Althusserianismo: guia de leitura

Por Panagiotis Sotiris. Traduzido por Reginaldo Gomes.

O círculo restrito em torno de Althusser é frequentemente apresentado como um mero apêndice do pensamento do filósofo. Ao contrário, quando os principais “althusserianos” seguiram seu próprio percurso intelectual, sua ligação com o althusserianismo foi mais ou menos distendida, quer pensemos em Balibar, Badiou ou Rancière.


Igualmente, além do primeiro círculo, o althusserianismo teve um impacto muito mais difuso. Panagiotis Sotiris fornece aqui algumas chaves de leitura para tornar o programa de pesquisa do althusserianismo mais palpável[1]. Esse programa se baseia em duas exigências: inventar uma nova prática da política e um materialismo do encontro. Entre a teoria social, a epistemologia, a teoria do discurso e a economia política, o althusserianismo é uma perspectiva que dá toda a sua dimensão à conjuntura, ao primado da luta de classes e da estratégia, às situações aleatórias e à contingência das relações de força.

Althusserianismo é um termo genérico que cobre um amplo espectro de pensadores, correntes teóricas e tendências políticas que foram influenciados pelo trabalho de Althusser.

Em primeiro lugar, há o que podemos chamar de o círculo althusseriano restrito. Podemos ter uma ideia dele lendo Ler O Capital[2], em particular, os textos de Balibar, Macherey, Establet e Rancière. Entre esses, destacam-se claramente os textos de Balibar e Rancière. Sobre os conceitos fundamentais do materialismo histórico de Balibar, é uma contribuição extremamente importante e particularmente original para uma variante “estruturalista” da teoria marxista da sociedade. A contribuição de Rancière (O conceito de crítica e a crítica da economia política dos Manuscritos de 1844 à O Capital) constitui um aporte totalmente inédito para a teoria do valor e a forma-valor, bem como uma tentativa de incorporar a teoria do fetichismo à uma perspectiva althusseriana, um caminho mais tarde abandonado tanto por Althusser e como por Rancière.

Desse círculo althusseriano emergiu uma série de contribuições marcantes, ligadas ao trabalho de Althusser, mas que igualmente se inscrevem como uma tentativa de se constituírem enquanto corrente.

Uma das contribuições mais notáveis foi o Pour une théorie de la production littéraire[3] de Macherey, em 1966. Ele não é apenas uma importante contribuição para uma teoria marxista da literatura, mas é também uma crítica impressionante do estruturalismo. Não se deve esquecer que em sua escolha de desviar-se de um estruturalismo de estruturas latentes para se dirigir a um materialismo do encontro e das singularidades, Althusser foi influenciado por Macherey, como foi revelado por sua correspondência. Macherey se tornaria um dos mais importantes filósofos contemporâneos, embora ele tenha produzido artigos principalmente durante a maior parte da década de 1970. Depois veio Hegel ou Spinoza, que inaugurou seu grande trabalho sobre Spinoza e, através de Spinoza, sobre uma concepção relacional de um materialismo das singularidades ainda em evolução e que é particularmente original.

Além disso, uma das contribuições mais importantes para uma teoria marxista do papel do aparelho educativo, a saber L’école capitaliste en France[4] (Maspero, 1971) de Christian Baudelot e Roger Establet, fez parte desse esforço coletivo para produzir intervenções sobre temas específicos. Essa foi uma das contribuições mais significativas para uma teoria marxista do papel desempenhado pela educação na reprodução social.

No campo da antropologia, podemos nos voltar a Emmanuel Terray para ver o alcance da influência de Althusser. Le Marxisme devant les sociétés «primitives»: Deux études[5] (Maspero, 1969), constitui uma contribuição considerável.

