A Realidade de Ernst Lubitsch

Por Slavoj Žižek, via The Philosophical Salon, traduzido por traduzido por Oleg Savitskii e Anna Savitskaia.

Theodor Adorno inverteu a condescendente pergunta historicista de Benedetto Croce sobre “o que está morto e o que está vivo na dialética de Hegel.” Se Hegel está realmente vivo enquanto pensador, a pergunta, portanto, a ser feita hoje é a oposta: “Como é que ficamos NÓS, HOJE, aos olhos de Hegel?” Exatamente o mesmo vale para Ernst Lubitsch. A pergunta é: “Como a nossa contemporaneidade apareceria aos olhos de Lubitsch?” É aí que reside a realidade de Lubitsch: embora, naturalmente, rejeitasse com repugnância o neo-racismo populista, ele teria imediatamente percebido também a falsidade de seu oponente, o moralismo politicamente correto, vendo com clareza a sua cumplicidade oculta. Lubitsch teria ficado aterrorizado ao perceber como os prazeres perversos das obscenidades, mesmo da ironia, se deslocaram para a Direita enquanto a Esquerda se enreda cada vez mais no moralismo puritano, ascético e patético.     


Então, como Lubitsch combateria essa tendência? Por meio da obliquidade cômica. Mas será que isso funciona? Depois da extensão das atrocidades nazistas ter-se tornado conhecida pelo público, o filme de Lubitsch Ser ou Não Ser, assim como O Grande Ditador de Chaplin, foram ambos criticados por minimizar os horrores do Nazismo, ao fazer comédia dele. O próprio Chaplin afirmou que se soubesse do horror dos campos de concentração, nunca teria feito o seu filme. A situação, no entanto, é muito mais complexa e ambígua. E não é que, em uma tragédia, as vítimas retêm um mínimo de dignidade, e é por isso que, quando o horror excede certos limites, retratá-lo como uma tragédia é uma minimização blasfema de sua extensão?

Em Auschwitz (ou em um campo Gulag) as vítimas foram privadas de sua dignidade humana, de forma que não mais podiam ser percebidas como heróis trágicos; em vez disso, entra em ação certo modo de comédia. Não admira que alguns dos melhores filmes sobre campos de concentração são comédias. Lubitsch, porém, teria rejeitado a virada sentimental final de alguns deles, que arruína todo o filme, como é o caso do filme La vita è bella de Benigni. Quando o personagem principal do filme (interpretado pelo próprio Benigni) e seu filho pequeno são presos e levados para Auschwitz, ele inventa uma história para seu filho: a sua estada em Auschwitz é apenas parte de uma grande competição, eles são livres para ir embora quando quiserem, mas, se aguentarem até o fim, aguarda-os uma grande recompensa… Basta fazer um simples experimento mental para compreender o que está errado com o filme: imagine o mesmo filme com uma alteração, onde, no final, o pai teria descoberto que o seu filho sabia o tempo todo onde ele estava, em um campo de concentração, e que ele apenas fingia acreditar na história de seu pai para facilitar a sua vida. Podemos facilmente visualizar a cena em que, sem palavra alguma, o pai e o filho apenas trocam olhares, que atestam o fato de que ambos sabiam o que o outro sabia. Esse reconhecimento mútuo se aproximaria tanto quanto possível de uma prova de amor verdadeiro.

Portanto, com relação à comédia, passemos agora a Primo Levi que, no seu livro É isto um homem?, descreve a horrenda “selekcja,” o exame de sobrevivência no campo de concentração: cada prisioneiro deve correr na frente de um médico da SS que, em uma fração de segundo, julga o seu destino: saudável o suficiente para continuar trabalhando ou a câmara de gás. Não há algo propriamente CÔMICO no espetáculo ridículo de aparecer forte e saudável para atrair, por um breve instante, o olhar indiferente do médico? Aqui, comédia e horror coincidem: imagine os prisioneiros treinando a sua apresentação, tentando manter a cabeça erguida e o peito estufado, andando a passo vigoroso, beliscando os lábios para aparecerem menos pálidos, trocando dicas de como impressionar o médico; imagine como uma simples confusão momentânea de cartões ou a falta de atenção do médico pode decidir o seu destino… Hegel, em seu livro Estética, opõe ao humor subjetivo da Ironia Romântica (um sujeito que caçoa de tudo para afirmar a sua superioridade), o que ele chama de “humor objetivo”, inversões humorísticas inscritas na própria realidade do horror. A cena descrita por Levi não é de humor objetivo?

