Por Flávia Benetti Castro e Gabriel Landi Fazzio
A denúncia da desigualdade salarial entre homens e mulheres é admitida até mesmo pelo ponto de vista liberal, mas apenas as lutas travadas pelas trabalhadoras e dos trabalhadores podem mudar essa situação, enfrentando a própria escravidão salarial. Se apenas questionarmos as consequências culturais, mas não os fundamentos político-econômicos das desigualdades salariais, nos restará, tão somente, esperar que o mercado traga a igualdade “naturalmente” – o que a história já nos mostra que é impossível, vez que só a luta organizada é capaz de mudar a realidade das relações de produção.
O Fórum Econômico Mundial (FEM) anunciou, em 2015, que a desigualdade salarial entre homens e mulheres levaria ainda 118 anos para ser eliminada. Porém, menos de um ano depois, o Fórum anunciou a revisão de tal previsão: o fim da desigualdade salarial entre os gêneros deverá demorar mais 170 anos para ocorrer! Repita-se: são necessários quase dois séculos para a justa equiparação salarial entre o trabalho realizado por um homem e o por uma mulher – sem que falemos, ainda, das discrepâncias de tratamento, assédio moral e sexual, bem como dos estigmas sociais das profissões ditas “femininas”. Segundo a organização, em todo o mundo, 54% das mulheres em idade laboral participam da economia formal, em comparação com um percentual masculino de 81%. Em geral, as mulheres são remuneradas com salários que representam apenas 59% dos salários destinados aos homens, uma diferença de quase metade pela mesma atividade desempenhada.
Quem não conhece o FEM talvez conheça, por outro lado, a reunião que a organização capitalista prepara anualmente em Davos entre os CEOs das 1.000 empresas que compõem o Fórum, contando com a presença de políticos e intelectuais burgueses. Após evidenciados os interesses materiais que lastreiam o Fórum, algumas perguntas podem ser levantadas sobre o significado de tal revisão.
Os limites do progressismo liberal
É pertinente questionar: mas como se calcula esse prazo, ou seja, como se chegou à estimativa de 170 anos? Segundo a instituição, a resposta é “conforme o ritmo atual” [1]. Isto é, a revisão seria causada porque “o progresso desacelerou, paralisou ou se reverteu em nações ao redor do mundo”. Assim, segundo o ponto de vista liberal do FEM, é supérfluo investigar os motivos de tais ritmos distintos na redução ou no aumento da desigualdade; é desagradável apontar que tais ou quais políticas são mais ou menos efetivas – basta, então, estabelecer uma média ponderada entre os distintos ritmos nacionais de redução ou aumento da desigualdade, como se houvesse uma tal coisa como uma “redução mundial” na diferença salarial. A revisão do dado, evidentemente, põe por terra a própria metodologia, marcada por um otimismo progressista liberal, que apenas celebra e prega: “deixai fazer”, estamos no caminho certo! É por isso mesmo que, diante das mudanças políticas internacionais do último ano, o FEM nada mais pode apontar senão um tempo de espera maior. Mesmo os reformistas “de esquerda” da OIT são incapazes de propor algo diferente dessa espera prolongada – nesse ponto específico (mas também em outros) são mais “de esquerda” que os economistas do FEM apenas porque imploram mais desesperadamente aos patrões por uma política salarial menos discriminatória e propõe uma espera de apenas 70 anos, um século a menos! E, entretanto, ambos organismos internacionais se omitem, significativamente, quanto à própria mobilização organizada das trabalhadoras e dos trabalhadores para forçar mudanças nas políticas remuneratórias. Omitem, não à toa, a verdadeira história acerca do 8 de março, fantasiando, mistificando e mercantilizando uma data cuja origem está marcada por um caráter socialista e proletário. Omitem a greve das trabalhadoras da Ford, em Dagenham, em 1968, estopim para os movimentos pelo “Equal Pay Act” de dois anos depois. Omitem a colossal greve geral das trabalhadoras islandesas, de 1975, e seus resultados. Enfim, omitem o fundamental no que diz respeito a qualquer questão salarial: a luta de classes.
Nesses termos, como resolver, então, a questão da desigualdade salarial entre os gêneros? “Exatamente como se resolve qualquer outra questão social na sociedade de hoje: pelo equilíbrio econômico gradual entre procura e oferta, solução que reproduz constantemente a questão e que, portanto, não é solução”.
