Marighella e o patrimônio cultural

Por Victor Plasa[1]

Esse artigo visa debater a construção da consciência de classe em torno do Memorial a Carlos Marighella. Para isso partimos das noções de classe, cultura e experiência em E.P. Thompson, recorrendo a um controlado ecletismo com o conceito de lugares de memória de Pierre Nora e a discussão acerca do patrimônio feita por Nestór Garcia Canclini.

Figura revolucionária importantíssima para a esquerda radical, Carlos Marighella retornou ao centro das atenções, em boa medida também fora desse âmbito, pela chegada do filme de Wagner Moura em 4 de novembro de 2021, após dois anos de resistência da Ancine em sua distribuição. A memória acerca do líder da Ação Libertadora Nacional é alvo de disputa entre aqueles que o veem como herói e quem insiste em tratá-lo como terrorista, tal disputa é bastante visível em torno do monumento em homenagem a Marighella existente em São Paulo. Nesse contexto, se torna relevante o problema da construção do patrimônio histórico enquanto um elemento da luta de classes no campo da consciência de classe, bastante influenciada pela formação histórica do proletariado em relação dialética com a burguesia.

Para discutir a problemática da memória de Marighella presente em seu memorial, utilizaremos o conceito de lugar de memória de Pierre Nora — determinado objeto a que se atribui significado com a finalidade de guardar a memória de determinado grupo, protegendo-a do andamento do tempo histórico. Complementaremos com as definições acerca da construção do patrimônio apresentadas por Néstor Garcia Canclini, para quem cada classe e subgrupo tem uma relação única com a cultura, tendo maior ou menor acesso e controle sobre o que é importante ou não.

Segundo Pierre Nora (1993), os lugares de memória surgem num contexto de aceleração temporal e dessacralização da memória, sua existência parte do pressuposto de que não há memória espontânea, por isso arquivos, aniversários, monumentos são necessários para construir uma determinada memória para dada sociedade. A importância dos lugares se dá em relação com a história, que em sua temporalidade e universalidade varre facilmente a memória, a função dos lugares é de ancorá-las e mantê-las vivas.

A modernidade tem como característica o distanciamento do passado e de suas tradições, elementos sagrados perdem seus significados e sua relevância ao longo do caminhar da sociedade moderna. Por isso a memória, ao se dissociar da história-memória, se tornou a constituição gigantesca e vertiginosa do estoque material daquilo que é impossível lembrar, repertório daquilo que poderíamos precisar lembrar.

Tal concepção engendrou o hábito de instituir museus, bibliotecas, centros de documentação e bancos de dados. Para além do desenvolvimento tecnológico que permitiu acumular e manter os vestígios em boas condições, Nora argumenta que à medida que a memória tradicional desaparece, nos sentimos obrigados a acumular religiosamente vestígios, documentos, imagens, sinais do que foi. Para Nora (1993), a sociedade moderna, na falta de tradições próprias, acumula o máximo de itens possível sobre as antigas, numa espécie de medo de perdê-la e acabar sem memória alguma

A passagem da memória para a história obrigou cada grupo a redefinir sua identidade pela revitalização de sua própria história. Como a memória deixou de ser construída com a mesma composição de antes da modernidade, a história tomou seu lugar na construção das identidades dos grupos. O pertencimento não se dá mais por motivos puramente imateriais e sagrados, os grupos reconhecem, agora, sua origem histórica, voltando ao passado para construir sua tradição, que une as pessoas pela trajetória comum.

Fruto da laicidade inerente à aceleração do capitalismo, as tradições modernas se constroem sendo percebidas historicamente pelas pessoas. Isso significa que elas têm consciência de seu grupo advir de um ponto no tempo, independentemente do período. Se constroem de vestígios do passado que, muitas vezes, inconscientemente, são ressignificados pelo presente ou até mesmo inventados para dar coesão ao grupo.

