Engels, Lei e Dialética

Por Paul O’Connell, traduzido por Bruno Caminotto Ordanini dos Santos

Introdução

É bem sabido que Marx e Engels nunca produziram uma compreensível Teoria da Lei, do direito ou do Estado. Pelo menos, nada que fosse páreo com sua crítica da convencional economia política no Capital e em outros lugares. Dito isso, assuntos como, lei, direito e o Estado não eram completamente negligenciados em seus trabalhos. Desde o engajamento de Marx com o Direito em “A questão judaica”, a “Crítica ao programa de Gotha”, e em outros; para Engels na Origem da família da Propriedade privada e do Estado; e Marx novamente, sobre o lugar e o papel do Direito em sua discussão sobre Atos da Fábrica no primeiro volume do Capital, seus trabalhos estão repletos de recursos dos quais nós podemos começar a montar a Teoria Marxista do Direito.


Um desses recursos é uma carta comparativamente breve, mas uma carta rica (Continua uma “leitura longa” pelos padrões modernos) que Engels envia a Conrad Smith em 1890. [1] Nesse bilhete Engels articula três principais princípios que deveria informar qualquer discussão que teremos sobre o Leis, Estado e direitos dentro da ampla tradição Marxista. Elas são (i) a relativa autonomia do Direito;(ii) o papel decisivo da estrutura econômica da sociedade na formação do Direito, do Estado, Et cetera; (iii) e, como um complemento necessário a essas posições dicotômicas, a necessidade de uma abordagem dialética para o estudo dos fenômenos sociais.

A Relativa autonomia da Lei

A tradição Marxista é frequentemente caricaturada (ou, generosamente muito mal compreendida) como uma compreensão mecânica do Direito. Muitas vezes recorrendo a uma leitura superficial das declarações de Marx em seu famoso prefácio de Contribuição à Crítica da Economia Política [2], muitos argumentam que o Marxismo postula uma correspondência simplista do Direito, em uma mão, as prevalecentes relações econômicas e na outra os interesses econômicos dominantes.

Sobre essa consideração, somente após Nicos Poulantzas e outros, no final do século XX, que a tradição Marxista desenvolveu uma compreensão mais complexa do papel do Direito na sociedade capitalista.

Como mostra uma carta de Engels a Schmidt, nada poderia estar mais distante da verdade. Em contraste a esta caricatura mecânica Engels argumenta que:

“Em um Estado Moderno deve a lei, não apenas corresponder a situação econômica em geral e ser sua expressão, deve constituir uma expressão coerente de si mesma que por causa de contradições internas não se engane. E para alcançar isso, a fidelidade com a condição econômica são refletidas e é cada vez mais jogada ao vento. Ademais pela raridade com que um livro Estatuto é a dura expressão, não mitigada, inalterada, do domínio de uma classe: isso por si só seria contrário ao “conceito de Direito”…. o curso do “desenvolvimento jurídico” têm amplamente consistido em… na tentativa de eliminar as contradições crescentes da translação direta da condição econômica em princípios jurídicos e em estabelecer um sistema legal harmonioso e, secundariamente, o fato de que a influência e a pressão de novos desenvolvimentos econômicos perturbam repetidamente, o envolvendo em novas contradições.”

Engels deixa claro que ele compreende o Direito, não como mero reflexo da situação econômica (leia-se, superestrutura mecânica surgindo sobre a base econômica). Ao contrário, ele compreende o Direito e a justificativa legal, como possuidor, em certo grau, de sua própria vida independente.

Nessa compreensão, o Direito desenvolve como um terreno ideológico, intimamente conectado a prevalecente relação econômica, mas, preservando sua própria lógica e racionalidade. É, até certo ponto, autônomo dos interesses econômicos específicos e imediatos (“relativamente autônomo” em dinheiro novo). Pode, dentro dos limites, ser engajado e empurrado para acomodar os interesses das massas exploradas e marginalizadas (como as Factory Acts), e também, pressionado a se aproximar melhor de seus próprios ideais elevados putativos.

Voltando à Base.

Entretanto, enquanto Engels aceita que o Direito desenvolve um grau de autonomia sob o capitalismo, ele, apesar disso, reitera a premissa básica do materialismo histórico:  na análise final, as relações econômicas modelam e estruturam o Direito, as leis e o Estado. Ela impõe o horizonte final em ambas, a forma e o conteúdo da lei, e elas são marcadas por certas tendências estruturais, entre elas, a preeminência do Direito à propriedade, o isolamento do poder da Classe capitalista e a legitimação ideológica do status quo.

Como propõe Engels, enquanto a divisão social do trabalho engendra o tipo de autonomia relativa observada acima, as relações econômicas permanecem preeminentes:

“Onde há divisão do trabalho em escala social, as diversas seções se tornam mutuamente independentes. Produção é, na análise final, o fator decisivo. Mas assim que o comércio de mercadorias se torna independente da real produção, o primeiro segue uma tendência própria, a qual é, em geral, indubitavelmente ditada pela produção, mas, em casos específicos, e no âmbito dessa dependência geral, por sua vez, obedece a leis próprias lei inerentes à natureza deste novo fator; é uma tendência que tem frases próprias e reagem, por sua vez à tendência da produção.”

O jurídico, direitos os quais são compreendidos, e as instituições estatais através das quais eles são operados, tem sua lógica própria, e eles desenvolvem tradições e práticas que aqueles envolvidos (ou enlaçados) com a lei procuram reproduzir. Mas, esse horizonte de autonomia é moldado fundamentalmente pelas relações de reprodução social e econômica.

