdadeiro (…) A tarefa do nosso Congresso é buscar encontrar a linha correta (…) Bukharin declarou aqui com toda ênfase que o que o Congresso vier a decidir será sempre o correto. E Todo Bolchevique aceita as decisões do Congresso de forma compulsória. Mas nós não devemos adotar essa noção da constituição inglesa de que o Parlamento pode vir a decidir qualquer coisa, até transformar um homem em mulher(…).”

Nadejda Krupskaia em discurso para o 14º Congresso do PCUS, 1925[1]

Nada e nem ninguém, nem mesmo o Congresso de um Partido Comunista, pode abolir a ditadura do proletariado. Essa é a mais importante conclusão do livro de Étienne Balibar [Sobre a Ditadura do Proletariado, sem edição no Brasil]. A razão é que a ditadura do proletariado não é uma política ou uma estratégia envolvendo o estabelecimento de uma forma particular de governo e instituições, mas sim uma realidade histórica. Mais precisamente, uma realidade com raízes no próprio capitalismo e que cobre todo o período de transição ao comunismo. “A realidade de uma tendência histórica”, uma tendência que começa a se desenvolver dentro do capitalismo em uma luta contra o próprio sistema. Não é “um caminho possível de transição ao socialismo”, um caminho que pode ser “escolhido” dentro de certas condições históricas (ex: a “atrasada” Rússia de 1917) e que portanto pode ser rejeitada por outro caminho “democrático” na “avançada” e industrializada Europa Ocidental. Não é uma questão de escolha ou uma questão de estratégia e por isso não pode ser “abandonada”, assim como não pode ser “abandonada” a luta de classes, exceto no discurso e ao custo de uma enorme confusão.

Balibar enumera as razões para essa conclusão diante do contexto do 22º Congresso do Partido Comunista Francês (PCF), que ficou famoso por decidir“abandonar” a busca pela ditadura do proletariado, substituindo pela estratégia de uma via “democrática” para o socialismo. Suas referências são geralmente argumentos apresentados dentro do PCF. Porém, fica bastante claro que o significado desse livro é maior, não só pelas diferenças econômicas e políticas de cada país europeu, mas porque também muitos dos Partidos Comunistas estão caminhando para uma direção ideológica similar, usando argumentos parecidos para essas novas posições.

Apesar dessas observações, é provável que a própria ideia de debater a questão da ditadura do proletariado possa parecer estranha para a situação inglesa. Um livro que argumenta para a necessidade da ditadura do proletariado poderá à primeira vista parecer bizarro. Que melhor exemplo de excentricidade do que invocar tal argumento em um país sem uma forte presença marxista no movimento sindical, ou sem um poderoso Partido revolucionário, onde as tradições do parlamentarismo e da moderação política são tão profundas? E se há alguma justificativa marxista para o “abandono” da ditadura do proletariado – como os Partidos de França, Itália, Espanha, Portugal e Japão acreditam – então por qual motivo haveria os comunistas britânicos de questionar?

O termo ditadura do proletariado soa não apenas datado e fora de moda, mas também desagradável. Como poderia a esquerda condenar as ditaduras no Chile, na Argentina, no Irã ou na Coréia do Sul, se ela propõe instalar uma própria? E se o termo ditadura é desagradável, “do proletariado” então parece absurdo (tente sugerir a um operário britânico de que é um proletário). Fica fácil então imaginar o alívio que os comunistas britânicos sentiram, talvez mais do que em qualquer outro lugar, em saber que o “abandono” da ditadura do proletariado também seria plausível em suas terras (a mesma em que Karl Marx ‘inventou’ o termo).

Quem dera as coisas fossem tão simples… Infelizmente não são. E esse livro indica algumas razões do porquê. Não é sua intenção responder a todas as questões que são levantadas, mas contribuir para um genuíno debate. Esse grande debate teórico deverá ocorrer e possuir um caráter internacional, embora ao mesmo tempo não deva servir de oportunidade para que um Partido interfira nas decisões de outro.

Apesar das maiores diferenças em relação aos estados europeus, é impossível, como já apontei aqui, não notar que muitos PCs tenham chegado a posições tão semelhantes acerca da necessidade de modificar princípios teóricos e práticos que antes defendiam. Esse fenômeno foi nomeado como “Eurocomunismo” por razões não tão transparentes quanto deveriam. De qualquer forma, esses Partidos têm no geral tomado posições que os colocam em conflito com a União Soviética em diferentes questões, principalmente em relação às noções de “liberdade” e “direitos humanos”. Ficou assim possível para alguns concluir que haveria dois tipos de comunismo na europa: um de  vertente “Ocidental” e outro “Oriental”. Dessa forma, ficou decidido que qualquer debate acerca de questões fundamentais como a da ditadura do proletariado deveriam se resumir basicamente a um debate entre duas vertentes – por exemplo, de um lado os PCs Francês e Britânico e de outro o Soviético e Húngaro.

Com isso, faço duas observações:

Primeiro, de que essa forma de apresentar a questão sugere, erroneamente, que existem somente duas alternativas: a rejeição da ditadura do proletariado e a adoção de uma via democrática ao socialismo ou a reprodução acrítica das teses do bloco soviético.

Segundo, se levanta a questão: Não seria esse “Eurocomunismo” a substituição de um dogmatismo por outro?

Claro que o leitor pode no decorrer do livro notar com bastante frequência citações e referências a Lenin e até concluir que, de alguma forma, o próprio autor estaria aprisionado em uma forma de dogmatismo, desde que o mesmo é incapaz de romper com o passado da Revolução Russa. O leitor pode inclusive concluir que o livro é uma simples tentativa de comparar mecanicamente Lenin e o Comunismo “oficial”, em detrimento do último.Todavia não é essa a intenção do autor, por duas razões muito importantes:

  • É verdade, como os opositores da ditadura do proletariado afirmam, que o mundo mudou muito desde os tempos de Lenin. Eles argumentam que seria absurdo tentar encontrar todas as respostas aos problemas presentes simplesmente voltando a Lênin. A questão, no entanto, é: De que forma o mundo mudou e o que mudou? E nessa conexão é notável que os argumentos usados pelos oponentes da ditadura do proletariado ainda continuam sendo os mesmos, datando desde o começo do século ou do final do século passado, sendo há sessenta anos objetos de uma forte crítica através de Lenin. Dessa forma, o absurdo seria não voltar a ele.
  • A segunda razão é que nem sempre Lenin estava certo, mesmo em sua época. E é estranho observar que os mesmos Marxistas que afirmam que Lenin estaria datado (ou usando a linguagem filosófica de alguns “tenha transcendido a história”) são os mesmos que assumem que em sua época ele estava sempre certo. Pois Lenin se encontra hoje canonizado, seu nome é continuamente esvaziado para que continuem roubando de sua teoria a substância revolucionária.

