Direito à preguiça (e ao ócio) – Paul Lafargue

Por José Manuel de Sacadura Rocha

Em 1880, Paul Lafargue, publicou no Semanário L’Egalité, o seu DIREITO À PREGUIÇA. Na prisão, em 1883, Lafargue escreveu suas notas ao texto original, com o mesmo brilhantismo e antecipação dos males do trabalho que, ao contrário do que se supõe, proporciona aos produtores diretos e a toda a sociedade.


Lafargue explica por que o trabalho (industrial, assalariado) escraviza e empobrece continuamente os trabalhadores e reduz os homens de forma geral à condição de servos e lhes enfraquece o espírito. Tanto no final do século XIX, como hoje, no século XXI, portanto 140 anos depois do texto de Lafargue, a idiotice da defesa do trabalho como categoria genérica só fez embrutecer mais e mais a humanidade, para não falar dos flagelos e da tirania provocados aos trabalhadores. De fato sem precisar que tipo de trabalho se trata e em que condições jurídicas a sociedade capitalista se organizou para subtrair de forma privada dos assalariados a sua potencialidade de gerar riqueza, a defesa inconteste do trabalho é uma perversidade que encontra na modernidade o respaldo na tirania jurídica-político da produção, imposta pelos proprietários das forças de produção, dos meios de troca e circulação de capitais.

Mas tanto quanto essa idolatria sem sentido, essa irracionalidade que massacra a todos, se fez ícone e foi passada pela ideologia penitente e egoísta dos pastores e dos burgueses, afirmar que o trabalho é a pobreza da humanidade e remete os fazedores sempre para se aviltarem a si nos modos em que produzem para o capital, é uma verdadeira heresia tão detestável a todos quanto o matricídio de Orestes ou o parricídio do Rei Édipo, ainda que os assalariados do capital, descaradamente extorquidos de suas forças físicas e espirituais.

Eis as principais teses de Paul Lafargue (1999) e que são mais pertinentes ao nosso DIREITO AO ÓCIO[1]:

  1. Logo que chega ao poder a burguesia leva até os trabalhadores o discurso moral-religioso do “sofrimento”, ainda que no período da Revolução Francesa tivesse condenado essa mesma moral para obter o apoio do povo contra a oligarquia e a igreja;
  2. O discurso que enaltece o trabalho condena o trabalhador à condição de máquina “suprimindo suas alegrias e paixões” – o gozo da vida é tão propriedade da classe burguesa como as fábricas;
  3. Os gregos da época clássica tinham desprezo pelo trabalho deixando-o para os escravos – “o homem livre só conhecia os exercícios físicos e os jogos da inteligência”; a filosofia de então ensinava a reflexão enquanto o trabalho era o vilão que retirava o tempo e o espaço para o livre pensar, portanto levava o homem a perder sua liberdade;
  4. Assim a aceleração da produção imposta pelo “tear” interessa ao patrão na medida em que retira o espaço e o tempo de reflexão do trabalhador; ao mesmo tempo a jornada de trabalho aumenta (mais valor [mais valia] absoluto) como forma de correção do espírito, a fábrica se transforma em casa de correção – o trabalho tiraria os vícios, chamado a “curvar os sentimentos de orgulho e de independência que a preguiça gera”;
  5. A classe trabalhadora não consegue se livrar dos “preconceitos semeados pela classe reinante”, tanto que após 1848 (Comuna de Paris) aceitou “como conquista revolucionária a lei que limitava a jornada de trabalho a 12hs diárias”, inclusive para mulheres e crianças; portanto, os próprios trabalhadores aceitam “como um princípio revolucionário, o direito ao trabalho” – de certa forma, todos os pesadelos e flagelos praticados contra os trabalhadores assalariados do capital, ainda hoje, são derivações e prolongamentos econômicos, políticos, legais e culturais, materiais e imateriais, objetivados de uma ideia reinante instalada sub-repticiamente na mente dos indivíduos, qual seja, a ideia fixa inquestionável das propriedades saudáveis e morais do trabalho;
  6. Para enriquecerem na ociosidade os proprietários dão trabalho aos pobres; a classe burguesa não quer trabalhar (a ela a moral da ordem e progresso, e do “sofrimento” dos trabalhadores não se aplica), apenas pretende explorar a força de trabalho dos trabalhadores que geram riqueza, “espremer o trabalho que continham” – isto leva a uma superprodução, e às suas crises, pois por mais que os proprietários e seus agregados consumam sem nada produzirem, ainda assim haverá muito mais mercadorias para serem consumidas, dado que a “penúria dos compradores” é tão grande que não conseguem adquirir o que eles próprios produzem, nem o mínimo para manterem a sua saúde física e mental;
  7. Quando os trabalhadores se revoltam contra seus patrões e os gerentes a seu serviço, não deveriam dizer “façam vocês agora o que nós fazemos, venham aqui perto das máquinas, queremos ver se fazem, trabalhem vocês”, mas deveriam dizer “não trabalhamos mais do que 3 a 4hs por dia, e não venham vocês fazerem porque não se precisa, os estoques estão cheios e não tem quem os compre, e se nos pagarem melhor nós mesmos compraremos os vossos estoques, o que nós mesmos produzimos”;
  8. Na superprodução os trabalhadores são eles mesmos os primeiros a sofrerem mais reverses da irracionalidade do trabalho: com altos estoques os fabricantes precisam diminuir a produção e dispensam os trabalhadores; a miséria e a fome aumentam, e alguns meses depois esses mesmos trabalhadores voltam às fábricas pedindo trabalho, e aceitam receber menos pelas 12 ou 14hs de trabalho (aumento de mais valor) – diminuem os salários e outros trabalhadores perdem o emprego, até o limite necessário para as máquinas não pararem e até os valores mais aviltantes por hora trabalhada, valores reduzidos ao “mínimo do mínimo” para que a mão de obra não morra e fechem todas as fábricas: a engrenagem do trabalho gira mal, mas gira – como n’A Colônia Penal;
  9. Na superprodução as crises não se resolvem: tendo por trás o crédito dos financistas, as dificuldades para vender são enormes, o desemprego e a redução dos salários não promove a venda das mercadorias produzidas aos milhões; os intermediários e especuladores que têm capital para comprar pagam barato e voltam a vender, inundando o mercado, por um preço maior que pagaram, mas menor do que o estoque da fábrica – a fábrica não pode parar de produzir mercadorias porque daí sai o lucro não só do proprietário, mas de todo o comércio e dos rentistas, porque é o trabalho do trabalhador que produz a riqueza; mas então não tem mais mercado e não resta aos fabricantes outra alternativa que destruir as mercadorias estocadas: “lança-se então tanta mercadoria pelas janelas que não se sabe como elas entraram pela porta”;
  10. As lutas coloniais, os territórios “apossados”, as escaramuças diplomáticas e as guerras entre os países europeus devem-se à necessidade de possuírem mercados cativos, preferenciais ou de livre trânsito para escoarem-se as mercadorias produzidas pelos trabalhadores extorquidos e miseráveis das fábricas do velho mundo; de certa forma a idolatria sem sentido dos próprios trabalhadores ao trabalho em que são explorados é a causa dos males infligidos aos povos ultramarinos onde as potências industriais desovam seus estoques – os operários poderiam fazer algo importante a respeito disto se exigissem trabalhar apenas 3hs por dia: “tem de se dominar a paixão extravagante dos operários pelo trabalho e obrigá-los a consumir as mercadorias que produzem”; isto não parece ser menos ético e ferir mais a moral do que as motivações coloniais e as guerras, ou produzir compulsória e planejadamente produtos de qualidade sofrível só para que deteriorem rapidamente obrigando os consumidores a voltarem ao mercado e comprarem outros, infinitamente;
  11. Pois bem, a máquina deveria libertar o trabalhador do trabalho forçado nas fábricas, da “luxúria” sem propósito do trabalho a não ser para os que enriquecem sem preconceitos ao sofrimento humano e sua deterioração física e mental, mas o operariado, os assalariados do capital de forma geral quiseram disputar a produção com ela, e com isso a superprodução leva a classe dominante para o ócio e os prazeres mais banais, enquanto leva em proporções maiores os trabalhadores e a humanidade para a pobreza, a doença e o desalento; o desemprego galopante desde então é uma forma “precária” de controlar as crises insolúveis de superprodução, simplesmente porque esbarra sempre na falta de consumo capaz de “realizar” os estoques mercantis – o vital era racionalizar essa produção aos bens necessários à dignidade de todos, oferecer formas de distribuir tal riqueza material sem exigir e compelir ideológica e moralmente a humanidade a trabalhar insanamente apenas como propósito de acumulação privada;
  12. O desemprego e as consequências de extrema miserabilidade e total degradação humana que ele provoca para milhões de pessoas, e as novas colonizações geoeconômicas mortíferas e genocidas, não parece a nossos olhos mais imoral do que reduzir as jornadas de trabalho ao mínimo que nossa tecnologia e ciência permitem hoje, a criar um sistema global de cooperação que liberte a humanidade do jugo do trabalho econômico desnecessário e despropositado apenas para enriquecer vergonhosamente 1% do Planeta.