A esse respeito, valeria lembrar a reflexão fatídica de Walter Benjamin sobre a ideia de progresso que consola os reformadores sociais:
“A teoria e, mais ainda, a prática da social-democracia foram determinadas por um conceito dogmático de progresso sem qualquer vínculo com a realidade. Segundo os socialdemocratas, o progresso era, em primeiro lugar, um progresso da humanidade em si, e não das suas capacidades e conhecimentos. Em segundo lugar, era um processo sem limites, ideia correspondente à da perfectibilidade infinita do gênero humano. Em terceiro lugar, era um processo essencialmente automático, percorrendo, irresistível, uma trajetória em flecha ou em espiral. Cada um desses atributos é controvertido e poderia ser criticado. Mas, para ser rigorosa, a crítica precisa ir além deles e concentrar-se no que lhes é comum. A ideia de um progresso da humanidade na história é inseparável da ideia de sua marcha no interior de um tempo vazio e homogêneo. A crítica da ideia do progresso tem como pressuposto a crítica da ideia dessa marcha.
[…] Nosso ponto de partida é a ideia de que a obtusa fé no progresso desses políticos, sua confiança no “apoio das massas” e, finalmente, sua subordinação servil a um aparelho incontrolável são três aspectos da mesma realidade. […]
A tradição dos oprimidos nos ensina que o “estado de exceção” em que vivemos é na verdade a regra geral. Precisamos construir um conceito de história que corresponda a essa verdade. Nesse momento, perceberemos que nossa tarefa é originar um verdadeiro estado de exceção; com isso, nossa posição ficará mais forte na luta contra o fascismo. Este se beneficia da circunstância de que seus adversários o enfrentam em nome do progresso, considerado como uma norma histórica. O assombro com o fato de que os episódios que vivemos no séculos XX “ainda” sejam possíveis, não é um assombro filosófico. Ele não gera nenhum conhecimento, a não ser o conhecimento de que a concepção de história da qual emana semelhante assombro é insustentável.”
Considerada a reflexão de Benjamin e a própria revisão do prazo dado pelo FEM, o que restará que dê consistência ao otimismo progressista? A desigualdade salarial entre mulheres e homens não só ainda é possível “em pleno século XXI”, como é a cada ano mais possível. Caindo totalmente por terra a tese de uma “progressiva evolução geral da humanidade” no plano da moral, dos valores e da cultura, não seria o caso de pôr abaixo, também e principalmente, a explicação puramente cultural da desigualdade de gênero no âmbito dos salários?
A desigualdade salarial e a crise capitalista
Quando criticamos uma explicação “puramente cultural”, não pretendemos oferecer em alternativa uma explicação “puramente econômica”.
Sem a pretensão aprofundar um tema já amplamente debatido e pesquisado, apenas salientamos que qualquer causa ideológica que esteja por trás de tal ou qual desigualdade é, por sua vez, inexistente sem um motivo econômico. “A opressão na sociedade é sempre o resultado da exploração imposta”, afirmava Samora Machel. Em síntese: para enriquecer, a classe dominante lança mão de todo o tipo de opressão – e não ao contrário, como se por mero costume reproduzisse a opressão (cuja origem remontaria alguma maldade arbitrária ou uma genética essencialmente maldosa) e por ingênuo acidente lucrasse com essa reprodução.
Ignorando o próprio fundamento da acumulação de riquezas no capitalismo – a mais-valia, ou seja, a parcela do trabalho efetivamente realizado, mas não pago à trabalhadora e ao trabalhador – é possível de se surpreender que, diante de uma das maiores crises da história recente, a redução das desigualdades salariais seja revertida.
Mas não só isso: em São Paulo, na contramão da tendência geral, a desigualdade salarial entre os gêneros caiu nos últimos meses! O motivo? Segundo uma economista: “Há aproximações de números, como no contingente de desempregados, que foi de quase 50% mulheres e 50% homens; historicamente, as mulheres sempre foram maior alvo do desemprego. Agora, ficou mais próximo, assim como o rendimento médio. No entanto, não foram por causas virtuosas, pois 2015 foi um ano de crise, que atingiu mais homens que mulheres. Ou seja, foi porque homens tiveram piora na situação que elas chegaram mais próximo”.
