Sobre os dogmas neoliberais em tempos de pandemia

Por Gustavo Livio

No mais recente episódio da luta de classes, expressiva fileira da burguesia brasileira se somou aos ideólogos do neoliberalismo para combater as políticas de isolamento social praticadas até o momento.


O empresário Junior Durski, dono do Madero, disse que “o Brasil não pode parar dessa maneira, o Brasil não aguenta. Tem que ter trabalho, as pessoas têm que produzir, têm que trabalhar” (1). O mesmo posicionamento foi adotado pelo dono da Havan, por sócios do Giraffas, por Roberto Justus, pelo dono do Coco Bambu, pelo fundador do Easy Taxi e tantos outros. Luciano Hang, por exemplo, copiou o discurso de seus pares e disse que “o dano na economia vai ser muito maior do que na pandemia” (2).

No início de Maio, o Presidente da República se reuniu com um grupo de empresários para pressionar o STF a liberar a volta das atividades do comércio não essencial. O mandatário disse ao Min. Dias Toffoli: “Os empresários me trouxeram essa preocupação e querem que o STF os ouça. Economia também é vida, não adianta ficarmos em casa e a roda da economia ter parado. Todos seremos esmagados” (3). No dia 14 de Maio, o Presidente e seus ministros se reuniram com representantes do alto escalão da burguesia industrial brasileira, ocasião em que Paulo Guedes “solicitou” aos empresários que “conversassem com os outros poderes” para afrouxar o isolamento social. Disse o ministro: “Nós precisamos do apoio dos senhores, que sempre financiaram campanhas eleitorais, que têm acesso a todos os parlamentares, que têm intimidade com presidente da Câmara e presidente do Senado, os senhores têm acesso. Trabalhem esse acesso para nos apoiar” (4).

Os ideólogos do neoliberalismo rapidamente se engajaram para desenhar esquemas pseudoteóricos que justificassem seus ataques às medidas de isolamento. É fácil notar certo padrão argumentativo em suas palavras. Basicamente, se valem de três estratégias: a) Elaborar um discurso focado exclusivamente nos efeitos econômicos da crise; b) minimizar os impactos da pandemia no sistema de saúde (inclusive contra os estudos científicos até então elaborados); c) e rotular a política de isolamento social como “constritora da liberdade” e “autoritária” (fato perceptível nos cartazes das últimas manifestações).

Em artigo publicado pelo Instituto Mises Brasil, Finn Andreen teceu críticas aos políticos que, segundo ele, “confiam demais em cientistas”. Segue o parágrafo na íntegra: “os políticos às vezes confiam demais em cientistas, que geralmente não têm — e não são obrigados a ter — treinamento em questões sociais. De maneira ainda mais intensa que políticos, os cientistas costumam ter grande dificuldade em compreender o conceito de ordem espontânea do mercado, o que não é surpreendente, uma vez que são seguidores do rigoroso processo científico. As propostas econômicas francamente embaraçosas de Albert Einstein são um exemplo famoso” (grifo nosso) (5). Pois bem, vejam só, agora o problema é que os políticos estão tomando decisões baseadas na ciência e em seu “rigoroso processo científico”!

Não se defende, por óbvio, uma leitura acrítica das elaborações científicas, que já enquadraram a homossexualidade como patologia e rotularam os negros como “inclinados à criminalidade”. Mas negar à ciência atual um papel de destaque para a formulação das políticas públicas de combate à pandemia significa cegar-se propositalmente para suas formulações. Significa trocá-la pelo achismo ideológico.

Com isso, o fanatismo mercadológico assume explicitamente sua posição anti-ciência em nome da retomada das atividades. Tudo que importa é que o deus-mercado volte a funcionar seguindo sua “ordem espontânea”, custe quantas vidas custar.

Depois de amesquinhar o papel da ciência, o mesmo autor parte para a tática de menosprezar o poder de impacto da COVID-19 comparando sua taxa de letalidade com a da gripe: “Um número crescente de pesquisadores e profissionais de saúde já afirma abertamente que o número total de casos é muito maior do que se pensava anteriormente, o que significa que o COVID-19 é muito menos mortal do que insistem a mídia e especialistas do governo. Se tais pessoas estiveram corretas, essas taxas de letalidade revisadas colocam as mortes por COVID-19 em muitos locais em uma taxa semelhante à da gripe, que mata centenas de milhares de pessoas todos os anos ao redor do mundo, sem provocar nenhuma grande reação política” (grifo nosso).