Em termos de uma conceituação particularmente original das modalidades de uma política de classes, podemos nos referir à obra de Étienne Balibar na década de 1970. Cinq études du matérialisme historique[6] de Balibar (Maspero, 1974), é ainda hoje uma das mais importantes contribuições à uma potencial teoria marxista da política, particularmente no que diz respeito a noção de “nova prática política” que Balibar introduz, e que constituirá um ponto de referência crucial para Althusser nos anos de 1970. A obra de Balibar, Sur la dictature du prolétariat[7] (Maspero, 1976), deve também ser lida sob a mesma ótica, não só como uma tentativa de defender uma concepção leninista de ditadura do proletariado, mas também como um projeto para repensar uma prática revolucionária da política. Os escritos de Balibar da segunda metade da década de 1970 fornecem também um esforço inestimável de problematização dessa noção de política de classes. Para além dos artigos em revistas, tais como o artigo “État, parti, transition”, podemos também consultar a obra de Balibar, André Tosel e Cesare Luporini: Marx et sa critique de la politique (Maspero, 1979).

É preciso também citar o importante trabalho de Domenique Lecourt sobre a epistemologia. Uma série de livros de Lecourt publicados nos anos de 1970 oferecem não só uma contribuição essencial à uma epistemologia marxista influenciada por Althusser, mas também, especialmente no início dos anos de 1980, uma importante contribuição quanto a tematização do materialismo do encontro. Pour une critique de l’épistémologie: Bachelard, Canguilhem, Foucault[8] (Maspero, 1972) é uma leitura importante das teorias que oferecem uma crítica da epistemologia dominante (idealista). Une crise et son enjeu (Maspero, 1973), é uma leitura totalmente original da intervenção filosófica de Lênin. Lyssenko, histoire réelle d’une “science prolétarienne” (Maspero, 1976; réédition Quadrige/PUF, 1995), é uma tentativa de considerar os efeitos do stalinismo na ciência a partir de uma perspectiva althusseriana. Dissidence ou révolution? (Maspero, 1978), é uma crítica a certos elementos do pensamento de Foucault, mas também dos “Nouveaux philosophes”. L’Ordre et les jeux (Grasset, 1981) e La Philosophie sans feinte (Albin Michel, 1982), propõem conceituações inéditas de um materialismo não teleológico, com elementos de um materialismo do encontro.

No que concerne a teoria da linguagem, Michel Pêcheux é a figura mais importante. É um pensador particularmente original (foi um dos pioneiros na análise de discurso mediado por computador) que propôs uma importante teoria de como a luta de classes afeta a linguagem e a significação. Les Vérités de La Palice. Linguistique, sémantique, philosophie[9] (Maspero, 1975), oferece tal perspectiva e La Langue introuvable (La Découverte, 1981) com Françoise Gadet, propõe uma confrontação muito interessante com outras teorias linguísticas.

Na filosofia, há também Pierre Raymond. Le Passage au matérialisme. Idéalisme et matérialisme dans l’histoire de la philosophie (Maspero, 1973), continua sendo uma das mais importantes contribuições para a questão de uma potencial filosofia materialista em uma perspectiva althusseriana. Raymond desenvolveu a sua própria concepção, altamente original, de um materialismo não teleológico, que começou com os seus estudos sobre as probabilidades. Podemos nos referir a L’Histoire et les sciences[10] (Maspero, 1975), De la combinatoire aux probabilités: la combinatoire de Cardan à Jacques Bernoulli (Maspero, 1975), Matérialisme dialectique et logique (Maspero, 1977), L’Histoire et les sciences. Suivi de Cinq questions sur l’histoire des mathématiques (Maspero, 1978), La Résistible fatalité de l’histoire (J.- E. Hallier/Albin Michel, 1982).