Devemos então realmente nos surpreender que uma das piadas em Sarajevo quando a cidade estava sob cerco (e, devido aos bombardeios sérvios, o fornecimento de gás era muitas vezes interrompido) foi: “Qual é a diferença entre Auschwitz e Sarajevo? Em Auschwitz, pelo menos, nunca lhes faltou o gás.” Ou que tal a cruel piada popular entre os sobreviventes do massacre de Srebrenica? (para compreender essa piada, devemos lembrar que, décadas atrás, quando a pessoa ia ao açougue para comprar um pouco de carne bovina, o açougueiro normalmente perguntava “Com ou sem osso?” – os ossos eram acrescentados para tornar a sopa de carne mais saborosa.) Depois da guerra, um refugiado retorna da Alemanha a Srebrenica e quer comprar um terreno para construir uma casa; então, ele pergunta a um amigo acerca do preço da terra e o amigo responde: “Depende. Quer com ou sem osso?” É assim que se lida com um trauma que ainda não pode ser propriamente pranteado e simbolizado – você faz disso uma piada. Não há nada de desrespeitoso nisso; ao contrário, tais piadas implicam a consciência de que as memórias ainda estão muito recentes para aplicar a elas o processo de luto.

De forma semelhante, a história que Wolf Biermann me contou é digna de Ehrhardt do filme Ser ou Não Ser? No início dos anos 90, ele se encontrou com alguns grupos políticos verdes em algum lugar da Alemanha Oriental; havia entre eles alguns ecologistas neonazistas e, quando Biermann os censurou por sua simpatia por Hitler, recebeu uma resposta chocante: “Não, somos profundamente críticos em relação a Hitler. Sim, é verdade que ele fez algumas coisas boas como livrar-se dos judeus, mas também fez muitas coisas horríveis como destruir as florestas para construir estradas…” (Podemos notar aqui como essa crítica inverte a defesa comum de Hitler? É verdade, ele fez algumas coisas horríveis como matar os judeus, mas também fez algumas coisas boas como destruir as florestas para construir estradas e fazer com que os trens sejam pontuais!)

A abordagem de Lubitsch possui um profundo fundamento ontológico. Em uma das piadas mais eficazes da obra-prima absoluta de Lubitsch Ser ou Não Ser, o ator polonês Josef Tura se faz passar por Coronel Ehrhardt da Gestapo ao conversar com um colaborador polonês de alto escalão. De uma maneira (o que tomamos por) ridiculamente exagerada, ele comenta acerca dos rumores sobre si mesmo “Então, eles me chamam de Campo de Concentração Ehrhardt?” e acompanha suas palavras com uma risada vulgar. Um pouco mais tarde, Tura tem de escapar, mas chega o verdadeiro Ehrhardt; quando a conversa toca novamente no assunto de rumores sobre ele, Ehrhardt reage exatamente da mesma maneira que o seu impostor, ou seja, da mesma maneira ridiculamente exagerada… A mensagem é clara: até o próprio Ehrhardt não é imediatamente ele mesmo, ele também imita a sua própria cópia ou, mais precisamente, a ideia ridícula de si mesmo. Enquanto Tura interpreta a ele, Ehrhardt interpreta a si mesmo. Não poderíamos dizer exatamente o mesmo sobre Donald Trump que interpreta a si mesmo? (Casualmente, temos aqui um exemplo perfeito da distinção hegeliana entre humor subjetivo e humor objetivo: Tura interpretando Ehrhardt de uma maneira exagerada é humor subjetivo, com Tura caçoando de Ehrhardt, enquanto Ehrhardt interpretando o mesmo exagero é humor objetivo, o humor inscrito no próprio objeto).

Tudo isso não quer dizer que Lubitsch seja um irônico cínico pós-moderno cuja premissa é que, visto que tudo é mediado e indireto, de modo que cada um de nós interpreta a si mesmo, existe o amor verdadeiro, apenas não em alguma esfera Romântica acima da obliquidade cômica. Temos que apreender a localizá-lo em meio a todas essas confusões cômicas. Se existe um casal de amor verdadeiro e permanente em Lubitsch, modelo de casamento ideal, é o casal de Josef e Maria Tura (José e Maria, o CASAL supremo!) em Ser Ou Não Ser: Maria está flertando e enganando-o o tempo todo enquanto Josef é intoleravelmente egocêntrico e está convencido de sua grandeza, mas, como tais, eles são completamente inseparáveis, não podemos nem imaginar seu divórcio. Digamos, está completamente excluída a possibilidade de que sua esposa o largue e decida viver com o piloto com quem o trai.

Mas, por outro lado, esse fato também não nos aponta, hoje, o limite da abordagem de Lubitsch? Experimentamos cada vez mais como aquilo que ainda era uma piada para Lubitsch é agora simplesmente encenado na vida real (política e ideológica). Recorde o gracejo lendário de Ehrhardt: “Nós fazemos a concentração e os poloneses fazem o campo”. Um administrador de hoje defendendo a política de austeridade não poderia dizer algo semelhante? “Nós fazemos a política e as pessoas comuns fazem a austeridade.” Talvez o tipo de piada lubitschiana somente funcione enquanto ainda tivermos a hipocrisia liberal para zombar. Mas que tal nossa era em que o poder se exerce de maneira brutal, deixando cair a máscara liberal-humanitária-democrática? Estamos quase tentados a dizer: traga de volta essa máscara hipócrita!