São lugares, com efeito, nos três sentidos da palavra, material, simbólico e funcional, simultaneamente, somente em graus diversos. Mesmo um lugar de aparência puramente material, como um depósito de arquivos, só é lugar de memória se a imaginação o investe de uma aura simbólica […] só entra na categoria se for objeto de um ritual. Mesmo um minuto de silêncio, que parece o exemplo extremo de uma significação simbólica, é ao mesmo tempo o recorte material de uma unidade temporal e serve, periodicamente, para uma chamada concentrada da lembrança. Os três aspectos coexistem sempre. (NORA, 1993. p. 23)

São os aspectos assinalados por Nora que tornam algo em lugar de memória. O simbolismo e o recorte temporal são imprescindíveis para esse fenômeno, pois se trata de atribuir significado a algo que não necessariamente o tem em sua essência. Isso implica também na existência de um tempo específico ao qual o lugar remete, para que a memória se forme e impeça que a história apague o que se quer lembrar.

Os lugares de memória são constituídos de uma interação entre vontade de memória e história. A primeira atribui significado simbólico, estreito e rico em potencialidades a determinado objeto. A segunda, dá sentido à função do lugar de memória de parar o tempo, afinal, isso implica a existência de uma continuidade do tempo e do esquecimento. O tempo transforma os lugares de memória, ressalta significados diferentes e imprevisíveis na memória guardada por eles.

Lugar de memória não tem referentes na realidade, ele mesmo é seu próprio referente, sinal que devolve a si mesmo em estado puro. O que o faz lugar de memória é aquilo pelo que eles escapam da história. Templum: recorte no indeterminado do profano de um círculo no interior do qual tudo conta, tudo simboliza, tudo significa. Assim, o lugar de memória é um lugar duplo, um lugar de excesso, fechado sobre si mesmo e sobre sua identidade; e recolhido sobre seu nome, mas constantemente aberto sobre a extensão de suas significações.

O patrimônio é apresentado como algo harmônico e geral de uma sociedade, contudo, o exame mais minucioso mostra que o acesso a essa herança cultural ocorre de forma diferente por classes e frações diferentes. Isso se dá pelo fato de os mecanismos que preservam e compartilham o patrimônio terem graus diferentes de investimento, de inserção social e de acessibilidade. Existe ainda o fator classista e ideológico desse movimento. Escolas são alvo constante de precarização e privatização, o que leva à difusão da cultura nacional a seguir a lógica do capital e dos vestibulares. Museus e exposições são constantemente ligados à alta cultura, seus ingressos são caros e a população pobre dificilmente tem ferramentas para interpretar as obras e a curadoria.

Canclini (1994) aponta o patrimônio como recurso de produzir diferenças entre as classes. Os setores dominantes não só definem a hierarquia dos bens, como dispõem de meios econômicos e intelectuais, tempo de trabalho e ócio para atribuir maior qualidade e refinamento aos seus. Na classe trabalhadora, existe muita criatividade e vontade de produzir cultura, contudo, é difícil competir com a burguesia e seus intelectuais, que dispõem de um saber acumulado historicamente muito maior, mais recursos e tempo, enquanto os trabalhadores passam a maior parte de suas vidas produzindo riqueza para os outros.

O Estado tende a converter as realidades locais em que o patrimônio se dá em abstrações político-culturais, símbolos de uma identidade nacional em que se diluem as particularidades e os conflitos. Às vezes, se interessa pelo patrimônio para frear o saque especulativo; outras, porque o alto prestígio dos monumentos é um recurso para se legitimar e obter consenso, em outros, ainda, por simples complacência cenográfica. Sendo a principal máquina de poder controlada pela burguesia e construída em seu benefício, o Estado tem a função de manter a coesão e legitimar a hegemonia do momento.

Os movimentos sociais e partidos de esquerda começaram a dar atenção a questões do patrimônio apenas nos anos 2000, e, pelo menos nos primeiros 20 anos, o debate ambiental é o mais desenvolvido, mesmo assim pequeno; nota-se a preocupação com a memória crescendo, mas ainda minoritária; já o resgate do patrimônio têm se pautado muito mais por reparações históricas (como trocar o elevado Costa e Silva por João Goulart) do que pela participação democrática e definição pela comunidade.

Com o advento dos meios de comunicação de massa, tanto a forma como a transmissão das produções modificou-se radicalmente. As antigas concepções acerca do patrimônio passaram a contrastar com a nova organização da cultura, surgiu o desafio de adaptar a semântica das obras tradicionais visando manter seu caráter legitimador. Detentora da tecnologia e do capital, a classe dominante logo remanejou seus esforços para controlar a cultura que se formava sob os novos moldes, restringindo suas próprias tradições ao lugar de algo clássico cuja inacessibilidade é parte da fetichização.