Em um dos melhores livros publicados sobre o tema[2], Robert Linhart mostra que Lenin nunca considerou haver descoberto a resposta final para cada problema, e que em muitas questões fundamentais ele estava certo de que não havia[3]. Mudou muitas vezes sua posição em questões importantes dentro de um curto espaço de tempo. O próprio Balibar nos dá um exemplo: A retificação de Lenin sobre a questão dos sindicatos entre 1919 e 1921. Apesar do fato de que essas mudanças foram obviamente provocadas pelos estudos dos problemas particulares da Revolução Russa, elas também tangenciam muitos aspectos da luta pelo comunismo, particularmente no que diz respeito à realização da democracia de massa – incluindo no tocante ao controle da produção – que evitariam a queda ao burocratismo ou ao anarco sindicalismo (como advogado pela chamada Oposição Operária)[4]. Seria absurdo imaginar que Lenin poderia gastar tanto tempo tentando encontrar respostas para esses problemas sem considerar o significado maior para além das circunstâncias imediatas da nova República Soviética.

A importância desse ponto é óbvia: porque se (1) os esforços de Lenin foram direcionados não para simplesmente resolver questões imediatas mas também para esclarecer maiores problemas envolvendo a transição ao comunismo e se (2) ele não estava certo sobre a solução para alguns dos problemas, muitas vezes mudando de posição ou até se contradizendo, se torna impossível concluir se seus acertos ( incluindo a defesa da ditadura do proletariado) são relevantes apenas paras as dificuldades particulares da Rússia “atrasada” ou se seus erros, em particular sua tendência em diminuir a importância da democracia de massa, possam ser “corrigidos” pelos comunistas europeus que são demasiadamente sortudos por viverem em países com “forte tradição democrática”. A impressão que se pode chegar com esse raciocínio é que há dois “modelos de socialismo”: um oriental, baseado historicamente em circunstâncias “primitivas” as quais esse deve se contentar e um ocidental, possível em condições existentes na França, na Itália, na Grã-Bretanha, como também na Espanha e no Japão, que evitaria qualquer forma de “ditadura”, incluindo a do proletariado. Essa impressão permite que comunistas europeus reforcem suas posições sobre a URSS, onde eles consideram sofrer de suas origens primitivas, ao mesmo tempo que permite que o governo Soviético reafirme suas teses recalcitrantes sobre a ditadura do proletariado.

O que é impressionante em relação a esse raciocínio são suas premissas básicas: o abstrato contraste entre “ditadura” e “democracia” em ordem de louvar a última e condenar a primeira (óbvio não?), como também a identificação do Leninismo como prática específica para as condições da Rússia. Essas são, por exemplo, premissas do livro de Karl Kautsky intitulado A Ditadura do Proletariado (1918), as quais Lênin criticou em seu panfleto A Revolução Proletária e o Renegado Kautsky. Assim, a relevância dos escritos de Lênin mais uma vez se confirma.

Kautsky usa a identificação do Leninismo com as condições existentes na Rússia para o condenar (o que nos lembra a insistência da Social-Democracia, que como os Mencheviques afirmava que os Bolcheviques tentaram um caminho mais curto para o socialismo), mas o mesmo pode ser usado por comunistas de hoje para “cobrir as deficiências” de Lenin e “explicar” suas falhas e limites “ transcendidos pela história”.

Chamando a atenção para a questão da ditadura, Kautsky argumenta que desde que “os exploradores sempre constituíram uma pequena parcela da população”, o governo do proletariado não precisaria assumir uma forma “incompatível com a democracia”. Lenin comentou que “a ‘pura’ e ‘simples’ democracia a qual Kautsky falava era pura bobagem. “Kautsky, com a sapiência de um doutíssimo imbecil de gabinete ou com a candura de uma menina de dez anos, pergunta: Por que se precisa de ditadura se temos a maioria?”[5]

Uma questão “inocente” por se fundamentar em algo aparentemente óbvio. Eu gostaria de perguntar ao leitor se essa não é a mesma noção “óbvia” na qual se fundamentam muitos Partidos Comunistas do ocidente, incluindo o Partido Britânico, quando defendem que a ditadura do proletariado é uma ideia datada e que a via democrática ao socialismo é uma possibilidade real, já que hoje seria possível ganhar a maioria da população em uma ampla aliança “anti monopolista”. Eu não irei negar aqui a necessidade de lutar pela maior aliança possível no meio do povo ou que o capital monopolista (imperialista) constitua a principal fração da classe dominante (…). Mas esse tipo de consideração se torna inútil sem uma urgente análise concreta das principais contradições (antagônicas e não-antagônicas) como também dos interesses comuns entre o proletariado e as demais classes, principalmente se ao invés disso for usada como forma de defender a velha oposição entre “ditadura” e “democracia”. Enquanto Lênin, nas condições da Revolução bolchevique ( um pequeno proletariado em um mar camponês), corretamente insistiu pela necessidade da ditadura do proletariado [6], no ocidente ainda afirmam ser possível caminhar em uma via democrática para o socialismo. Assim, “democracia” e “ditadura” são interpretados como formas de governo ou como formas políticas e institucionais. E mesmo nesse ponto, Lenin é perfeitamente claro:

“Os estados burgueses são variados na forma, mas iguais na essência: todos esses estados, seja qual for a sua forma, em última análise são uma ditadura burguesa. A transição entre capitalismo e comunismo certamente possuirá uma variedade de formas políticas, mas sua essência serão inevitavelmente a mesma: a ditadura do proletariado”[7]

Eu gostaria, em ordem de melhor ilustrar a relevância desse livro para o debate que deve ser feito (…) citar um artigo de Jack Woddis (membro do Partido Comunista Britânico) no Marxism Today de Novembro de 1976, intitulado “The State – Some Problems” (…) O artigo de Woddis possui o mérito de analisar o desenvolvimento recente do capitalismo e considerar quais mudanças requerem a atenção dos marxistas britânicos. Entretanto, eu penso que seria impossível concordar com todas suas teses, e devo demonstrar o porquê.

