O cinema revolucionário de ‘Quem mora lá?’

Por Heribaldo Maia

Segunda feira, dia 16/07, era uma noite de segunda feira no cinema mais bonito do Brasil, o São Luís em Recife-PE. Esse dia será marcado na história do Cinema, e cabe a nós que fique marcado, como o lançado para o público do filme ‘Quem mora la?’ (2018), dos diretores Rafael Crespo e Conrado Ferrato. E esse filme se mostrou obrigatório para todos, ainda mais para a esquerda, mas por quê?


A sala estava lotada, mas dessa vez era diferente. Gente de todas as classes, crianças fascinadas com a beleza do São Luís corriam enquanto Miró da Muribeca recitava lindamente suas poesias. Gritos entoavam palavras de ordem emocionadas, enquanto outros assistiam esse lindo espetáculo que servia de introdução ao filme. Pela primeira vez o cinema cumpriu seu potencial: tocar politicamente a alma, mas dessa vez todos e não só de alguns poucos entendidos.

A classe trabalhadora estava presente na tela e nas cadeiras da sessão. Suas faces, desconhecidas para boa parte da esquerda, seus corpos marcados pela resistência e pela luta por um emprego, por um pão e, no eixo do filme, por um teto digno – num país com um deficit habitacional alarmante[1]. Sonhos, lutas, resistências diárias, deram ao filme uma linguagem profunda, tão profunda quanto ‘O Capital’ de Marx, mas didática, audível para qualquer um. Não precisava de educação estética, apesar do filme ser belo; não precisava de teoria social, apesar do filme ser uma crítica contundente; só precisou do povo trabalhador real, suas histórias e o talento e a sensibilidade dos envolvidos no filme, e voilà, eis um grande documentário em todos os sentidos.

O filme deu voz a quem precisa ser ouvido, isso é mais contundente que qualquer crítica social, que qualquer teoria, que qualquer análise de conjuntura. Com isso ‘Quem mora lá?’ vinculou politicamente a todos sem precisar argumentar, em análises de conjunturas, sem debates teóricos redundantes. Usou apenas a voz dos sujeitos reais que sofrem com essa realidade cruel, marcados pela dor e pela luta. Assim, o filme nos proporcionou um circuito de afetos que nos despossuía e nos levava a estar com um outro de forma completa. Assim, o filme tem o mérito de cumprir o Walter Benjamin falou:

“O filme serve para exercitar o homem nas novas percepções e reações exigidas por um aparelho técnico cujo papel cresce cada vez mais em sua vida cotidiana. Fazer do gigantesco aparelho técnico do nosso tempo o objeto das inervações humanas – é essa a tarefa histórica cuja realização dá ao cinema o seu verdadeiro sentido” (1987: 174).

A dureza das histórias se contrastava com a beleza de ver o cinema ser uma ferramenta revolucionária maior que qualquer exegese sobre os textos de Lenin. Enquanto os espectadores se emocionavam com as histórias que exibiam o descaso e as misérias do capitalismo brasileiro, as mulheres, homens, crianças, LGBT’s, negros, etc, personagens do filme, se admiravam na tela, que por um dia, eram artistas, e, a meu ver, muito mais importantes que qualquer ganhador do Oscar, pois eles são reais. Essa mistura de sentimentos foi tão potente que era comum pessoas deixarem as lágrimas rolarem ao som das crianças dizendo “olha eu lá!”. Uma obra de arte que proporcionou uma explosão de sensações, uma catarse estética e social profunda, digna das melhores tragédias gregas.

‘Quem mora lá?’ é uma aula em cada cena, uma teoria sintetizada nos rostos de cada personagem, um chamado político em cada palavra dita. O proletário, tão falado por muitos, não é no filme um conceito de análise sociológico, é real, ativo, rebelde, resistente, humano. Em recente debate, o líder do MTST e candidato a Presidente da República pelo PSOL Guilherme Boulos disse que a esquerda

“frequentemente deixou de ser acolhedora, seus espaços foram se tornaram expulsivos, uma coisa para iniciados, falando para si mesmos, pregando para convertidos, deixando de fazer trabalho de base, deixando de dialogar com a periferia e com o povo (…) perdeu uma dimensão fundamental, que é a dimensão dos valores, da solidariedade. Trazer isso de volta para o centro da política é fundamental para derrotar a intolerância e o conservadorismo.”[2]

O filme, que retrata a ocupação de um prédio no centro da cidade do Recife – hoje a Ocupação Marielle Franco –, mostrou que há quem busque fazer política de forma diferente. Sem arrogância, aprendendo mais que ensinando, ouvindo mais que falando. Mas evidenciou que a esquerda, de modo geral, anda muito longe do povo trabalhador. Conhecem mais o conceito que as pessoas; conhecem mais Lukacs, Gramsci ou Althusser do que quem mora lá: nas invasões, nos barracos sobre um canal de esgoto, na beira de um túnel prestes a desabar com a vista para um prédio abandonado. Não ouvem suas histórias, suas dores, suas perspectivas (ou falta), seus desejos, seus traumas, de onde tiram suas forças; mas arrogam falar por eles (e ainda criticam a democracia representativa).

Mas um bom filme, precisa de um trilha sonora a altura. Nesse ponto, ‘Quem mora la?” foi muito feliz. A música principal da trilha, com o mesmo título do filme, do rapper pernambucano Diomedes Chinaski e participação de Miró da Muribeca, acompanha o filme, se misturando as imagens, as histórias, contando por versos e melodia os quadros que passavam na tela.

Se o filme é um ensinamento, que se unifica a fala de Guilherme Boulos, por apresentar quem é o povo trabalhador para além do conceito sociológico. A música de Diomedes é direta. Já na primeira frase já indaga: “O que você sabe sobre mim, hã?”. E termina:

“Meu cachê me inspira a comprar um revólver.

Quando o sangue escorrer da face perceba que o texto do Face não resolve

Foda-se porra, um milhão de vezes, vai se foder

Meu rap de mensagem é um foda-se pra você”

É inevitável não se emocionar com o filme. Sugiro que esse documentário, ‘Quem mora lá?’, é obrigatório para todos, mas mais ainda para quem se diz de esquerda, pois ele convoca a refletir as práticas e conhecer o trabalhador real, e não uma projeção romantizada. Mas não assista com seu livro embaixo do braço e suas teorias apontadas para analisar “isso” ou “aquilo” da forma como lutam ou deveriam lutar. Se despossua, abra sua alma e coração, se deixe afetar pelas histórias, pelos rostos marcados pela luta real (não por eleição de diretório acadêmico).

Mas o mais importante de tudo, ‘Quem mora lá?’ mostra, com tamanha sensibilidade que, quem mora lá são pessoas lindas, humanas e cheias de sentimentos bonitos pelo outro. E essa lição que fica: mesmo inseridos em uma realidade que tinha tudo para endurecer o coração dos homens e mulheres personagens do filme, eles responderam a realidade de forma contrária, com amor, solidariedade e espírito de comunidade.

O filme nos mostra que vale a pena acreditar num mundo melhor, pois os ocupantes já estenderam suas mãos para que a gente pegue e siga com eles, e não por eles, a lutar. Como eles gritaram antes da sessão: “A luta é pra valer”. E obrigado pelo aprendizado.


 

Heribaldo Maia é graduando em História UFPE


Referências:

BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: _______. Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 1987. (Obras Escolhidas v.1)

[1]https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2018/05/gasto-excessivo-com-aluguel-pressiona-deficit-habitacional-no-brasil.shtml

[2]https://www.youtube.com/watch?v=da9bcXpoCh0

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