Georges Labica, embora jamais tenha feito parte do círculo “restrito”, foi influenciado por Althusser, sendo ao mesmo tempo um pensador completamente original. Le Statut marxiste de la philosophie (Complexe/Presses Universitaires de France, 1976), continua sendo uma das mais significativas contribuições para um pensamento da relação complexa de Marx com a filosofia. Coeditor com Gérard Bensussan do Dictionnaire critique du marxisme, em colaboração com a revista Dialectiques (Presses Universitaires de France, 1982), foi também um importante militante comunista nos anos de 1970, crítico da linha do PCF. Pode-se consultar o texto em coautoria com Étienne Balibar, Guy Bois e Jean-Pierre Lefebvre: Ouvrons la fenêtre, camarades! (Maspero, 1979). Ele continua a apresentar trabalhos tais como: Karl Marx: Les Thèses sur Feuerbach[11] (Presses Universitaires de France, 1987), Le Paradigme du Grand-Hornu: Essai sur l’idéologie (PEC-La Brèche, 1987), Robespierre, une politique de la philosophie (Presses Universitaires de France, 1990) e Théorie de la violence (La Città del sole/ J. Vrin, 2007).

Christine Buci-Glucksmann, em sua obra seminal Gramsci et l’État[12] – uma das mais importantes monografias sobre Gramsci – foi também influenciada por Althusser, o que torna a sua leitura de Gramsci ainda mais necessária. É igualmente significativo que outra leitura de Gramsci da mesma época, em uma perspectiva ainda mais “maoísta”, tenha vindo também de alguém influenciado por Althusser. Trata-se de Pour Gramsci[13] de Maria-Antonietta Macchiochi.

Na economia, é interessante notar que dois dos mais eminentes economistas marxistas também se referem ao trabalho de Althusser. Le Concept de la loi économique dans le Capital de Gérard Duménil (Maspero, 1977), chegou a ser prefaciado por Althusser. Jacques Bidet foi também muito influenciado por Althusser, o que é particularmente explícito em Que faire du «Capital»? (1985).

Contudo, duas das figuras mais importantes associadas a corrente althusseriana não eram, de fato, membros do círculo althusseriano restrito: Nicos Poulantzas e Charles Bettelheim. Mas esses dois merecem que se lhes consagre um guia de leitura inteiro a parte.


Notas

[1] Há outro “guia de leitura” escrito por Panagiotis Sotiris voltado para a obra de Althusser, estamos traduzindo esse texto. – Nota do tradutor (NT).

[2] Trad. bras.: ALTHUSSER, Louis et al. Ler O Capital (2 volumes). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editorai, 1979 e 1980. – NT.

[3] Trad. bras.: MACHEREY, Pierre. Para uma teoria da produção literária. Lisboa: Estampa, 1971.

[4] BAUDELOT, Christian; ESTABLET, Roger. La Escuela Capitalista en Francia. Madrid: Siglo XXI, 1978. – NT.

[5] Trad. bras.: TERRAY, Emmanuel. O marxismo diante das sociedades ‘primitivas’: dois estudos. Rio de Janeiro: Graal, 1979. – NT.

[6] Trad. bras.: BALIBAR, Étienne. Cinco estudos do materialismo histórico (2 volumes). Lisboa: Presença/Martins Fontes, 1975. – NT.

[7] Trad. pt.: BALIBAR, Étienne. Sobre a ditadura do proletariado. Lisboa: Moraes Editores, 1977. – NT.

[8] Trad. bras.: LECOURT, Dominique. Para uma crítica da epistemologia. Lisboa: Assirio Alvim, 1980. – NT.

[9] PÊCHEUX, Michel. Las verdades evidentes: lingüística, semántica, filosofía. Buenos Aires: Ediciones del CCC Centro Cultural de la Cooperación Floreal Gorini, 2016. – NT.

[10] Trad. bras.: RAYMOND, Pierre. A história e as ciências. Lisboa: Res, 1979. – NT.

[11] Trad. bras.: LABICA, Georges. As “teses sobre Feuerbach” de Karl Marx. Rio de Janeiro: Zahar, 1990. – NT.

[12] Trad. bras.: BUCI-GLUCKSMANN, Christine. Gramsci e o Estado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980. – NT.

[13] Trad. bras.: MACCIOCCHI, Maria-Antonietta. A favor de Gramsci. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. – NT.

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