Primeiro de tudo, Woddis sugere que a razão pela qual Lenin insistiu na necessidade de esmagar o estado era por ter percebido a impossibilidade de ganhar a maioria para o socialismo. Segue que em casos onde seria possível ganhar tal maioria, o esmagamento do estado seria desnecessário (…) No entanto, essa não é a tese de Lenin. É bem claro para nós, que com o esmagamento do estado Lenin não se referia apenas a revolução russa mas a todas as revoluções contra o capital, pois isso implica em sua concepção geral do estado. Por exemplo, ao ironizar as posições de Kautsky (“lutem, mas não ousem ganhar! Não destruam a máquina burguesa””), Lenin comenta que “Qualquer um que compartilhe a concepção Marxista de que o estado é uma máquina de dominação de uma classe sobre a outra, e todos os que tenham refletido sobre essa verdade, nunca poderão chegar a conclusão absurda de que os sovietes capazes de derrotar o capital não possam se tornar organizações do estado”. Esse era o ponto que traia a pequena burguesia que acredita no estado acima das classes.[8]

E esse é o xis de toda a questão: a ideia de que o estado possa estar acima das classes, acima da luta de classes. Essa é, todavia, a posição adotada por Woddis, quando argumenta o seguinte: “O lado não-coercitivo do estado britânico é muito mais aberto, e possui um corpo de funcionários ainda maior do que o estado russo. Nossas instituições de estado compreendem diversos ramos da economia e indústrias estatais, como também serviços de saúde e educação, serviço social, etc. O necessário a se fazer nesses setores é uma transformação democrática, formas de controle democrático, não a destruição desses corpos que sob o socialismo podem realmente servir aos interesses do povo, uma vez que mudanças democráticas sejam feitas.”(Woddis, 1976, p.341)

Se abrirem no segundo apêndice de A Revolução Proletária e o Renegado Kautsky os leitores encontrarão uma passagem que refuta esse argumento, na ocasião com o socialista belga Emile Vandervelde. Assim como Woddis, Vandervelde distinguia um lado não-coercitivo do estado, como se esse fosse um representante geral dos interesses da sociedade. Seu programa era portanto “a transformação do Estado atual, órgão de dominação de uma classe sobre outra, naquilo a que Menger chama de Estado popular do trabalho, mediante a conquista do poder político pelo proletariado.”[9]  E o que Lenin comenta sobre esse programa, sobre a ideia de que o objetivo da conquista do poder é pôr termo ao uso do estado como meio de coerção enquanto expande seu lado não-coercitivo? Lênin comenta: “Os seguidores de Kautsky e Vandervelde nada dizem sobre o fato de que o meio entre o estado como um órgão de domínio da classe capitalista e o estado como um órgão de domínio do proletariado é a revolução, o derrubamento da burguesia e a destruição, o esmagamento de seu aparelho de estado.” A razão é que eles “obscurecem o fato de que a ditadura da burguesia deve ser substituída pela ditadura de uma só classe, o proletariado”. Assim, a negação da necessidade de esmagar o estado capitalista segue diretamente uma outra concepção geral sobre o estado, o que explica essa noção de ditadura do proletariado. Lênin conclui: “Vandervelde cita Marx e Engels com extraordinário zelo, tal como Kautsky. E tal como Kautsky, cita de Marx e Engels tudo o que se queira menos aquilo que a burguesia de modo nenhum pode aceitar (…) Mas sobre o fato de que Marx e Engels, depois da experiência da Comuna, julgaram necessário completar o Manifesto Comunista, parcialmente obsoleto, com a explicação de que a classe operária não pode simplesmente apoderar-se da máquina de Estado já pronta, que deve destruí-la — sobre isto nem uma só palavrinha! Vandervelde, tal como Kautsky, como se tivessem combinado, elude com um completo silêncio exatamente o mais essencial da experiência da revolução proletária, exatamente aquilo que distingue a revolução do proletariado das reformas da burguesia.”.[10]

Fica então muito clara a insistência de Lenin no que ele chama de “o principal ponto, o esmagamento do antigo aparelho democrático de estado burguês”, algo que está diretamente ligado com a insistência da necessidade da ditadura do proletariado. Mas como essa insistência se aplica a todos os estados burgueses – e não apenas a Rússia de 1917 – a transição do capitalismo para o comunismo será sempre, inevitavelmente, a ditadura do proletariado.

É verdade que há na Grã-bretanha, como em todo lugar, pequenos grupos marxistas que se caracterizam por seu “anti cretinismo parlamentar” e que constantemente confundem e diminuem a questão parlamentar pela idéia das massas tomando o parlamento de forma semelhante a invasão do Palácio de Inverno em Petrogrado. Mas esse não é o verdadeiro significado da questão. (…) E em um momento veremos o porquê.

O problema com a posição de Woddis está precisamente em sua concepção de ditadura do proletariado, mesmo embora o termo pouco apareça em seu artigo. A razão é que ele associa a noção de “ditadura” exclusivamente com a coerção, com a violenta destruição do aparelho de estado existente, e assim com a instalação de outro, igualmente coercitivo (mas agora direcionado a outras classes, especialmente as antigas classes exploradoras). Assim, a ditadura do proletariado é mais uma vez identificada com uma forma de governo – uma forma ditatorial, coercitiva, sem representação, eleições, liberdade de expressão e associação, direitos civis, etc. No entanto, Lênin explicitamente aponta para o fato de que a ditadura do proletariado (1) nada tem a ver com forma política [11] e (2) se bem examinada, lida com um problema maior: como o proletariado poderá exercer sua ditadura sobre as classes exploradoras?