Junto aos conceitos assinalados, trabalharemos com as ideias de classe, experiência e cultura de Edward Thompson, para quem o ser social é o centro do processo histórico, por isso, sua experiência se dá pela seleção de elementos simbólicos em meio a uma infinidade que a sociedade apresenta, e a posterior ação sobre a realidade, tomando como base tal seleção. A experiência só pode ser compreendida em termos de classe, ou seja, ela se forma historicamente em dado tempo e lugar, com uma ligação específica ao meio de produção. Desse modo, a classe trabalhadora é uma formulação fluida, que reúne indivíduos que vivenciaram ou herdaram a experiência de uma mesma relação com o meio de produção e com outras classes.

Cultura, segundo Thompson, é o conjunto de elementos que fogem ao estritamente econômico e político. No âmbito da dialética entre base e superestrutura, a cultura é o conjunto dos elementos simbólicos, morais, sentimentais e convicções religiosas, isto é, o modo de experienciar o modo de produção adotado por uma dada sociedade. Ela é, por isso, algo material, que engloba, mas não se limita às artes, portanto, interliga uma série de fatores da sociedade moderna. Nesse sentido, é o conjunto de diferentes elementos conflitivos, em que há sempre uma troca entre o escrito e o oral, o dominante e o subordinado. Por tanto, só pode ser entendida quando inserida no contexto histórico, visto que as relações dialéticas entre esses diferentes recursos não ocorrem destacadas da realidade material e do processo histórico, logo, se analisadas como objetos estáticos, a compreensão acerca delas será coberta de equívocos.

A experiência foi, em última instância, gerada na vida material, foi estruturada em termos de classe, e, consequentemente, o ser social determinou a consciência social. La Structure ainda domina a experiência, mas dessa perspectiva sua influência determinada é pequena.

[…] com experiência e cultura, estamos num ponto de junção de outro tipo. Pois as pessoas não experimentam sua própria experiência apenas como ideias, no âmbito do pensamento e de seus procedimentos, ou como instinto proletário, etc. Elas também experimentam sua experiência como sentimento e lidam com esses sentimentos na cultura, como normas, obrigações familiares e de parentesco, e reciprocidades, como valores ou (através de formas mais elaboradas) na arte ou nas convicções religiosas. (THOMPSON, 1981, p.189)

O termo experiência proporciona uma visão do marxismo para além dos fundamentos econômicos. Ele toma o ser social como centro do processo histórico, com isso, as estruturas, normas, símbolos, modos de produção, etc. são vistos por um prisma diferente, em que sua relevância não está pré-definida, mas se dá pelo fato de serem formadas e estarem em relação dialética com os indivíduos. Thompson norteia a noção de experiência tendo em vista, principalmente, a ideia de classe, entendida por como

[…] um fenômeno histórico, unificando uma série de eventos díspares e aparentemente desconexos, tanto na matéria bruta da experiência como na consciência. Enfatizo que isso é um fenômeno histórico. Não vejo classe como uma “estrutura”, nem como uma “categoria”, mas como algo que acontece de fato (e pode ser demonstrado ter acontecido) nas relações humanas.

Mais que isso, a noção de classe implica a noção de relação histórica. Como qualquer outra relação, é uma fluência que evade a análise se tentarmos pará-la a qualquer momento e anatomizar sua estrutura. [tradução nossa] (THOMPSON, 1963. p.9)[2]

Classe é, para ele, um fenômeno histórico em movimento, formado pela experiência material pura e a consciência. Por isso, sua análise precisa ser feita em movimento, já que a classe não é uma estrutura ou categoria, mas um processo do qual fazem parte pessoas que compartilham as mesmas vivências ou as herdam, têm interesses em comum e os mesmos objetivos.

Compreendemos que o patrimônio histórico e o lugar de memória que analisaremos se encaixam nas concepções de Thompson, pois o Memorial a Marighella tem por função guardar a memória do revolucionário, não por acaso se localiza no local em que foi assassinado pela ditadura empresarial-militar, sendo construído três anos após a Comissão de Mortos e Desaparecidos da Câmara reconhecer sua morte como assassinato.