Conclusão: como regra geral, temos que os capitalistas salvarão seus lucros às custas da intensificação da exploração e da opressão das proletárias; como exceção, temos que as trabalhadoras podem ser menos penalizadas nos lugares onde os homens proletários forem duramente vitimados pelo desemprego em massa. Não é pouco significativo lembrar, a esse respeito, que em muitos países a inserção massiva das mulheres no mercado de trabalho surgiu como necessidade de exploração de mão de obra barata quando os homens trabalhadores saíam às guerras imperialistas – ou seja, algo bastante distante da idílica “conquista do trabalho feminino” descrita pelos liberais. Segundo essa narrativa, as mulheres não deveria se revoltar contra sua exploração pelos capitalistas, e sim agradecê-los por retirá-las ao embrutecimento do lar e da família tradicional, inserindo-as benevolentemente na esfera da vida pública!
Verdade seja dita que, desde o princípio, os economistas do FEM sempre falaram em reduzir a desigualdade salarial; mas nunca em aumentar os salários, logo, abordam a temática sob um viés estritamente liberal que não contempla as reivindicações das trabalhadoras enquanto classe. Este discurso incompleto e insatisfatório vem, apenas, para preservar a desigualdade estrutural entre as classes proprietárias e as classes despossuídas. No capitalismo, para que alguém avance é preciso que alguém retroceda, e as classes dominantes não pretendem sofrer regressões em nenhum de seus privilégios, o que as leva a difundir um discurso naturalizante e conformador. Mas não é bem este o rumo da classe trabalhadora.
Apenas junto com as trabalhadoras o socialismo será vitorioso
De maneira absolutamente pioneira, a comunista Clara Zetkin já apontava para as divergências classistas no próprio bojo das lutas das mulheres contra sua opressão. Para a pequena-burguesia, importa “conquistar a igualdade econômica com os homens e elas só poderão fazê-lo com duas demandas: a demanda por igualdade na qualificação profissional e por iguais oportunidades de trabalho para ambos os sexos. Em termos econômicos, isso significa nada menos que o livre acesso a todos os empregos e a concorrência sem entraves entre homens e mulheres”. Mas “no que se refere à mulher proletária, foi a necessidade do capitalismo explorar e procurar incessantemente uma força de trabalho mais barata que criou a questão da mulher. É por essa razão, também, que a mulher proletária foi envolvida no mecanismo da vida econômica”. Assim, “a luta de libertação da mulher proletária não pode ser similar à luta que a mulher burguesa trava contra o homem de sua classe. Pelo contrário, ela tem de ser uma luta conjunta com o homem de sua classe contra a classe dos capitalistas em conjunto.”
Isso não significa, de modo algum, que a reivindicação de salários iguais entre mulheres e homens seja secundária. Ao contrário: significa, em primeiro lugar, que os homens trabalhadores não podem se isentar na solidariedade classista a tal luta das mulheres trabalhadores – de modo a juntar-se em seus processos de luta, em seus espaços de organização e na divisão das tarefas reprodutivas e no cuidados dos filhos, a fim de que as mulheres não se ausentem dos ambientes políticos, sendo tal divisão concebida não de acordo com os parâmetros “naturais” do gênero, mas coletivamente e racionalmente decidida; e, em segundo lugar, significa compreender que essa reivindicação é absolutamente irrealizável sob o capitalismo, que não pode manter-se operando senão buscando incessantemente modos de intensificar a extração de mais-valia. Neste sentido, em sua obra “Gênero, Patriarcado e Violência”, detalha a socióloga marxista Heleieth Saffioti:
“Acrescente-se o tradicional menor acesso das mulheres à educação adequada à obtenção de um posto de trabalho prestigioso e bem remunerado. Este fenômeno marginalizou-as de muitas posições no mercado de trabalho. A exploração chega ao ponto de os salários médios das trabalhadoras brasileiras serem cerca de 64% (IBGE) dos rendimentos médios dos trabalhadores brasileiros, embora, nos dias atuais, o grau de escolaridade das primeiras seja bem superior ao dos segundos. A dominação-exploração constitui um único fenômeno, apresentando duas faces. Desta sorte, a base econômica do patriarcado não consiste apenas na intensa discriminação salarial das trabalhadoras, em sua segregação