Lênin frisa que em O Estado e A Revolução nada disse sobre a restrição dos direitos políticos e civis e que “deve ser observado que a questão da restrição dos direitos políticos é uma questão nacional e não geral da ditadura” e um pouco adiante “a restrição de direitos não faz parte como condição necessária do conceito histórico e de classe de ditadura.”[12]. Mas Kautsky, a quem Lenin se direciona, “se encontra exclusivamente interessado no aspecto formal e legal da questão.” Esse é o ponto crucial: a ditadura do proletariado não pode ser definida em termos de um sistema particular de instituições – no sentido formal, legal ou constitucional – ou seja, como um sistema resumido na coerção, mas como uma genuína democracia de massa, seja quais forem as formas institucionais na quais essa democracia se realiza e se desenvolve. [13]

“Mas o que significa a insistência de Lênin na necessidade de esmagar o estado como passo para a ditadura do proletariado?” A chave para a resposta já temos: Assim como seria errado identificar a ditadura do proletariado como uma forma de governo simplesmente coercitiva, também seria errado resumir o processo de destruição do aparelho de estado capitalista em uma série de eventos violentos contra instituições particulares. O ponto vital para o esmagamento ou a destruição do aparelho burguês somente pode ser entendida em termos da necessidade de quebrar o sistema de relações que sustentam o aparelho de estado em sua capacidade de resistência, destruindo a divisão entre trabalho manual e trabalho intelectual que não somente sobrevive na sociedade capitalista contemporânea, como também dentro do que Woddis chama de “lados não-coercitivos” do estado. A necessidade de esmagar e destruir o estado burguês, de destruir a divisão de trabalho, ao mesmo tempo raiz e reflexo das profundas contradições de classe é, portanto, maior do que nunca nos nossos tempos e ainda maior do que era nos tempos de Lenin.

E isso nos leva a um outro ponto: abandonar a ideia de destruir o estado – propriamente entendida e não confundida somente com a noção da força – é fechar os olhos para as contradições reais e materiais que derivam e se expressam na divisão do trabalho, e assim cegar outros e a si mesmo para os graves problemas que surgem na contínua existência dessa divisão após a revolução. Consequentemente, essa atitude ajuda a criar a impressão de que quaisquer contradições que surjam no período pós-revolucionário não possuem uma causa material, sendo portanto vistas como problemas de falta de consciência, resquício da velha sociedade, de propaganda, etc. Consequência: os principais meios de luta no “socialismo” se tornam “ideológicos”, no sentido de corrigir falsas ideias. Não posso deixar de mencionar o fato de que essa curiosa noção idealista de socialismo, acompanhada por uma noção também idealista de ideologia, é algumas vezes “legitimada” pelo (mal)uso de um termo tomado dos escritos de Antonio Gramsci: a hegemonia. É defendido que Gramsci, chamando a atenção para o importante papel desempenhado pela propaganda (pelo sistema educacional/cultural) na manutenção de poder da classe dominante, tornou possível corrigir a ênfase de Lenin no papel repressivo do estado, inclusive do estado proletário, o que abriu caminho para a noção moderna de socialismo desenvolvida pelos Partidos Comunistas europeus. Jack Woddis também apresenta argumentos parecidos. No entanto, sua força deriva somente na atribuição a Gramsci de uma noção igualmente idealista de ideologia, isto é, uma interpretação idealista de seu conceito de hegemonia e portanto de todo seu trabalho.

Por que estou falando aqui de uma concepção idealista de ideologia? Por que na verdade essa concepção é completamente estranha à teoria Marxista da luta de classes (…). Nós já vimos um exemplo: ao evitar, ignorar e assim negar as contradições envolvidas na divisão entre trabalho manual e intelectual (dentro do aparelho proletário mas também fora dele ), se torna impossível compreender os sintomas e expressões dessas contradições no socialismo exceto como remanescentes ideológicos de um período anterior: se tornam nada além de ideias que podem ser combatidas e substituídas por outras através da propaganda. E esse é o motivo do porquê essa concepção ser idealista.

Na verdade, é uma concepção idealista antiga, por conta da identificação da ideologia com uma “falsa consciência” que resulta de um processo de “desvio”, uma noção datada do século XVIII (presente por exemplo, nos escritos de Rousseau). Essa concepção pode fazer sentido, pelo importante motivo que devo explicitar nas próximas páginas, mas devo resumir desde já: certas posições teóricas hoje defendidas por alguns membros do PC da Grã-bretanha e de outros, nos lembra de outra concepção do século XVIII e portanto, pré-marxista: Falo de uma definição de “classes” não em termos de uma relação fundamentalmente antagônica, entre por exemplo a burguesia de um lado e o proletariado do outro, mas de uma relação agrupada (por ex: classe trabalhadora junto a classe média, média burguesia, burguesia monopolista) em que cada uma dessas classes possuem seus próprios interesses isolados (noção também presente em Rousseau). Devo tentar esclarecer o conteúdo e as implicações dessa definição.

Jack Woddis trata em detalhes a questão do que é deter o poder do estado, de forma a distrair a atenção para uma outra questão igualmente importante que é: quem detém o poder do estado? Ele assume através do seu artigo que a resposta é óbvia: a “burguesia monopolista”. O que é menos óbvio do que parece. Por que, enquanto Woddis fala de “burguesia monopolista”, Lenin, na passagem citada por Woddis, fala sempre em burguesia ou capitalistas. Qual é a diferença?(…). O termo a que Woddis se refere vem da teoria do “Capitalismo Monopolista de Estado”, que é hoje quase oficial entre muitos Partidos Comunistas. Nós podemos assumir então que é a essa teoria que Woddis se refere[14]. Existem outras versões dessa teoria por aí, mas penso que nenhuma difere tanto da outra, de forma que devo tratar como se fosse uma só[15]. Agora, de acordo com essa teoria, assume-se que o poder do estado pertence não à burguesia ou à classe capitalista como um todo, mas ao capital monopolista. Podem haver algumas referências à ditadura da burguesia ou algo similar, mas para todos os efeitos, são os monopólios ou a burguesia monopolista, algumas vezes até a grande burguesia monopolista sozinha que detém para si o poder do estado. Porém esse argumento parece violar a tese marxista de que o poder do estado é sempre mantido por uma só classe, isto é, uma inteira classe, não somente por uma de suas frações, mesmo que ela exerça um papel dominante no poder do estado. A diferença entre essas duas teses é assim muito maior do que a simples afirmação sugeria. Por exemplo, a teoria do “Capitalismo Monopolista de Estado” diz que somente o capital monopolista possui o interesse objetivo de defender o capitalismo, pois enquanto os monopólios produzem “super-lucros”, os lucros das pequenas e médias empresas caem, de forma que seus detentores são forçados a resistir dentro de uma aliança anti monopolista (anti-imperialista).