Instalado na Alameda Casa Branca, no Jardim Paulista, em São Paulo, o monumento se trata de um monólito de granito bruto, com a inscrição: “Aqui tombou Carlos Marighella em 4/11/69, assassinado pela ditadura militar — São Paulo, 4 de novembro de 1999”. Sua função, enquanto lugar de memória, é preservar um elemento fundamental da resistência à ditadura, manter vivas as lembranças de um período extremamente difícil para a parcela da classe trabalhadora que se opôs ao regime militar.

Ao proteger do esquecimento a trajetória da luta armada dos anos 70, esse lugar de memória impede que o tempo leve a sociedade esquecer os eventos e as pessoas que resistiram aos anos de chumbo. Surgem duas questões antagônicas a partir dessa memória, de um lado, é fator de coesão para os que lutaram e para os que não vivenciaram, mas se colocam lado a lado com os movimentos e partidos de esquerda. De outro, é objeto de ódio por parte de pessoas nostálgicas com a ditadura, ou que se alinham com os ideais liberais e autoritários em voga na época, mas não viveram o regime.

Como resultado, temos as homenagens do primeiro grupo, com manifestações, discursos e flores levadas ao memorial todo aniversário da morte de Marighella. Em contraste com a vandalização do monumento, que teve a placa roubada, pichação e até tentativas de remoção forçada da pedra. Essa dicotomia mostra como ambas as memórias se constroem no antagonismo de classe atual, em que a ditadura não está presente na prática, mas ideologicamente continua compondo a luta de classes, pelo menos no âmbito simbólico.

O patrimônio cultural é composto pelo conjunto das práticas, monumentos, edifícios, festas, símbolos patrióticos e outros objetos a que se atribui algum significado que objetiva a coesão de um determinado grupo. Essa coesão pode ser tentada pelo Estado, na forma da história oficial e do nacionalismo, ou na memória coletiva de uma porção de classe, nesse sentido dando um sentido à sua existência.

Para Canclini, a formação do patrimônio está intimamente ligada à disputa política e econômica entre as classes de uma sociedade. Os grupos que detêm o poder tendem a impor sua cultura como a oficial que todo o conjunto do país deve adotar como modelo e origem comum, isso legitima sua permanência no poder e cria uma abstração apolítica, na qual o antagonismo entre suas referências e as dos grupos subalternos, entre as perspectivas divergentes sobre a história comum, são tratados como inexistentes. Apesar de tentar mascarar a luta de classes, esse esforço não consegue apagar por completo a cultura dos trabalhadores, assim, apresenta-a como folclore, cujo lugar na dinâmica patrimonial é o da curiosidade, do misticismo e das tradições imemoriais que não têm mais lugar na nova sociedade, senão pela pura função da memória.

Nascido em Salvador a 5 de dezembro de 1911, Carlos Marighella foi um revolucionário marxista, guerrilheiro, político e escritor importantíssimo para a história do movimento comunista brasileiro a partir dos anos 1930, quando ingressou no PCB. No momento em que Marighella começou sua vida política, o Brasil passava por uma das maiores ondas de repressão de sua história sob o governo de Getúlio Vargas, o que fez com que ele fosse preso em 1932. No contexto do estado de sítio em que o país se encontrava, lideranças partidárias e de movimentos sociais eram presas e torturadas. O comunismo seria, em 1937, uma justificativa para o golpe que instalou o Estado Novo.

Tendo sido preso três vezes durante o regime varguista, Marighella se tornou uma figura importante no partido, tendo sido enviado para a reorganização do núcleo paulista, interrompida pela prisão do comitê organizativo em 1939. Em agosto de 1943 ocorreu a II Conferência Nacional do PCB, em que foi aprovada a linha política de união nacional em torno do governo e o apoio à sua política de guerra contra o nazi-fascismo, Prestes foi eleito secretário-geral e foram eleitos novos nomes para a direção nacional, entre eles, Marighella.

A partir de 1945, com a anistia aos presos políticos e a realização da eleição para a Assembleia Nacional Constituinte, o país vivia uma transição para a democracia burguesa. Eleito pelo Estado da Bahia, Carlos Marighella foi um dos deputados, junto a Maurício Grabois, da bancada comunista na Constituinte e no posterior Congresso ordinário. Mesmo com o cancelamento do registro do PCB em 1947 pelo TSE já sob o governo de Dutra, os deputados comunistas mantiveram seus mandatos até o ano seguinte, quando foram cassados.