Lubitsch, no entanto, teria estado ciente de que esse “deixar cair as máscaras” direto é sempre falso. Nos “revolucionários” anos 1960, estava na moda opor a perversão ao compromisso da histeria: o perverso viola diretamente as normais sociais, ele faz abertamente aquilo que o histérico apenas sonha em fazer ou articula ambiguamente em seus sintomas. Em outras palavras, o perverso move-se para além do Mestre e sua Lei, enquanto o histérico meramente provoca o seu Mestre de maneira ambígua, o que pode ser interpretado como a demanda por um Mestre real mais autêntico… Contra essa visão, Freud e Lacan enfatizavam de maneira consistente que a perversão, longe de ser subversiva, é o anverso oculto do poder: cada poder precisa da perversão como sua transgressão inerente que o sustenta. Recordemos os debates sobre a tortura. A postura das autoridades americanas não foi mais ou menos assim: “A tortura é proibida, e eis como se faz a tortura por afogamento simulado”? É assim que os exércitos funcionam. Lembro-me de um incidente semelhante do meu serviço militar. Uma manhã, a primeira aula foi sobre a lei militar internacional e, entre outras regras, o oficial mencionou que é proibido atirar em pára-quedistas enquanto ainda estão no ar, ou seja, antes de tocarem o chão. Em uma coincidência feliz, a nossa próxima aula foi a de tiro de fuzil, e o mesmo oficial nos ensinou a alvejar o pára-quedista no ar (como, ao mirá-lo, se deve levar em consideração a velocidade de sua descida e a direção e a força do vento, etc.) Quando um dos soldados perguntou ao oficial sobre a contradição entre essa lição e aquilo que aprendemos apenas uma hora atrás (a proibição de se atirar em pára-quedistas), o oficial respondeu rispidamente com uma risada cínica: “Como você pode ser tão estúpido? Não entende como a vida funciona?” Esse procedimento de se encenar direta e abertamente o que a lei proíbe é o que caracteriza a perversão. A sabedoria-padrão nos diz que os perversos praticam (fazem) o que os histéricos apenas sonham (em fazer), ou seja, “tudo é permitido” na perversão, o perverso realiza abertamente todo o conteúdo reprimido. E, não obstante, como enfatiza Freud, em lugar algum é a repressão tão forte quanto na perversão, fato esse mais do que confirmado por nossa realidade do capitalismo tardio em que a total permissividade sexual provoca ansiedade e impotência ou frigidez em vez da liberação.

Portanto, voltando a Lubitsch, e se sua famosa obliquidade for sustentada pela mesma compreensão sobre como a encenação perversa direta do conteúdo reprimido se iguala à repressão mais forte? É precisamente quando parecemos nos abrir às fantasias mais obscenas da nossa mente que o ponto verdadeiramente traumático permanece reprimido. Não obstante, a obliquidade de Lubitsch não é também condicionada pelo código de censura Heys? Adorno escreveu em algum lugar que um filme realmente bom seguiria todas as regras do código Heys embora não para obedecer à lei, mas por uma necessidade imanente. É isso que Lubitsch está fazendo.

Às vezes, a vida real alcança Lubitsch, encenando o seu enredo de uma forma que leva as coisas um pouco mais adiante. A situação básica do filme A Loja da Esquina aconteceu na vida real, em (de todos os lugares de) Sarajevo, em meados da década de 90, logo após o cerco da cidade. Um jovem casal estava em crise, o marido e a mulher ficaram entediados um com o outro e, para revitalizar a sua vida emocional, cada um se envolve em flertes na internet com parceiros anônimos, trocando sonhos com ele ou ela, etc. Posto que, em ambos os casos, cada qual parece ter encontrado o(a) parceiro(a) ideal, ambos decidem conhecê-lo(la) na vida real, e combinam como irão reconhecer um ao outro (um livro na mão, a cor do chapéu). Quando se encontram em uma cafeteria, ficam chocados ao descobrir que estavam paquerando um ao outro, marido e mulher… Então, qual é a lição dessa coincidência? Ela os levou a descobrir a harmonia interna de seus sonhos e, portanto, fez com que ficassem juntos com uma compreensão mais profunda? Acho que Lubitsch estaria mais inclinado a ver tal proximidade de sonhos íntimos como mau agouro e preveria que, horrorizados, eles iriam fugir um do outro.

Compartilhe:

Posts recentes

Mais lidos

Deixe um comentário