ocupacional e em sua marginalização de importantes papéis econômicos e político-deliberativos, mas também no controle de sua sexualidade e, por conseguinte, de sua capacidade reprodutiva. Seja para induzir as mulheres a ter grande número de filhos, seja para convencê-las a controlar a quantidade de nascimentos e o espaço de tempo entre os filhos, o controle está sempre em mãos masculinas, embora elementos femininos possam intermediar e mesmo implementar estes projetos […] Isto é, a preservação do status quo consulta os interesses dos homens, ao passo que transformações no sentido da igualdade social entre homens e mulheres respondem às aspirações femininas. Não há, pois, possibilidade de se considerarem os interesses das duas categorias como apenas conflitantes. São, com efeito, contraditórios. Não basta ampliar o campo de atuação das mulheres. Em outras palavras, não basta que uma parte das mulheres ocupe posições econômicas, políticas, religiosas etc., tradicionalmente reservadas aos homens. Como já se afirmou, qualquer que seja a profundidade da dominação-exploração da categoria mulheres pela dos homens, a natureza do patriarcado continua a mesma. A contradição não encontra solução neste regime. Ela admite a superação, o que exige transformações radicais no sentido da preservação das diferenças e da eliminação das desigualdades, pelas quais é responsável a sociedade. Já em uma ordem não-patriarcal de gênero a contradição não está presente. Conflitos podem existir e para este tipo de fenômeno há solução nas relações sociais de gênero isentas de hierarquias, sem mudanças cruciais nas relações sociais mais amplas”.
No mesmo caminho apontam as reflexões de Iñaki Gil de San Vicente:
“As estruturas econômicas e culturais de exploração de sexo-gênero funcionam em duas áreas diferentes, porém unidas na prática: a da exploração da força de trabalho sexo-econômica da mulher pelo homem, e a da dominação cultural, afetiva, emocional, amorosa, sexual, política, etc., do patriarcado. A união prática entre exploração e dominação produz a opressão capitalista de sexo-gênero. O sistema patriarcal é anterior ao capitalismo, porém este é integrado, submetido a sua lógica, convertendo-se em uma peça chave de sua existência, peça que demonstra especialmente sua eficácia em duas circunstâncias decisivas. Durante as crises, o patriarcado reforça a opressão da mulher em todos os sentidos para aumentar os benefícios capitalistas em todas suas expressões; durante as lutas revolucionárias, o patriarcado tenta convencer as mulheres de que não lutem, que sejam passivas e, sobretudo, que se oponham à revolução.”
Assim sendo, a reivindicação de salários iguais para iguais atividades, sem distinção de gênero, deve ser erguida não com a intenção de iludir as trabalhadoras sobre sua viabilidade no regime de escravidão assalariada, mas pelo contrário, de modo a ampliar a consciência da necessidade de derrubar o capitalismo e erguer novas relações de produção, baseadas nos próprios interesses da classe trabalhadora. Enquanto os meios de produção sejam prioridade privada e o trabalho seja apenas uma mercadoria que compõe a parcela variável do capital, qualquer reivindicação de tal tipo apenas pode exprimir a intenção de ver os meios de produção subordinados aos interesses do trabalho.
Apenas em uma sociedade socialista é possível realizar a igualdade salarial, bem como as demais relações igualitárias no mundo do trabalho quanto à forma de tratamento, o rompimento dos pré-conceitos e a erradicação de estigmas entre mulheres e homens, abrindo as portas para toda uma série de transformações na própria divisão sexual do trabalho em escala ampliada e coletiva. Ao contrário do que pede o FEM, as trabalhadoras não precisam esperar pacientemente que a livre-concorrência lhes presenteie com a igualdade: ao contrário, contando com a consciência solidária de seus camaradas na subdivisão de tarefas e na formação de quadros políticos (sem a sobrecarga de tarefas secretariais, mas sim entendidas como parcela ativa e de vanguarda na atuação política da classe), precisam dedicar todos seus esforços e prioridades à sua organização enquanto classe, e arrancar a igualdade aos capitalistas pela luta, instituindo o poder da classe trabalhadora sobre as decisões econômicas.
[1] A nível global, a diferença diminuiu apenas 0,6% entre 1995 e 2015, segundo a OIT.