Marx e Lênin, pelo contrário, argumentam que a burguesia como um todo detém o poder do estado e não somente essa ou aquela fração. Note que isso não se deve pelo fato de que em suas épocas o capital monopolista ainda não estivesse emergido ou ganhado uma posição dominante, mas porque em primeiro lugar eles não se detinham a questão da existência ou não, da dominação ou não, de uma dada fração do capital em um momento histórico, mas sim ao estado como um instrumento de dominação de classe, necessariamente burguesia ou proletariado[16]. A consequência disso é que todos os estados modernos são ou ditadura da burguesia ou ditadura do proletariado. Que em certo momento no desenvolvimento da burguesia tenha se estabelecido em seu meio uma fração dominante, isso é algo claro (como era também nos tempos de Marx e Lenin), mas notem que nada disso os fizeram concluir que o poder do estado residisse nas mãos da fração dominante da burguesia.(…)

Mas o que levou então Marx e depois Lenin a concluir que a classe capitalista como um todo detém o poder do estado? É que (1) o estado é definido como sendo ao mesmo tempo um produto do antagonismo de classe e um instrumento de dominação dessas classes, (2) esse antagonismo não é puramente político (proveniente da desigualdade econômica e cultural, da pobreza, etc) mas surge essencialmente da relação de produção capitalista, (3) essa relação de produção é definida primeiro em termos de exploração (extração de mais-valia), e (4) é uma relação que envolve classes (não frações), na qual a classe exploradora é a burguesia. O processo de acumulação capitalista deve portanto ser definido como um único (e complexo) processo em que todas as frações da burguesia estão unidas no que tange à exploração da classe trabalhadora. Isso é verdade mesmo quando o processo de distribuição da mais-valia favorece implacavelmente o capital monopolista (o que obviamente é o caso hoje) e continua sendo assim mesmo que novas contradições surjam dentro da classe capitalista entre suas diferentes frações ( o que a classe trabalhadora e sua liderança política devem certamente fazer uso).

Esse argumento não é um mero exercício de lógica: possui consequências políticas concretas. E devo enumerá-las

  • Não se sugere que a pequena e média burguesia forme um único bloco reacionário. Pelo contrário. O que se implica é que existem boas razões materiais para o fato observável de que é extremamente difícil separar essas frações da grande burguesia, ao menos em alguma base política e considerando qualquer período substancial de tempo. Certas consequências, portanto, surgem em relação às táticas e estratégias do Movimento Marxista, nos lembrando que as divisões existentes na classe burguesa estão relacionadas com as divisões existentes dentro da classe trabalhadora. É essa relação e essas divisões que tornam as coisas muito mais complicadas do que o cenário desenhado pela teoria do “Capitalismo Monopolista de Estado” sugere.
  • De acordo com essa teoria, a burguesia como classe tende a desaparecer, restando apenas o capital monopolista. Não deve ser surpresa então que analogamente se conclui que o proletariado também tende a desaparecer, inteiramente ou como núcleo da classe trabalhadora. Menos surpreende ainda que os teóricos do “Capitalismo Monopolista de Estado” concluam que, por essa razão, a ideia da ditadura do proletariado deva ser abandonada.
  • Uma vez abandonada a ditadura do proletariado, se torna possível esclarecer de forma mais consistente a concepção de transição socialista defendida por Stalin. Pois a concepção de transição socialista defendida pelos comunistas que apoiam o abandono da ditadura do proletariado nessas bases teóricas, deriva, em última instância, de Stalin, que revisou a concepção Leniniana ao menos nesse aspecto. As diferenças podem, de forma bem esquemática, serem ilustradas no seguinte diagrama [17].

                                    Diagrama 1: Concepção Marxiana/Leniniana

Capitalismo——>Comunismo Inferior ou transição para o Comunismo—>Comunismo

Estado burguês->ditadura do proletariado (socialismo)————————>fim do estado

————luta de classes ————————————————————–>fim das classes

Essa concepção foi abandonada por Stalin, que introduziu uma outra:

Diagrama 2: Concepção Staliniana

Capitalismo—–>Transição para o Socialismo->Transição para o Comunismo->Comunismo

Estado burguês->ditadura do proletariado->Estado de todo povo(socialismo)->fim do estado

————luta de classes ———————–>Colaboração de classes——–>fim das classes

[nota: os diagramas acima foram adaptados pelo tradutor em via de facilitar a compreensão ao mesmo tempo que mantendo o sentido original. Em seu livro, Balibar comenta (embora reconheça que Marx tenha feito a formulação de forma bem geral uma vez que não procurava ser nenhum profeta), a diferença entre a transição dialética para o comunismo apresentada e desenvolvida por Marx e Lênin e uma não dialética porém mecânica de Stalin, em que cada um dos diferentes estágios isolados sucedem o anterior após serem completados.  (Balibar, On the Dictatorship of the proletariat. NLB. 1977. p.52-54) ]

Para Stalin, o socialismo não era necessariamente um período da luta de classes, mas um período de colaboração de classes (ver a constituição soviética de 1936 e o debate em torno de sua elaboração), permanecendo como “estado socialista”. Algo muito curioso, dado que Marx e Lênin sempre defenderam que a existência do estado estava relacionada com a existência das classes e da luta de classes, que é restringida na concepção staliniana a um período de transição não ao comunismo mas ao “socialismo”. Para introduzir um período a mais, Stalin apresentou uma lógica nova em sua concepção de transição. Mas teve de fazer ainda mais, já que não podia admitir o que Lenin insistia ser a natureza contraditória do estado proletário (ao mesmo tempo que o estado proletário defende o proletariado contra seus inimigos, permanece como uma ameaça na qual o proletariado deve se defender contra [18]). Stalin tinha de transformar a ditadura do proletariado de uma tendência histórica (…) a um simples arranjo de instituições estatais, mesmo que ainda mantendo o nome de “Sovietes”.