Em meio à conturbada trajetória do partido, com rachas internos e reorganizações, mudanças de linha política e método, transição entre legalidade e ilegalidade, o movimento comunista conseguiu produzir militantes comprometidos com a emancipação do povo brasileiro. A dinâmica da luta de classes brasileira do século XX é permeada por golpes e retomadas democráticas, repressão a militantes e organizações — em maior ou menor grau, independentemente do regime —, de modo que é possível perceber o processo de transformação da burguesia assinalado por Florestan Fernandes.[3]

Para o sociólogo marxista, a burguesia dependente brasileira teria feito a transição do capitalismo concorrencial para o monopolista, que emerge depois de 1930 e do pós-guerra. Nesse momento, o país passou de uma formação econômico-social agroexportadora dominada por relações pré-capitalistas, para uma síntese de capitalismo dependente e subdesenvolvido sob a égide de um capitalismo monopolista. Houve, então, um processo de desenvolvimento econômico, crescimento industrial, urbanização e fortalecimento da sociedade civil, mas mantendo-se dependente, isso significa que tais mudanças não seriam realizadas sob direção da burguesia nacional, mas do capital monopolista internacional.

Nessa dinâmica, os trabalhadores estão submetidos ao domínio burguês interno, que ocorre de forma direta e perceptível no antagonismo de classes cotidiano, e ao controle indireto externo, já que os interesses do capital internacional norteiam as transformações do cenário brasileiro. Ocorre, então, o que Lenin chamou via prussiana e Gramsci revolução passiva, isto é, o movimento de mudança se inicia e é coordenado pela classe dominante de modo a reformular as estruturas socioeconômicas e políticas para que se adéquem a um novo contexto, sem transferir o controle e os privilégios atrelados a elas para outros grupos sociais.

Como a classe trabalhadora se depara, ainda, com uma situação de tamanha complexidade, a disputa por sua sobrevivência se torna cada vez mais difícil, os esforços da porção organizada crescem paulatinamente frente à burguesia aparelhada com forças policiais e técnicas de coerção sofisticadas. Marighella fez parte da resistência proletária a esse processo, construindo o partido e participando durante toda sua vida política.

Após o golpe de 1964 que engendrou a ditadura empresarial-militar, o movimento operário, mais uma vez, precisou lidar com a realidade das prisões arbitrárias e tortura crescentes, censura a jornais, livros, rádios e reuniões de caráter contrário ao regime. Marighella foi baleado e preso em 1964, tendo sido libertado em 1965. Suas divergências com a linha política do PCB acerca da estratégia a ser adotada para a nova conjuntura levaram-no a renunciar à Comissão Executiva Nacional, sendo expulso do partido em 1967.

O movimento político-militar que em 31 de março de 1964 derrubou o presidente João Goulart foi, para Marighella, a confirmação de sua descrença no caminho pacífico para o socialismo. Segundo ele, a ausência de uma preparação para enfrentar pelas armas as forças conservadoras havia sido o grande erro cometido até então.[4] Fundou a Ação Libertadora Nacional visando organizar e preparar os revolucionários para fazer frente armada à ditadura, o que fez dele um dos principais inimigos do regime.

Entre ações de propaganda, assaltos a banco e sequestro de um embaixador, a prática da ALN provou a veracidade das críticas de seu líder ao despreparo, já que se tratava de um grupo pequeno e baixa organicidade na classe trabalhadora, em boa medida por conta da censura e das limitações à propaganda. Entretanto, sua linha nos mostra que a ausência de um grupo antagônico efetivamente numeroso, organizado e enraizado entre os trabalhadores significou um período de vinte anos de transformações feitas pela burguesia praticamente sem oposição, causando danos econômicos e sociais profundos ao país.

Marighella foi morto por se opor à ditadura, sua história demonstra a brutalidade da disputa política brasileira nos anos 60, em que a oposição ao regime era torturada e morta por se opor às transformações que a burguesia implementou em benefício do capital monopolista. Sua trajetória ajuda a compreendermos o processo histórico da luta de classe nos anos 70, caracterizada pela baixa parcela de trabalhadores organizados, movimento revolucionário disperso em pequenos grupos com estratégias diferentes.