Perder de vista esse fato posterior conduz à reificação – e, para nosso propósito, para variações nas principais correntes jurisprudenciais, na teoria política e assim por diante. Os protagonistas deste campo (advogados, acadêmicos e outros presos dentro do “Ponto de vista interno” de Hart) veem a autonomia relativa do Direito e do poder do Estado como primordiais e perdem de vista a estrutura imposta pelas relações econômicas de produção. Novamente, como Engels coloca,

“O reflexo das condições econômicas como princípios jurídicos é, da mesma forma, necessariamente aquela que apresenta a imagem de forma errada; isso ocorre sem que o observador perceba; o advogado imagina se tratar de princípios a priori quando, na verdade, não passam de reflexos econômicos – e assim, está tudo da maneira errada… essa inversão à qual, por não ser reconhecida, constitui o que nós chamamos de uma visão ideológica, reage por sua vez sobre a base econômica e pode, dentro de certos limites, modificar a mesma.”

Assim, nessa carta rica e densa Engels configura uma compreensão complexa da natureza da lei, do Estado e dos direitos sob o capitalismo que, reconhece tanto a autonomia relativa da lei quanto o papel fundamentalmente estruturante das relações de produção prevalecentes. A combinação de tais visões pode parecer quixotesca, não fosse pelo terceiro ponto chave que Engels apresenta nesta carta: a necessidade de uma análise materialista dialética.

A Dança da Dialética.

Uma das principais conquistas da tradição Marxista é o desenvolvimento da dialética materialista como método de análise e investigação – expurgado do idealismo Hegeliano e colocado para funcionar no mundo material a serviço da transformação social. Como uma vez disse C. L. R. James,

“Hoje, quando todos pensadores estão tentando como bêbados, sem todos seus pontos de apoio e referência, temos aqui uma arma [materialismo dialético] cujo poder e valor nunca foram tão grandes quanto na confusão predominante.” [3]

Na mesma linha, Lukács argumenta que a dialética e a contradição estão no coração da tradição Marxista.[4] O raciocínio dialético materialista em oposição à rígida lógica aristotélica constitui o núcleo da análise marxista das relações sociais. Na verdade, James chega a argumentar que “é impossível lidar com o marxismo a não ser sobre a base”. [5]

Da mesma maneira, em sua carta para Schmidt, Engels reforça a importância da compreensão e raciocínio dialético. Ao rejeitar casuisticamente os argumentos de alguns colegas de outrora, Engels argumenta que

“O que falta a todos estes cavaleiros é a dialética. Tudo que eles veem é causa de um lado e efeito do outro. Mas o que eles falham em ver é que isso é uma abstração vazia, que no mundo real tais oposições metafisicamente polares existem apenas na crise, que ao invés disso o grande processo ocorre de forma única na forma de interação – se de forças muito desiguais das quais a tendência econômica é de longe a mais forte, a mais antiga e vital – e que aqui nada é absoluto e tudo relativo. Para eles, Hegel pode nunca ter existido.”

A ausência de análise dialética – uma análise que mantém a totalidade e a inter-relação de todos elementos de ordem social, e não evade da centralidade da contradição – cegar-nos da verdadeira complexidade e caráter do fenômeno social.

Ao invés disso, precisamos fundamentar nosso entendimento do Direito, para os presentes propósitos, em uma apreciação da natureza real das contradições. Como a lei e os direitos podem, por exemplo, serem ambos constitutivos e colocar algumas limitações modestas sobre aspectos do sistema existente de relações sociais. Como o Estado pode ser relativamente autônomo, e também ser o Comitê de administração de assuntos da burguesia. Em resumo, a compreensão dialética pode nos ajudar a apreciar a realidade confusa das relações sociais, e a natureza e papel do Direito na sociedade capitalista.

Conclusão

Conforme a crise estrutural do capitalismo continua a desenrolar, e as irreduzíveis contradições do sistema continuam a sufocar a vida da maioria das pessoas ao redor do mundo, o interesse em Marx e na tradição Marxista continuará a crescer. Isso impõe uma obrigação sobre nós todos de escavar e renovar tudo que há de bom na tradição Marxista, e isso contribuirá para nossa compreensão do mundo a nossa volta, com uma visão para muda-lo. Como parte desse processo, o projeto de repensar a Teoria Marxista da lei, do Estado e dos direitos, se beneficiarão revisitando os trabalhos de Marx, Engels e outros, aplicando seus valiosos insights aos desafios que enfrentamos hoje.

[1] Frederick Engels to Conrad Schmidt, 27 October 1890, in Marx-Engels Collected Works, vol. 49 (London: Lawrence & Wishart, 2010) 57; also available (in different translation) at https://www.marxists.org/archive/marx/works/1890/letters/90_10_27.htm.

[2] “‘Preface’ to A Contribution to the Critique of Political Economy” [1859], in Karl Marx, Later Political Writings, ed. Terrell Carver (Cambridge: Cambridge University Press, 1996) 158; also available (in different translation) at https://www.marxists.org/archive/marx/works/1859/critique-pol-economy/preface.htm.

[3] C. L. R. James, “Education, Propaganda, Agitation” [1944], in Martin Glaberman (ed.), Marxism for Our Times: C. L. R. James on Revolutionary Organization (Jackson: University Press of Mississippi, 1999) 4, 33.

[4] Georg Lukács, Lenin: A Study in the Unity of His Thought (London: New Left Books, 1970 [1924]), 18.

[5] C. L. R. James, “Marxism For Our Times” [1963], in Martin Glaberman (ed.), Marxism For Our Times: C. L. R. James on Revolutionary Organization (Jackson: University Press of Mississippi, 1999) 43, 44

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