Por Rodrigo Alencar*
O meme da pandemia é: “todos os protocolos estão sendo seguidos”. Quais protocolos? Todos! Então não sabemos se o estabelecimento está obrigando as pessoas a comerem de máscara ou diluindo cloroquina com ivermectina na água. A palavra “todos” pressupõe consensos científicos e sanitários que ainda são parcos e que, se seguidos seriamente, não estariam sendo abertos restaurantes, academias e shopping centers.
Há um filme do brilhante diretor sérvio Emir Kusturica chamado Underground. O filme, vencedor da Palma de Ouro em Cannes, se apresenta como uma metáfora para a guerra e se desenrola como uma metáfora para a breve história da Iugoslávia. Nele, Marko Dren abriga seu amigo Petar e sua extensa família no sótão de sua casa, protegendo o grupo da captura de inimigos nazistas.
O argumento do filme se encampa na perversidade posta na relação, visto que a guerra termina e Marko não avisa o grupo, mantendo-o escondido em seu porão, fabricando armas, por décadas a fio, até a eclosão da guerra civil que foi testemunhada pelo mundo na década de noventa.
O filme tem diferentes versões de subtítulo, na Sérvia e em Portugal foi lançado como “Underground: era uma vez um país” e no Brasil “Underground: mentiras de guerra”. A história como é comum nas obras de Kusturica, detém um surrealismo festivo com rompantes de fúria e não raramente poderia ser comparado com obras cinematográficas brasileiras, pelo uso de uma linguagem visual forte com falas e posturas expansivas.
A tragédia exposta no filme consiste na subversão dos afetos mais importantes em momentos críticos da história, quando mais se busca solidariedade e compaixão, mais se depara com oportunismos maniqueístas. É um conto comum nos contextos de guerras, refúgios e grandes catástrofes, de modo que vem sendo largamente explorado há décadas por narrativas pós apocalípticas, principalmente nas compostas por filmes de zumbis.
Não me interessa abordar a triste história da guerra civil nos Balcãs, ou mesmo sua representação. Mas, sim, o desafio que a realidade contemporânea impõe às obras mais surreais.
Vamos reter a ideia do porão utilizada no filme e subverter a estratégia de Marko. Ao invés de esconder a família em seu porão, leva-a a superfície em meio a bombardeios e capturas e diz: “sejam bem vindos ao novo normal!”. E então, Petar provavelmente perderia sua mãe e Marko argumentaria “veja bem; quase todo mundo perde alguém dessa forma, o novo normal funciona assim”. A partir de então, não existiria mais estado de não-conflito e toda a superfície seria uma zona de guerra violenta e desumana, cabendo às pessoas se adaptarem.
A cena, se reproduzida em um filme, seria escandalosamente inverossímil e provavelmente seria tão irreal que ficaria difícil de classificá-la mesmo de surreal. Ou seja, seria a pura experiência brasileira de 2020.
É assim que a pós pandemia vem se precipitando: como a pandemia sem fim. A gritante fraqueza política e a crise de legitimidade das instituições que ocupam funções de governo e segurança pública produziram a quarentena das condicionais. Uma espécie de negociação fantasiosa com o vírus. Então, se no início o lema era: “fique em casa, se puder”. Agora já encaramos o: “pode ir ao shopping, se usar máscara”.
Nos vemos na véspera de frases como: “crianças de 3 e 4 anos podem voltar para a creche, se não tocarem uns nos outros e não tirarem a máscara”. Por mais que já existam fortes evidências sobre a eficácia das máscaras, qualquer um pode prever a impossibilidade de consumir em um bar ou em um restaurante, assim como crianças que passem horas em uma escola sem tirar a máscara ou tocar umas às outras.
O meme da pandemia é: “todos os protocolos estão sendo seguidos”. Quais protocolos? Todos! Então não sabemos se o estabelecimento está obrigando as pessoas a comerem de máscara ou diluindo cloroquina com ivermectina na água. A palavra “todos” pressupõe consensos científicos e sanitários que ainda são parcos e que, se seguidos seriamente, não estariam sendo abertos restaurantes, academias e shopping centers.
Como exposto por Sérgio Rodrigues em sua coluna intitulada “Novo normal é o novo anormal”, deslocando para essa reescrita, o “novo normal” se tornou o vagão dos que renunciaram à crítica dos absurdos e resolveram abraçar a morte que salta dos centos aos milhares como simples efeito colateral do cotidiano.
Já há especulações sobre a possibilidade de municípios como São Paulo estarem se aproximando de uma imunidade de rebanho, enquanto cidades como Fortaleza encaram um segundo pico de internações por doenças respiratórias devido a uma reabertura precoce.
Então temos de admitir que não há novo, pois a vida segue banal como antes e não há normal, pois morrem conterrâneos como nunca. Porém, não nos deixemos enganar, o que se normaliza é a morte que poderia ser evitada, os efeitos dessas decisões funcionam como um ensaio da crise econômica que se evidencia: “não importa que morram centenas de pessoas por dia em uma cidade, ou milhares em um país, o que não pode acontecer é o sistema parar de funcionar”. A rigor, quer dizer: o sistema não pode deixar de ser o que é.
O que ocorre com a combinação de pandemia com crise econômica pode ser chamado de dessensibilização sistemática, nome dado a uma técnica usada em psicologia comportamental que consiste em exposição e aproximação da experiência traumática, de modo que em algum momento, os efeitos do evento traumático deixem de se apresentar e se encontre um estado de normalidade.
A manutenção do capitalismo como o conhecemos requer cada vez mais mortes e a Covid-19 está se tornando o projeto piloto para o futuro distópico. Quantas mortes e tragédias podemos tolerar para mantermos o gostinho de que tudo é exatamente como era antes. O quanto de desigualdade social, em que uma minoria se protege cercada de serviços enquanto a maioria convive com a morte baforando em sua nuca, se consegue justificar para continuarmos nos convencendo de que esse é o melhor caminho?
São experiências “overground”, onde não são necessárias “mentiras de guerra”, só a triste e conivente normalidade acovardada.
Notas:
[1] Coluna no jornal Folha de São Paulo, publicada em 16 de julho de 2020.
* Rodrigo Alencar é Psicanalista. Doutor em Psicologia Clínica na Universidade de São Paulo com doutorado sanduíche na University of Manchester (UK). Professor de pós graduação em Sociopsicologia na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP), mestre em Psicologia Social na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (bolsa CNPQ). Membro do laboratório de Psicanálise, Sociedade e Política (IP – USP) e membro do Dicourse Unity (UK). Autor do livro “A fome da alma: psicanálise, drogas e pulsão na modernidade”.
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