Vamos supor que a premissa do autor esteja correta. Mesmo que ambas as taxas de letalidade sejam semelhantes, o escrito omite voluntariamente outras duas conclusões científicas de fundamental importância: Primeiro, o novo coronavírus se transmite muito mais rapidamente do que o vírus da gripe. Segundo, o Sars-Cov-2 produz uma taxa de hospitalização no mínimo 65% maior do que a provocada pela influenza (6). Com isso, um número enorme de pessoas se dirige aos hospitais ao mesmo tempo e permanece nele por semanas, fazendo com que o sistema de saúde (mesmo os mais preparados!) colapse e não haja leitos suficientes para atender a todos. Mas claro, esses dois dados científicos não interessam à empreitada neoliberal de subestimar o vírus para que a roda da economia volte a girar. Isso porque para reduzir a taxa de contágio é necessário… sim, o isolamento social, o alvo dos ataques da vez.

Ao assim argumentar, os neoliberais fazem uso seletivo das conclusões científicas na exata medida em que estas lhes agradem ou não. Se a ciência ampara suas convicções morais previamente formadas, bem vinda. Se não… errada está a ciência. Uma névoa geral de pós-verdade envolve a ideologia neoliberal.

No mais, o artigo diz que estamos “presos pela vontade arbitrária do estado” e menciona certa tendência para que os políticos “façam alguma coisa” (?). Nas suas palavras, “A lógica da política, ademais, determina que os políticos não podem ser vistos como “não fazendo nada”. Políticos sempre têm de aparentar “estar fazendo alguma coisa””. A frase revela um desejo enrustido para que os políticos não façam nada para combater a pandemia, deixando que ela se alastre “espontaneamente”. Essa é a consequência, afinal, de se deixar seguir a “ordem espontânea do mercado” sem qualquer intervenção significativa do Estado.

Outro articulista do Mises (Ryan McMaken) elaborou texto enfatizando os efeitos nefastos do desemprego (7). Sobre o ponto não há qualquer divergência, mas é curioso perceber o momento que o argumento vem à tona. Na oportunidade, o autor não poderia deixar de chamar para si a bandeira da “defesa da liberdade” (claro, eles são os únicos que a defendem…). Vejam a simplicidade rasteira de seu raciocínio: “os oponentes das quarentenas, por outro lado, desejam apenas permitir que as pessoas exerçam sua liberdade”.

O cérebro neoliberal obedece a uma lógica cartesiana e dicotômica quando o assunto é a liberdade. Aqueles que criticam o isolamento social “desejam apenas permitir que as pessoas exerçam sua liberdade”. Automaticamente, aqueles que o apóiam são autoritários, repressores da liberdade e ditadores. Como se a liberdade individual funcionasse de forma irrestrita, absoluta, sem qualquer outro limitador.

Não é de hoje que a bandeira da liberdade é empunhada falsamente para cometer as maiores atrocidades. A invasão estadunidense ao Vietnã se lastreava largamente num discurso de “luta pela liberdade” contra os malvados comunistas. O AI-5 cita a inauguração de uma ordem “baseada na liberdade” logo em seu primeiro “considerando”. O golpe militar chileno que colocou Pinochet no poder (berço da experiência dos Chicago Boys, é sempre bom lembrar) também invocou a liberdade, e até hoje a filha do ditador acredita que seu pai a estava defendendo (8).

Ao vestir a fantasia moralista de “defensor da liberdade”, a ideologia neoliberal parece ser incapaz de enxergar as múltiplas dimensões da liberdade individual, que operam numa lógica dialética de conflito constante com outros tipos de liberdade e outros direitos, cabendo ao Estado, sim, a restrição de uns em favor de outros (no caso, a restrição do mercado em favor do direito público de todos à saúde). O sofisma neoliberal pode muito bem ser representado por uma passagem de “Ensaio sobre a cegueira”, de José Saramago: O médico, recém cego, encosta no espelho. Mas ele não via a imagem. Apenas a imagem o via.

Aos anais da história, que fique registrado que as fileiras da alta burguesia e os ideólogos neoliberais e libertários combateram desde o início da pandemia as medidas de isolamento social adotadas pelo Estado. A contrario sensu, sustentaram que é preciso retomar as atividades e deixar que a pandemia siga seu rumo, ceifando quantas vidas tiver que ceifar.

A ideologia neoliberal leva às últimas consequências a defesa absoluta da liberdade de mercado e da intervenção mínima do Estado nas atividades econômicas. Mesmo durante a pandemia mais devastadora do último século, os defensores do “livre-mercado” se apegam aos seus dogmas. E é precisamente disso que se trata: de uma doutrina tida por indiscutível quaisquer que sejam as circunstâncias.

O dogmático, diante da evidência, a critica ao invés de reelaborar suas convicções. E em tempos de fake news, não é difícil arranjar um site, uma corrente de Whatsapp ou um estudo longínquo para transformar em “real” o estado de coisas que o neoliberal “gostaria que existisse”. Confunde, assim, desejo com análise.