É impressionante a atualidade do texto de Paul Lafargue, século e meio antes de nossa época em que são visíveis por todos os lados os sintomas denunciados por ele quanto a esse verdadeiro martírio destruidor das potências humanas, principalmente se considerar-se que o autor apenas possuía a primeira edição do Livro I d’O Capital (Lafargue cita o t. III), publicado ainda em vida por Karl Marx (Marx faleceu em 14 de março de 1883). É que grande parte das teses defendidas por Lafargue em seu Direito à Preguiça e exploradas por nós, estão mais desenvolvidas por Marx no Livro II (1885) e Livro III (1894) d’O Capital, publicadas postumamente por seu amigo e companheiro Friedrich Engels. O próprio Livro I d’O Capital foi posteriormente corrigido por Engels e Eleanor Marx, esta filha mais nova de Marx, sendo considerada a sua versão definitiva a edição alemã de 1893. Pode-se argumentar que o autor teve acesso aos textos de Marx e de Engels anteriores ao O Capital, citadamente os Manuscritos Econômico-filosóficos que Marx escreveu em 1844, mas que só foram publicados em 1932, quase um século mais tarde, e vinte e um anos após a morte de Lafargue!?

A questão limítrofe das teses exemplares defendidas pelo autor em Direito à Preguiça se dão por conta do estádio de desenvolvimento das forças produtivas aplicadas à produção material econômica das sociedades industriais mercantis, produtoras de mercadorias, capitalistas e de livre mercado. Isso em nada retira o brilhantismo e a perspicácia das ideias apresentadas na obra, pelo contrário, ilustra magistralmente como as sociedades capitalistas de livre mercado já no final do século XIX estavam completamente imersas no processo inescusável de uma revolução da produção, e dos valores, compelida pelo desenvolvimento do regime de acumulação privada nos moldes burgueses do capital e da luta de classes. Efetivamente Lafargue, não só pelos exemplos retrativos de sua época na Europa, pelos desdobramentos coloniais inerentes à produção de mercadorias, e às relações entre as classes e frações da classe proprietária, só fez comprovar irrefutavelmente o que o Mundo contemporâneo assiste quanto à luta concorrencial global pelo estabelecimento dos monopólios capitalistas, com as piores consequências e perspectivas para os milhões de desempregados e precarizados hoje.

A diferença é que em nosso tempo todo o processo se verifica através da aplicação pragmática do mais alto desenvolvimento de tecnologias e ciências aplicadas à produção, consumo e financeirização dos mercados. Isto é o ponto nodal do qual o regime de acumulação concorrencial de capital não pode prescindir e se afastar, levando à precarização do trabalho e dos trabalhadores, não tanto pela exploração do mais valor absoluto em larga escala (mais extensiva ao tempo de Lafargue), mas pela maciça substituição de mão de obra por sistemas mecanizados e robotizados (mais valor relativo), alicerçados em tecnologias de comunicação e informação remotas desenvolvidas por poderosos algoritmos e com base em bancos de dados minuciosos e globais.

A precarização que Lafargue revela e denuncia já era pura desumanidade, miséria e morte para os trabalhadores de então, subsumida a inevitabilidade do trabalho, até pelos mesmos, enquanto hoje o que é real e facilmente observável é o fim do trabalho, o incremento do tempo de trabalho disponível, na verdade a inexigibilidade da mão de obra assalariada do capital. É nos limites do desenvolvimento das forças produtivas e da obsolescência do trabalho assalariado do capital que está dada a possibilidade real e objetiva das massas de trabalhadores exigirem riqueza para si, a se dedicarem finalmente ao desenvolvimento de sua potencialidade criativa, artística, como Lafargue (em Marx!) o exigia. E se há um século e meio atrás era tão difícil para os trabalhadores se libertarem do “discurso do trabalho moralizante da burguesia e da igreja”, devido às condições reduzidas da sociedade produzir riqueza material necessária para emancipar o homem de seu “castigo icônico bíblico”, hoje é essa realidade bastante possível e real que movimenta cada vez mais setores, comunidades e movimentos sociais para o seu direito libertador ao ócio criativo.

A registrar que durante a pesquisa e confecção do Direito ao Ócio não recorremos ao texto de Paul Lafargue, embora fosse conhecida sua existência prodigiosa, pois se queria manter a distância necessária a evitar certa contaminação, e comprovar por outros caminhos, e pelos autores contemporâneos pós-estruturalistas, que as teses inerentes ao ”desafio ao trabalho” são consistentes a provar não só o brilhantismo de Lafargue, mas a atualidade deste “desafio”. Só o voltamos a ler para este Prólogo. Lafargue obviamente não precisa de defensores. A pesquisa e o pensamento progressista, esse sim, sempre carece de arejamento, e nada de mais que tal ventilação ainda venha de um texto grandioso como o de Paul Lafargue. Isto demonstra ao menos que o método da Economia Política é imbatível tanto quanto mais o regime do capital se desenvolve no caminho de sua superação.


BIBLIOGRAFIA

LAFARGUE, Paul. O direito à preguiça. São Paulo: Editora Hucitec, 1999.

[1] O texto aqui publicado refere-se ao Prólogo de nosso livro Direito ao Ócio – Desafio ao Trabalho e Nova Cultura, a ser publicado.

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