Os atuais defensores do abandono da ditadura do proletariado somente usaram dessa concepção para a desenvolver um pouco mais. Eles desejam abolir a ditadura do proletariado, mas ainda no capitalismo, e podem fazê-lo somente porque abolem a luta de classes, não importando o quão incrível isso pareça. Claro que o termo “classes” continua sendo empregado, porém, não mais em termos Marxistas, onde as classes não são definidas sociologicamente, como uma forma de classificação de uma população (o que é somente uma versão moderna da noção pré-marxista de interesses isolados a qual me referi antes), mas em termos do antagonismo de duas classes da sociedade capitalista: a burguesia e o proletariado. Pois é impossível analisar tal antagonismo sem destacar o essencial papel exercido pelo processo de exploração (em que essa relação antagônica é materialmente explícita) tendo o estado como uminstrumento de domínio da classe dominante. Dessa forma, uma vez abandonada essa noção básica para o Marxismo e para o Leninismo de que o poder se encontra nas mãos de uma classe, isto é, de que o estado é uma ditadura de classe, se torna possível abandonar a ideia de que o capitalismo é a ditadura da burguesia. E uma vez abandonada a definição de burguesia em termos marxistas (e portanto também de proletariado), naturalmente se conclui que a noção de ditadura do proletariado é portanto supérflua, pois essa classe já não existe, exceto como categoria sociológica. É por todas essas razões que existe uma conexão muito próxima entre a teoria do “Capitalismo Monopolista de Estado” e o abandono da ditadura do proletariado, abandono que não necessariamente se expressa no oportunismo eleitoral.

Ao mesmo tempo, não podemos identificar o abandono da ditadura do proletariado com o processo de “desestalinização”. Pelo contrário, é uma questão de apontar as discrepâncias stalinistas, pois Stalin, sucedendo Lenin, não poderia abandonar completamente o último (inclusive em relação ao vocabulário, o termo “ditadura do proletariado” serviria ainda a muitos propósitos). Vale a pena ressaltar que os julgamentos, depurações, campos de trabalho forçado, etc, que caracterizam o período stalinista seguiram após a constituição de 1936, em que se efetivamente abandona a ditadura do proletariado.

É bastante óbvio que abandonando a ditadura do proletariado, os comunistas ocidentais aproveitem também para romper com o stalinismo (…) E em um certo sentido, deve ser admitido que eles de fato romperam. Pois suas novas posições certamente não são, apesar de tudo que foi dito, idênticas às defendidas por Stalin, portanto as consequências práticas dessas posições, dada às diferentes condições, não são as mesmas. Ainda assim, em um outro sentido essas posições se equivalem com as de Stalin. Mas em que sentido? No sentido de que todas defendem uma concepção análoga de “socialismo”. Essa pode ser uma afirmação curiosa, devido a todo esforço feito (por exemplo no 22º Congresso do PCF) para apresentar um socialismo aparentemente diferente a tudo que lembrasse a União Soviética, especialmente a Stalinista. Mas o ponto aqui não é que o conteúdo das caixas sejam diferentes, mas sim que ambas as caixas concebem o socialismo como uma forma de sociedade definida em termos de propriedade pública [no sentido jurídico] dos meios de produção, crescimento planificado, justiça econômica, etc. O fato das liberdades individuais e coletivas serem adicionadas a uma dessas caixas nada muda em relação ao outro fato de que ambas possuem o conceito de “estado socialista”, não como fenômeno contraditório (uma necessidade vital ao mesmo tempo que um obstáculo para o comunismo), mas como mero instrumento de administração de uma sociedade sem antagonismos de classe (exceto no tocante às reminiscências das antigas classes exploradoras, destinadas a desaparecer), como um instrumento para a realização das necessidades de todo o povo. Essa não é apenas a concepção de Stalin de socialismo, mas estranhamente também a concepção da social-democracia! Desde que é uma concepção social-democrata, não deveríamos nos surpreender que seja uma concepção burguesa.

A ideologia burguesa pode conceber apenas duas formas de poder de estado (o que se reflete em seu clássico contraste democracia x ditadura): uma forma democrática (parlamentarista, multipartidária, com liberdade de expressão e associação) e uma forma ditatorial (unipartidária, fusão entre partido e estado, recusa a divergência e oposição, etc.). A burguesia pode conceber somente essas duas formas de exercício do poder de estado e assim classifica todos os estados nesses termos. O que ela não consegue conceber é o estado defendido por Lênin, um estado proletário, um estado cuja função é o exercício do poder precisamente para preparar as condições para seu desaparecimento, um estado cuja própria existência é baseada em uma contradição, um estado que compreenda seu definhamento, um estado que compreende que não poderá cumprir seu objetivo a menos que cesse de existir – e não no sentido formal e verbal, mas na prática material da luta de classes. Tal estado teria que reconhecer que ele nunca seria “universal” [de todos], pois para se tornar “universal”, sua razão material de existência precisaria ser eliminada. Esse estado somente pode existir enquanto a sociedade é dividida em classes. E a ideologia burguesa nunca conceberá tal coisa. Para a burguesia, o estado é essencialmente universal, de todo o povo . O marxismo nos diz que tal estado não pode existir. Mas esses velhos marxistas e os novos “marxistas” insistem que esse sonhado estado possa sim ser real – no “socialismo”. “ O nosso próprio estado socialista!”. Dessa forma, o “estado socialista” é representado como o “verdadeiro” estado universal, o genuíno estado de todo o povo. Nisso, o que separa os velhos Marxistas e os novos é que os últimos beberam um pouco mais do copo burguês: engoliram toda a história de ditadura x democracia que os velhos recusam. E nesse contraste, garantem para o mundo: Nós não queremos mais um “estado socialista ditatorial” mas sim um “estado socialista democrático”!

Claro que esse processo de evolução ideológica não pode ser simplificado. Ainda há toda a diferença entre um Partido Comunista e qualquer partido burguês. O que trato aqui é de uma tendência ideológica e política (e o que ela esconde), como também seus resultados teóricos e práticos contraditórios. Nossa tarefa não é parabenizar qualquer Partido por defender uma prática e uma teoria Marxista, mas chamar a atenção quando elas não são! Pois em um número importante de aspectos, em particular a concepção de socialismo, os comunistas os quais abordamos, conscientemente ou não, seguem o mesmo desvio do marxismo.