Todo esquema de pensamento precisa se articular com certas evidências justificadoras. Terraplanistas, por exemplo, encontram suas “evidências” na planicidade das águas. Mas quando o ar das evidências é tão rarefeito, não é incomum que o neoliberalismo apele para uma visão moral distorcida. E a palavra sagrada costuma ser a “liberdade de mercado”, que não deve ser perturbada haja o que houver. E os que pensam diferente são logo rotulados de “autoritários”. Se a ciência diz que o isolamento social é crucial para combater a pandemia e salvar inúmeras vidas, bem, então errada está a ciência e os políticos que “a ouvem demais”.

Vejam bem: os defensores do isolamento social (felizmente, a maioria da população) não ignoram, por óbvio, os impactos da pandemia em diversas áreas, como a assistência social e a economia. Há, aqui, um nítido caráter transversal. Mas é justamente por isso que o Estado tem que ser chamado a intervir: para assegurar a viabilidade econômica da quarentena e transformá-la em direito de todos. Mundo afora, inúmeros países aprovaram auxílios econômicos para as camadas mais vulneráveis da população e adotaram medidas para manutenção de empregos. Essa é, sim, uma versão atual das lutas de classes! Já defendi, aqui no Justificando, que a conta da crise deve ser transferida às grandes fortunas (9). Aproveito para parabenizar a iniciativa do Chile, que recentemente aprovou a taxação de grandes fortunas para custear uma renda familiar emergencial temporária (10).

A verdade é que, neste momento, defender a liberdade de mercado significa defender a liberdade de propagação da pandemia e a “livre e espontânea” curva de mortes, morram quantos tiverem que morrer. Significa atacar qualquer empenho mais enérgico do Estado para frear a circulação do vírus. Significa também defender que “a roda da economia não pode parar”, mesmo que o resultado desta (ausência de) política seja o colapso notório do sistema de saúde, com pessoas morrendo por ausência de leitos hospitalares, respiradores e medicamentos.

Termino relembrando a história, companheira inseparável de uma boa análise. O liberalismo econômico clássico jamais hesitou em defender a ajuda estatal para criar as condições ideais para o funcionamento do livre-mercado. Tarifas protecionistas, subsídios e conquistas militares de novos mercados são apenas alguns exemplos de que, quando convém, o Estado se transforma em poderoso aliado.

Karl Polanyi, em seu clássico “A grande transformação”, assim aduz: “os liberais econômicos apelarão, sem hesitar, para a intervenção do estado a fim de estabelecê-lo (o mercado auto-regulável) e, uma vez estabelecido, a fim de mantê-lo. O liberal econômico pode, portanto, sem qualquer contradição, pedir que o estado use a força da lei; pode até mesmo apelar para as forças violentas da guerra civil a fim de organizar as pré-condições de um mercado auto-regulável. Na América do Norte, o sul apelou para os argumentos do laissez-faire para justificar a escravidão; o Norte apelou para a intervenção das armas para estabelecer um mercado de trabalho livre. A acusação de intervencionismo por parte de autores liberais é, portanto, um slogan vazio, implicando a denúncia de um único e idêntico conjunto de ações conforme eles possam aprová-las ou não” (10).

O resultado da política do laissez-faire ao longo do século XIX foi uma arrasadora “liberdade de contrato” que destruiu rapidamente o tecido social até então existente. O Volume I d’O Capital de Marx continua incomparável para demonstrar as misérias da classe trabalhadora daquele período (na Inglaterra, em especial). Baseado em vastos relatórios dos fiscais fabris, Marx denuncia as jornadas estafantes, as habitações degradantes, a alimentação precária e a fome que com frequência batia às portas da classe trabalhadora. Lembra ainda que, como mais nefasto exemplo, a irrestrita liberdade de contratação permitia a corriqueira exploração da mão de obra de crianças e adolescentes na grande indústria. Em suas palavras, “à medida que torna prescindível a força muscular, a maquinaria converte-se no meio de utilizar trabalhadores com pouca força muscular ou desenvolvimento corporal imaturo. Por isso, o trabalho feminino e infantil foi a primeira palavra de ordem da aplicação capitalista da maquinaria” (11).

A política do laissez-faire fomentou o prolongamento das jornadas de trabalho sem qualquer constrangimento pela utilização de crianças como força de trabalho. Além disso, propiciou a criação de um populoso exército industrial de reserva, a repressão criminal aos que se recusavam ao trabalho (os “vagabundos”…), a concentração de riqueza numa classe e a miséria da ampla maioria da população, além de invasões colonialistas de todo tipo. A mudança proporcionada pelo rápido e ilimitado avanço do capitalismo industrial liberal foi tão drástica e rápida que colocou de pernas pro ar o tecido social então existente.

