Medo e incerteza

Texto de Huey P. Newton, via Marxists.org, introdução Luan Cardoso Ferreira* e tradução de Edson Mendes**.

“O homem preto de baixo nível socio-econômico é um homem confuso. Ele encara um ambiente hostil “e não tem certeza se são seus próprios pecados que atraem a hostilidade da sociedade”. Toda sua vida ele foi ensinado (explícita e implicitamente) que ele é inferior à humanidade.”

Introdução

Hoje, é possível vermos cada vez mais abordagens às temáticas da negritude e do racismo estrutural na sociedade desde dimensões psicológicas, sendo célebres nesse campo, por exemplo, as interpretações do martiniquense Frantz Fanon (tanto em seu “Pele Negra, Máscaras Brancas” quanto em “Os Condenados da Terra”). Ao mesmo tempo, as teorias do reconhecimento também vêm refletindo de diferentes maneiras sobre impactos subjetivos das experiências de injustiça racial – por exemplo, em nível de perda da capacidade de ver a si mesmo como sujeito ativo.

Por isso, neste mês de aniversário de fundação do Partido Pantera Negra, queremos destacar como o grupo elaborou reflexões que podem ajudar a aprofundar pensamentos de tais campos. Buscamos, assim, resgatar um dos primeiros, e pouco conhecidos, textos teóricos publicados no jornal oficial do partido, Fear and Doubt (“Medo e Incerteza”). Entendemos que a principal riqueza do escrito consiste em o autor (Huey P. Newton, cofundador do partido) colocar no centro do debate os impactos subjetivos que dinâmicas de exploração e opressão produzem nos sujeitos subalternizados (em termos de raça e classe, fundamentalmente). Newton, nesse sentido, “analisa as dimensões psicológicas da guetização”, aplicando a “teoria desenvolvida por Fanon durante a Revolução Argelina à experiência concreta e particular da negritude no gueto americano dos anos 60”[1].

Ainda que elaboradas no contexto estadunidense, as reflexões newtonianas expressam a compreensão de que a luta revolucionária contra o racismo e o capitalismo é também uma luta pelo resgate da autoconfiança, da autoestima e do autorrespeito das classes dominadas – no que, desde uma leitura contemporânea, talvez possa ser interpretado como uma visão da luta revolucionária também como luta por reconhecimento. O texto de Newton, então, aponta para uma preocupação de lideranças dos Panteras Negras em politizar os próprios sentimentos e censuras sociais vividas pelas comunidades negras, numa tentativa de articulação entre sofrimento cotidiano e luta partidária por transformação social – sendo esta última, na práxis socialista dos Panteras, pensada como possibilidade de construção de uma nova forma de vida coletiva.

Medo e Incerteza, por Huey P. Newton

O homem preto de baixo nível socio-econômico é um homem confuso. Ele encara um ambiente hostil “e não tem certeza se são seus próprios pecados que atraem a hostilidade da sociedade”. Toda sua vida ele foi ensinado (explícita e implicitamente) que ele é inferior à humanidade. Como homem, ele encontra a si mesmo vazio destas coisas que trazem respeito ou sentimento de valor. Ele busca ao seu redor algo para culpar por sua situação, mas por ele não ser sofisticado aos olhos do ambiente socio-econômico e por um precário ensino dos pais ou das instituições escolares, ele, por fim, culpa a si mesmo.

Quando criança, seus pais o disseram que ele não era rico “porque não tivemos a oportunidade de nos educarmos” ou “não conseguimos tirar vantagem das oportunidades educacionais que nos foram oferecidas”. Eles dizem à suas crianças que as coisas serão diferentes para elas porque elas são educadas e habilidosas, mas não há nada além deste aviso ocasional (e às vezes nem isso) para estimular os estudos. Pessoas negras são grandes adoradoras da educação, mesmo os de nível socio-econômico mais baixo, mas, ao mesmo tempo, eles têm medo de se expor a ela. Eles têm medo porque eles ficam vulneráveis de ter seus medos constatados; talvez eles vão perceber que não podem competir com os estudantes brancos. A pessoa negra diz para si mesma que eles poderiam ter feito muito mais se realmente quisessem. O fato é, obviamente, que as oportunidades educacionais pressupostas nunca foram disponíveis para as pessoas negras de baixo nível socio-econômico devido a sua singular posição atribuída na sua vida.