Estando a ditadura muito bem aparelhada com ferramentas e técnicas de tortura, construção ideológica e propagandística que tratava os opositores como terroristas. O regime tinha, ainda, um elemento bastante peculiar, a manutenção do Congresso e de eleições, objetivando criar um aparente ambiente democrático. Essa aparência democrática acabou criando uma memória de normalidade acerca desse período, em que se atribui aos críticos dos governos militares características como preguiça, vagabundice e mesmo de terrorista, no caso da luta armada.

Tal memória é tão presente no século XXI, em boa medida, devido à anistia geral tanto de presos quanto de torturadores. A demora em instaurar uma Comissão da Verdade e investigar os crimes da época deu espaço para a consolidação dessa memória. Podemos atribuir esses elementos à reabertura democrática, que foi, novamente, um movimento das classes hegemônicas, em que os militares retornaram aos quartéis para que o capital monopolista entrasse em cena com as roupagens neoliberais.

No contraste entre a memória dos anos de chumbo e a normalidade do período entre 1964 e 1985, notamos duas formulações distintas acerca de um mesmo evento. Em primeiro lugar, está a parcela organizada do proletariado, que se opôs aos militares e sofreu as consequências disso, para eles, Marighella é um herói, pois deu sua vida na esperança de libertar o povo das mazelas econômicas e sociais causadas pelo estabelecimento do novo momento do capitalismo brasileiro. Por outro lado, há a burguesia, com seus intelectuais e parcelas da população que não tinham ligações com movimentos de esquerda, por isso não experimentaram aquele período da mesma forma. Para eles, Marighella manteve a imagem de terrorista que atacou a propriedade privada dos bancos e desafiou a ordem com sequestros e armas.

Se a classe é formulada historicamente conforme a dialética da consciência e da experiência, para a parcela que tem certa afinidade com a luta proletária organizada, ou que desenvolveu pensamento crítico mais à esquerda do espectro político, o líder da ALN expressa um modo de lidar com o contexto em que estava, enquanto trabalhador, militante e homem negro, considerado o inimigo número um do regime. A recente retomada dessa figura nos mostra que a valorização dessa figura não se restringe aos comunistas, ela está presente no cinema e no rap.

Adotar essa memória implica na construção de uma cultura revolucionária de nosso tempo, com estratégias e táticas próprias, mas sempre tendo em mente o passado, com erros e acertos do partido e de seus militantes A forma de resistir à investida burguesa, o trabalho na consciência de classe, a organização e as estruturas sociais de hoje se formaram a partir daquelas experimentadas por Marighella, Prestes, Astrojildo e tantos outros. Carlos Marighella tem um forte potencial político, sua imagem na agitação e propaganda revolucionária vai muito além da reivindicação de um quadro histórico do PCB, ela reivindica um passado de lutas comum a boa parte dos trabalhadores, vivida e herdada por quem produz. Representa a morte heroica por seu povo, cuja missão é dar continuidade ao trabalho para impedir que o sacrifício tenha sido em vão.

Adotar essa memória implica na construção de uma cultura revolucionária de nosso tempo, com estratégias e táticas próprias, mas sempre tendo em mente o passado, com erros e acertos do partido e de seus militantes A forma de resistir à investida burguesa, o trabalho na consciência de classe, a organização e as estruturas sociais de hoje se formaram a partir daquelas experimentadas por Marighella, Prestes, Astrojildo e tantos outros.

Optamos por uma análise que interliga patrimônio cultural, lugares de memória e consciência de classe para discutir a importância de se manter um certo ecletismo, afinal o materialismo histórico, por ser dialético, pressupõe a transformação e o rigor científico sem dogmatismos. Sem perder de vista o método marxista, defendemos que as disputas assinaladas por Canclini no âmbito da construção nacional, para quem a luta de classes se faz presente no momento em que a classe dominante hierarquiza os elementos culturais da sociedade, apresentando os seus como universais, enquanto os grupos subalternos escolhem do que se apropriar e como ressignificar essa universalidade com sua cultura.