A luta dos Partidos Comunistas não pode ser a luta pelo socialismo como um fim em si mesmo, mas uma luta pelo comunismo. Ao supor, como Stalin fez e muitos comunistas continuam fazendo, que exista essa particular forma de sociedade, somos levados a defini-la em termos de um “modo socialista de produção”, de modo que essa substitua a anarquia da produção pela expansão planificada da produção, transformando o estado de um instrumento de classe em um instrumento de realização de todo povo, etc. Essa natureza problemática do “estado socialista” tende a sumir de vista. O que abre caminho para a propaganda burguesa, que acusa os comunistas precisamente de lutar por uma forma de estado que esmaga o indivíduo e rouba dele a sua liberdade. E o que nossos camaradas de plantão respondem? Aceitam essa falsa tese burguesa do estado e de sua função universal como realizadora das necessidades de todo o povo:  “mas nosso estado, o estado socialista, irá providenciar ao indivíduo e a comunidade uma liberdade sem precedentes!” É incrível como os propagandistas da burguesia conseguem avançar tão facilmente com seus truques… Claro, eles acusam o comunismo de agigantar o estado enquanto oprime o indivíduo (fazendo referências previsíveis a estados policiais, unipartidarismo, “ditaduras”, “totalitarismo”, etc) e os Comunistas de plantão respondem: “Nosso estado socialista desta vez irá cumprir todas suas demandas! Terá um parlamento de verdade e não aquele da europa oriental, como também toda a liberdade de expressão e associação que se possa imaginar!” O que é uma resposta curiosa, não pelas propostas (a defesa do multipartidarismo), mas pelas suas suposições, principalmente quando assume que elas resolvam a provocação. Essa não é certamente a postura de Lenin.

Lenin nos diz que a democracia parlamentar é uma forma [política] de estado, e portanto uma forma de ditadura – de uma dada classe. Não existe “democracia pura” e nem “democracia” de uma maneira geral. A luta dos comunistas não é o estabelecimento de um estado democrático mas sim sua abolição. Suas táticas e estratégias devem ser adaptadas a esse fim. O objetivo dos comunistas é infinitamente mais radical do que o mais radical liberal, e todo seu esforço deve ser dirigido a esse objetivo. Mas desde que a estrada para esse objetivo não é necessariamente uma linha reta, já que pode conter muitas curvas, retornos e atalhos, o objetivo não poderá ser encaixado nos termos simples da “liberdade”. Não há resposta fácil para a questão da estratégia que cada partido deverá seguir em cada país e em cada condição histórica concreta, e não é a intenção de Balibar providenciá-las. Mas é possível, diante de certas circunstâncias, tentar estabelecer um mínimo de clareza teórica em relação às questões básicas envolvendo o socialismo e o comunismo.

Seria falso ou mesmo absurdo afirmar que a luta para estabelecer (na espanha franquista) ou manter (na frança, Reino Unido) o parlamentarismo não seria importante. Pode ser crucial em certos momentos. Mas disso não se segue que o poder da burguesia seja menos opressivo e absoluto do que uma forma que é vulgarmente conhecida como “ditadura”, ou que em tal sistema parlamentar, quando se logra eleger seus representantes (mesmo que sejam socialistas ou comunistas), a classe trabalhadora ganhe algum terreno na dominação do estado. Não! A luta para estabelecer ou defender o parlamentarismo é para os Comunistas uma luta para fortalecer as forças democráticas, no sentido marxista, para que se abra caminho e oportunidade no curso da luta em via de se tomar o poder do estado, isto é, a ditadura do proletariado, seja qual for a sua forma.  A razão em tomar o poder do estado é que dessa forma se torna possível causar, um dia, o seu desaparecimento junto às classes e a exploração. A luta pelo socialismo não faz nenhum sentido se interpretada como luta para estabelecer um estado universal, como luta para estabelecer os interesses de todo povo. Apenas possui sentido como luta para estabelecer um estado – a ditadura do proletariado – que pavimente o caminho para seu próprio fim. Tal ideia, como já apontei, é incompatível com a ideologia burguesa, que classifica o comunismo como “a ideologia do estado sem fim”, mas não há motivo para que seja incompatível para um comunista.

Mencionei antes que um debate sobre a ditadura do proletariado soaria estranho a um britânico nos dias de hoje (…) Todo debate que toque na questão da luta da classe trabalhadora tenderá a parecer “surreal” uma vez que acontece fora dos limites da ideologia dominante, a ideologia do estado capitalista, portanto fora dos limites do senso comum. (…) Mas isso não é motivo para evitá-lo, e menos ainda uma boa razão para abandonar a defesa da ditadura do proletariado. Ninguém sugere que a explanação, defesa e desenvolvimento desse conceito não seja difícil, que não envolva sérias contradições, que não possa ser explorada pelos propagandistas da burguesia para seus próprios interesses. Ninguém aqui está sugerindo que os marxistas devam estampar o termo “ditadura do proletariado” em todos os cartazes e panfletos, principalmente quando não explicado e compreendido. Mas isso não significa que deixaremos de canalizar todos os esforços em ordem de explicar o significado da ditadura do proletariado às massas e de desenvolver a realidade desse significado pela própria experiência das massas, para que elas tomem esse conceito para si.  Insistir no conceito de ditadura do proletariado não significa condenar ou abandonar todos as outras classes que não o proletariado, pelo contrário, significa insistir no desenvolvimento do único conceito que pode prover uma análise concreta das possibilidades de aliança entre o proletariado e as demais classes, o que fará mais para nós do que a referência abstrata a noção de convergência dos “objetivos materiais” que unem os setores da população contra o capital monopolista.