Surgiu então uma reação direcionada a utilizar o Estado como instrumento de proteção contra os terrores causados pelo liberalismo num terreno de liberdade e igualdade meramente formais. Assim, vastos setores da população clamaram pela proteção estatal para frear o apetite capitalista liberal. Depois de derrotado, contudo, o liberalismo coloca a culpa justamente nas intervenções estatais originalmente direcionadas a conferir proteção aos efeitos causados por ele próprio. Dizem: “se não fossem as intervenções, nosso sonho teria se tornado realidade”. De novo: diante das evidências, a teoria se converte em credo.

Polanyi, de novo, é preciso: “Nascido como mera propensão em favor de métodos não burocráticos, ele (o liberalismo) evolui para uma fé verdadeira na salvação secular do homem através de um mercado auto-regulável. (…) Seus defensores repetem, com infindáveis variações, que se não fossem as políticas apoiadas pelos seus críticos, o liberalismo teria atingido sua meta. (…). O testemunho dos fatos contradiz decisivamente a tese liberal. A conspiração antiliberal é pura invenção. A grande variedade de formas nas quais surgiu o contramovimento “coletivista” (…) deveu-se exclusivamente ao alcance mais amplo dos interesses sociais vitais afetados pela expansão do mecanismo de mercado. (…) Se a economia de mercado foi uma ameaça para os componentes humano e natural do tecido social, como insistimos, o que mais se poderia esperar senão que uma ampla gama de pessoas exercesse a maior pressão no sentido de obter alguma espécie de proteção?” (12).

É verdade que o neoliberalismo, nas suas mais diversas correntes, é um fenômeno complexo e historicamente delimitado que não se confunde, portanto, com o liberalismo clássico. Mas com ele guarda inúmeras semelhanças, inclusive no que toca ao modos operandi argumentativo em situações de crise. Agora, os arautos do neoliberalismo combatem ferozmente as políticas de isolamento social em nome do funcionamento “natural-espontâneo” do mercado e pretendem algemar o Estado justamente no momento em que se faz necessária sua maior presença para amenizar as consequências da crise. De outro lado, as classes vulneráveis clamam por proteção estatal e merecem tê-la.

Defender o amesquinhamento do papel do Estado em um dos capítulos mais delicados da história contemporânea significa defender a livre propagação do vírus e, com isso, a livre propagação das mortes. Neste momento, a liberdade do mercado se confunde necessariamente com a liberdade da pandemia. E eles sabem disso. Mas em nome de seus dogmas, preferem salvar o primeiro. Colocam o lucro e o ganho econômico acima da vida. Eis a frase que deve constar na lápide do neoliberalismo, que, contudo, não cairá de maduro. Ainda há muita luta pela frente.


Referências:

1 – https://www.em.com.br/app/noticia/nacional/2020/03/23/interna_nacional,1131797/dono-do-madero-diz-que-consequencias-economicas-serao-maiores.shtml

2 – https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2020/03/24/empresarios-coronavirus-o-que-dizem-criticas.htm

3 – https://br.noticias.yahoo.com/de-ultima-hora-bolsonaro-e-empresarios-se-reunem-com-dias-toffoli-no-stf-151253098.html

4 – https://exame.abril.com.br/brasil/em-reuniao-guedes-tambem-pediu-que-empresarios-ajam-contra-lockdown/

5 – https://www.mises.org.br/article/3247/politicos-destruiram-o-mercado-e-ignoraram-direitos-humanos-com-um-alarmante-entusiasmo

6 –  https://saude.abril.com.br/medicina/o-coronavirus-exige-no-minimo-65-vezes-mais-hospitalizacoes-que-a-gripe/

7 – https://www.mises.org.br/article/3246/fatos-e-dados-medicos-comprovam-desemprego-mata–e-quanto-mais-tempo-durar-a-quarentena-pior-sera

8 – https://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u102753.shtml

9 – https://www.justificando.com/2020/03/31/quem-deve-pagar-a-conta-da-crise/

10 – https://dialogosdosul.operamundi.uol.com.br/america-latina/64909/deputados-do-chile-aprovam-taxar-grandes-fortunas-para-fortalecer-combate-ao-covid-19

11 – POLANYI, KARL. A grande transformação. Editora Campus: São Paulo, 2000, pp. 181-182.

12 – MARX, KARL. O capital, Vol. I. Ed. Boitempo, 2ª Ed. 2017, p. 468.

13 – Idem, pp. 175, 176, 177 e 182.


Gustavo Livio – Promotor de Justiça no Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro. Ex-Defensor Público no Estado da Bahia.

Compartilhe:

Posts recentes

Mais lidos

Deixe um comentário