Já os lugares de memória debatidos por Nora trazem a noção de que vestígios do passado, documentos e monumentos têm a função de guardar uma perspectiva sobre determinado evento em um dado tempo, objetivando mantê-la viva. A partir disso, diferentes grupos atribuem diferentes significados a essa memória, como é o caso do Memorial a Marighella, podendo variar conforme a época, as estruturas sociais, costumes, intenções políticas, etc. Esse movimento se dá pelo fato de que o tempo, com as continuidades e rupturas provocadas pela ação humana, muda a sociedade, gera o esquecimento, e com ele a retomada de um passado capaz de explicar o presente.

Esse texto teve como objetivo levantar a problemática da memória no âmbito da história dos comunistas brasileiros, relacionamos E.P. Thompson a autores de fora do marxismo por acreditar que suas concepções auxiliam a compreensão mais ampla do processo formativo de consciência de classe, permeado pela história e pela memória. Segundo Thompson, a experiência é, para o materialismo histórico o equivalente à genética para a teoria da evolução de Darwin, ela ajuda a explicar o movimento da vida real que interliga os processos assinalados pela teoria. Partindo desse pressuposto, é de suma importância analisar de que modo os diferentes grupos da sociedade brasileira experimentam as estruturas que os condicionam, a saber, o capitalismo dependente, o subdesenvolvimento, o racismo, a violência, o machismo, etc.

Por meio do estudo da memória em torno do monumento a Marighella, discutimos um aspecto da formação da classe trabalhadora muito caro à história, o esforço das sociedades na manutenção de sua organização em grupos com passados comuns, além da legitimação das relações de poder, dominação de classe e hierarquização da cultura feita em torno do patrimônio nacional. O debate historiográfico acerca dos lugares de memória acaba, por vezes, se restringindo à teoria, recorrendo a eventos e problemáticas reais para embasar a argumentação e exemplificar, por esse motivo, decidimos dar maior relevância aos fatores práticos que permeiam esses fatores.

A história do movimento comunista brasileiro, em sua relação com as diversas conjunturas políticas, sociais e econômicas do capitalismo dependente, tem grande potencial interpretativo do processo histórico que se desenvolveu até a atualidade. Parte de sua relevância está em seu papel na construção dos fatores de unidade e identificação da parcela organizada do proletariado e da consciência de classe sobre a qual busca trabalhar. Tendo em vista que o impacto social de partidos e militantes não se restringe ao proletariado organizado, suas trajetórias se misturam com as da classe trabalhadora como um todo e, por meio da luta de classe, com a burguesia, de modo que os constructos ideológicos, a memória e a cultura fazem, em certa medida, parte do patrimônio histórico nacional.

Evidentemente, o conceito de patrimônio adotado pelo Estado através do IPHAN se encaixa nos apontamentos feitos por Canclini, no sentido de homogeneizar a cultura, retirar seu caráter político e atribuir valor conforme sua origem, qualidade técnica e estética. Esse modelo faz com que o trabalho de pessoas como Oscar Niemeyer – militante histórico do PCB – seja reconhecido por suas obras, sem que seu contexto, atuação política, valores e objetivos sejam valorizados. Simultaneamente, elementos como o Samba, o Forró e as festas tradicionais perdem seu caráter de resistência e sua história se resume ao aspecto artístico, ignorando os fatores sociais que compuseram sua caminhada.

O conjunto do patrimônio histórico e cultural é campo de disputa política justamente por englobar toda uma nação, além de refletir a dialética das classes e a estrutura social em que se dá. Se a concepção adotada pelo Estado e pelas grandes corporações de mídia caracteriza as artes plásticas e a música erudita como o que há de melhor em termos culturais, ela o faz porque são criações da classe dominante de quem são representantes. Haja vista que sua função é divulgar e reafirmar a qualidade dessas obras, termina por criar um senso comum para o qual tudo que não tenha tais características ou origem tem menor valor. Essa perspectiva busca legitimar a posição de poder dessa classe sobre outras.

Conforme apontamos anteriormente, a classe se forma nas experiências em comum, vividas ou herdadas por um dado grupo em determinada sociedade sob as condições de um meio de produção específico. Tais experiências são absorvidas por essas pessoas – junto a uma série de símbolos e significados que circulam pela realidade na época histórica em que se inserem –, selecionadas conforme suas crenças, valores e escolhas de vida, para que, então, se façam agentes históricos que impactam diariamente o presente e as perspectivas de o futuro, por menor que pareça a amplitude de suas ações.