É um monstro de duas cabeças que assombra este homem. Primeiro, sua postura é de que ele é ausente de uma habilidade inata de lidar com os problemas socio-econômicos que o confrontam, e segundo, ele diz a si mesmo que tem essa habilidade, mas ele simplesmente não se sentiu forte o suficiente para adquirir as habilidades necessárias para manipular seu ambiente. Em um esforço desesperado para adquirir auto-respeito, ele racionaliza que ele é letárgico; assim, ele nega a falta de habilidade inata. Se ele abertamente tenta descobrir suas habilidades, ele e outros podem vê-lo pelo que ele é – ou não é, e este é o medo real. Então, ele tenta retirar-se para o mundo invisível, mas não sem alguma luta. Ele pode tentar se fazer visível transformando seu cabelo, adquirindo uma “postura de chefe”, dirigindo um carrão, mesmo sabendo que ele não pode pagar por isso. Ele pode assumir vários filhos ilegítimos de várias mulheres para exibir sua masculinidade. Mas no final, ele percebe que é ineficiente em seus esforços.

A sociedade o responde como coisa, uma criatura, uma não-pessoa, algo para ser ignorado ou pisado. Ele é levado a respeitar as leis que não o respeitam. Ele é levado a digerir um código de ética que atua sobre ele, mas não para ele. Ele está confuso e em um constante estado de raiva, de vergonha e incerteza. Este cenário psicológico permeia todas as suas relações interpessoais. Isso determina sua visão do sistema social. Seu desenvolvimento psicológico foi precocemente capturado. Essa incerteza começa desde cedo e continua por toda sua vida. Os pais passam isso para os filhos e o sistema social reforça o medo, a vergonha e a incerteza. Na terceira ou quarta série, ele percebe que compartilha a sala de aula com estudantes brancos, mas quando a classe está empenhada em um exercício de leitura, todo estudante negro encontra-se em um grupo na mesa reservada para leitores lentos. Isso pode ser uma certa tentativa inocente da parte do sistema escolas. O professor pode não perceber que o estudante negro teme (na realidade, sente certeza) de que negro significa burro e branco significa inteligente. A criança não entende que a vantagem que a criança teve em casa é que conta para essa situação. É comumente aceito que a criança é o pai do homem; isso é verdade para o povo negro de baixo nível socio-econômico.

Com quem, com o quê pode ele, o homem, se identificar? Quando criança ele não teve uma figura masculina permanente com quem se identificar; como homem, ele não vê nada na sociedade com o que se identificar como uma extensão de si. Sua vida é construída em desconfiança, vergonha, incerteza, culpa, inferioridade, confusão de papel, isolamento e desespero. Ele sente que ele é menos do que um homem, e isso é evidente em sua conversa: “o homem branco é ‘O HOMEM’, ele tem tudo e ele sabe tudo e um preto[3] não é nada”. Em uma sociedade onde o homem é valorizado de acordo com sua profissão e seus bens materiais, ele está sem bens. Ele é inexperiente e, muitas vezes, está ou no emprego informal ou desempregado. Muitas vezes sua esposa (que consegue um emprego como empregada para pessoas brancas) é quem sustenta a família. Ele é, então, visto como inútil por sua esposa e crianças. Ele é ineficaz tanto dentro quanto fora de casa. Ele não consegue sustentar ou proteger sua família. Ele depende do homem branco (“O HOMEM”) para sustentar sua família, para ter um emprego, educar suas crianças, servir como um modelo que ele tenta imitar. Ele é dependente e ele odeia “O HOMEM” e odeia a si mesmo. Quem é ele? Será ele um adolescente muito velho ou o escravo que ele costumava ser?

O que ele fez para ser tão PRETO e melancólico?

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[1] BLOOM, Joshua & MARTIN JR, Waldo E. Black Against Empire: The history and politics of the Black Panther Party.  Oakland: University of California Press, ed. 2, 2016, p. 66.

[2] Edson Mendes Nunes Júnior. Professor do Departamento de Ciência Política da UFRJ. Doutorando em Ciência Política pela UFF. Email: mendesjr.edson@gmail.com

[3] Na versão original, Huey utiliza aqui a “n-word”.

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*Luan Cardoso Ferreira é pesquisador do Grupo de Estudos em Subjetividade e Política (GESP), associado ao Laboratório Cidade & Poder (LCP) da UFF. Mestre em Ciência Política (UFF). E-mail: ferreira.luancardoso@gmail.com

** Edson Mendes é professor do Departamento de Ciência Política da UFRJ. Doutorando em Ciência Política pela UFF. Email: mendesjr.edson@gmail.com

 

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