Já mencionei que o conceito de ditadura do proletariado é infinitamente mais radical do que a mais radical teoria liberal ou social-democrata, desde que se baseia não na maior liberdade possível para o indivíduo e a comunidade em face ao estado, mas no desaparecimento do próprio estado, de todo estado, precisamente através da ditadura do proletariado, que desenvolve a contradição que levará a seu desaparecimento. E devo adicionar: permite uma forma muita mais genuína e profunda de “democracia” do que a mais radical teoria liberal e social democrata pode conceber[19]. Assim, somos obrigados a concluir com Étienne Balibar que aqueles que querem abandonar a ditadura do proletariado são conscientemente ou não, motivados não pelo desejo de preservar ou estender a democracia mas sim pelo medo do que a genuína democracia de massa possa realmente significar (…). Esse não pode ser o motivo para nós aceitarmos o abandono da ditadura do proletariado, pelo contrário, deve ser o motivo para lutarmos por ela, não só em ordem de defendê-la mas também de desenvolvê-la, para que possamos falar sobre do que se trata a verdadeira liberdade. Pois citando mais uma vez Lenin: “Enquanto existir Estado, não haverá liberdade; quando reinar a liberdade, não haverá mais Estado.[21]” (…)

                       

Referências

[1] “Les débats au sein du parti bolchevik (1925-1928)”, Cahiers de l’institut Maurice Thorez, 1976, p. 311

[2] Lénine, les Paysans, Taylor (Editions du Seuil, Paris, 1976)

[3]Exemplo pode ser encontrado em Diário das Secretárias no trecho escrito por M. A. Volodicheva “Eu estava com Vladimir por volta das 12.30 anotando para ele os tópicos (1) de que forma Partido e corpos administrativos [do estado] poderiam emergir e (2) se é conveniente combinar a educação com o estado (…) ele parava e repetia, me pediu para ajudá-lo e sorriu dizendo ‘Aqui estou completamente emperrado. Anote isto: preso nesse assunto’
Disponível em inglês em https://www.marxists.org/archive/lenin/works/1923/mar/06.htm]

[4] LENIN, Vladimir Ilitch. Mais uma vez sobre os Sindicatos, o momento atual e os erros dos camaradas Trotsky e Bukharin, 1921. Disponível em : https://www.marxists.org/portugues/lenin/1921/01/26.htm e Primeiro Projeto de Resolução do X Congresso do PC da Rússia Sobre o Desvio Sindicalista e Anarquista em Nosso Partido, 1921. Disponível em https://www.marxists.org/portugues/lenin/1921/03/projeto.htm

[5] [12] LENIN, Vladimir Ilitch. A Revolução Proletária e o Renegado Kautsky. Pode haver igualdade entre explorado e explorador? Obras Escolhidas em Três Tomos, 1977, Edições Avante! – Lisboa, Edições Progresso – Moscou. Disponível em : https://www.marxists.org/portugues/lenin/1918/renegado/cap03.htm

[6] [11] LENIN, Vladimir Ilitch.. A Revolução Proletária e o Renegado Kautsky. Como Kautsky transformou Marx num vulgar Liberal. Obras Escolhidas em Três Tomos, 1977, Edições Avante! – Lisboa, Edições Progresso – Moscou. Disponível em https://www.marxists.org/portugues/lenin/1918/renegado/cap01.htm

[7] LENIN, Vladimir Ilitch. O Estado e a Revolução. Capítulo II. A Experiência de 1848-1851. 1918. Disponível em https://www.marxists.org/portugues/lenin/1917/08/estadoerevolucao/cap2.htm#i3

[8] LENIN, Vladimir Ilitch. A Revolução Proletária e o Renegado Kautsky. Que os Sovietes Não Ousem Transformar-se em Organizações Estatais. Obras Escolhidas em Três Tomos, 1977, Edições Avante! – Lisboa, Edições Progresso – Moscou. Disponível em https://www.marxists.org/portugues/lenin/1918/renegado/cap04.htm

[9] [10] LENIN, Vladimir Ilitch. A Revolução Proletária e o Renegado Kautsky. Anexo II

Um Novo Livro de Vandervelde Sobre o Estado. Obras Escolhidas em Três Tomos, 1977, Edições Avante! – Lisboa, Edições Progresso – Moscou. Disponível em https://www.marxists.org/portugues/lenin/1918/renegado/anexos.htm#a1

[13] Embora não seja qualquer tipo de instituição que possa exercer o papel demandado pelo desenvolvimento da democracia de massa. Não há dúvida, por exemplo, que em certo momento, em qualquer processo revolucionário em que já existam, as instituições parlamentares se tornem obstáculos a esse desenvolvimento, mesmo se em algum momento anterior tenham sido de alguma forma úteis (…)

[14] “O poder político se encontra nas mãos dos maiores monopólios” (WODDIS, 1976, p.332).
Um exemplo do que representa essencialmente a teoria do Capitalismo Monopolista de Estado, em que o capital monopolista, como uma fração da classe burguesa, detém o poder do estado.

[15] Me baseio por exemplo no livro Traité Marxiste d’économie politique (Editions sociales, 1971) que talvez seja a mais sofisticada exposição desta teoria. Lênin também usou o termo “Capitalismo Monopolista de Estado” em sua contribuição ao 7º Congresso do Partido Bolchevique, em seu livro O Estado e a Revolução e em seu escrito A Catástrofe que nos Ameaça e como Combatê-la (todos datados de 1917), mas não com o mesmo significado.

[16] Um ponto que não é invalidado pelo desenvolvimento, transformação (e desintegração) de outro “estrato social intermediário”. Classes, na teoria marxista, são definidas no capitalismo primeiramente por seu antagonismo fundamental, nascido da relação capitalista de reprodução, entre burguesia e proletariado. (…)

[17] Na concepção leniniana de “estágios ” esses não se encontram separados um dos outros como encontrado no modelo evolucionista/etapista de Stalin.

[18] ”Nosso Estado de hoje é tal que o proletariado organizado em sua totalidade deve defender-se, e nós devemos utilizar estas organizações operárias para defender os operários em face de seu Estado e para que os operários defendam nosso Estado” (LENIN, Vladimir ilitch. Sobre os Sindicatos, o Momento Atual e os Erros de Trotski. Editorial Vitória. 1961. p: 288-309)

[19] “Quanto mais perfeita for a democracia, tanto mais próximo estará o dia em que se tornará supérflua.” (LENIN, Vladimir ilitch. O Estado e a Revolução. Capítulo V As Condições Econômicas do Definhamento do Estado. 1917)  Disponível em https://www.marxists.org/portugues/lenin/1917/08/estadoerevolucao/cap5.htm

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