Portanto, a cultura que a classe trabalhadora produz tem aspectos estéticos, estilo, referências, objetivos, origem e trajetória que lhe são particulares. Sua porção do patrimônio tem muito mais significado para seus iguais do que aquela da burguesia, mas como não detém a hegemonia sobre a sociedade, é obrigada a lidar com a desvalorização, ou a absorção e ressignificação de sua cultura. Nesse processo, a mercantilização transforma as obras em bens culturais cujo valor de troca prevalece e entra em cena a dinâmica assinalada por Lukács[5] de obsolescência e renovação constante das produções para vender mais.

Haja vista o fato de o antagonismo de classes permear, junto à mercantilização, o conjunto das relações sociais, sua manifestação no âmbito do patrimônio e da memória também são campos de construção da consciência de classe emancipadora. Marighella é exemplo prático disso, assim como o são as placas de rua dedicadas a Marielle Franco. Os movimentos sociais e partidos demoraram a perceber isso, e precisam atribuir maior atenção e trabalho político em torno dessas questões, pois sua organicidade só tem a crescer com a expansão da cultura proletária e da memória que conecta o proletariado organizado ao conjunto dos trabalhadores.

Ficha técnica: Memorial Carlos Marighella

Autor: Marcelo Ferraz

Tipologia: Marco

Material: granito

Data de Implantação: 04/11/1999, recolhido em 2002 ao depósito do DPH (Departamento de Patrimônio Histórico da cidade de São Paulo), recolocado e reinaugurado em seu local de origem em 2004.

Localização: Alameda Casa Branca (altura do nº 815)

Cidade: São Paulo, SP

Bairro: Jardim Paulista

Referências

Jornais e Arquivos

ALBUQUERQUE, Flávia. Marighella ganha homenagem no local onde foi assassinado há 44 anos. Agência EBC. 04 nov. 13. Disponível em: http://www.ebc.com.br/noticias/brasil/2013/11/marighella-ganha-homenagem-no-local-onde-foi-assassinado-ha-44-anos.

ATIVISTAS mudam nome da alameda Casa Branca, em SP, para homenagear Carlos Marighella. UOL. 04 nov. 2011. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2011/11/04/ativistas-mudam-nome-da-alameda-casa-branca-em-sp-para-homenagear-carlos-marighella.htm.

CARDOSO, William. Monumento a Marighella amanhece coberto de tinta vermelha em São Paulo: vandalismo ocorre dias depois de grupo atear fogo à estátua de Borba Gato. São Paulo: Folha de São Paulo, 2021. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2021/07/monumento-a-marighella-amanhece-coberto-de-tinta-vermelha-em-sp.shtml>

FOLHA DE SÃO PAULO. Morte de Marighella ganha marco em SP. São Paulo, Quinta-feira, 04 de Novembro de 1999. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq0411199924.htm.

______. Placa contra Marighella é afixada em monumento em sua homenagem. São Paulo, sábado, 12 de agosto de 2000. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc1208200012.htm.

MALIM, Mauro. Verbete Carlos Marighella. FGV/CPDOC. Disponível em: http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/marighella-carlos.

MONUMENTO a Marighella é pichado em SP. BAND. 8 jan. 2014. Disponível em: http://noticias.band.uol.com.br/noticias/100000655835/monumento-a-marighella-e-pichado-em-sp.html.

Bibliografia

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[1] Historiador pela FMU

[2] […] an historical phenomenon, unifying a number of disparate and seemingly unconnected events, both in the raw material of experience and in consciousness. I emphasize that it is an historical phenomenon. I do not see class as a “structure”, nor even as “category”, but as something which in fact happens (and can be shown to have happened) in human relationships.

More than this, the notion of class entails the notion of historical relationship. Like any other relationship, it is a fluency which evades analysis if we attempt to stop it dead at any given moment and anatomise its structure.

[3] Ver Florestan Fernandes, A Revolução Burguesa no Brasil e Jaldes Meneses, Florestan Fernandes e a teoria da revolução burguesa no Brasil.

[4] http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/marighella-carlos

[5] Ver Gyorgy Lukács. Velha e Nova Cultura.

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