Artigos para a Gazeta Operária: Uma Questão Urgente

Por Vladímir Ilitch Uliánov Lênin, via marxists.org, traduzido por Gustavo Fernandes

Escritos na segunda metade de 1899, estes artigos permaneceriam inéditos até 1925. Foram escritos por Lênin no exílio para publicação na Rabochaia Gazete (Gazeta Operária), que havia sido adotada como órgão oficial do Partido Operário Social-Democrata Russo após seu Primeiro Congresso. Contudo, o fechamento da gráfica em Kiev pela repressão czarista impediu a continuidade da publicação deste jornal e, com isso, dos artigos de Lênin em questão. Como parte da campanha de publicação de escritos de juventude inéditos de Lênin, publicaremos em nosso blog os três artigos separadamente, sendo o primeiro precedido pela carta de Lênin ao Conselho Editorial do jornal.


Uma questão urgente

No artigo anterior dissemos que nossa tarefa imediata é o estabelecimento de um órgão do Partido, um que apareça e mostre resultados regularmente, e levantamos a questão de se, e sob quais circunstâncias, é possível atingir esse objetivo. Examinemos os aspectos mais importantes dessa questão.

A principal objeção que é levantada é que, para se alcançar esse objetivo, é preciso primeiro o desenvolvimento das atividades de grupos locais. Consideramos que essa opinião amplamente difundida é falaciosa. Nós podemos e devemos começar imediatamente a fundação do órgão do Partido – e, por conseguinte, do Partido em si – e colocá-los sobre bases firmes. As condições essenciais para esse passo já existem: o trabalho local do partido está sendo feito e obviamente estabeleceu raízes profundas, dado que, apesar dos frequentes ataques policiais, apenas houveram pequenas interrupções; novas forças substituem rapidamente aquelas que caíram em batalha. O Partido tem recursos para publicação e forças literárias não somente no estrangeiro, mas também na Rússia. A questão, então, é se o trabalho que já está sendo feito deve continuar de forma amadora ou se deve ser organizado dentro do trabalho de um partido e de forma a refletir a totalidade desse trabalho em um órgão comum.

Aqui chegamos à questão mais urgente de nosso movimento, o ponto delicado – organização. A melhora da nossa organização e disciplina revolucionária, o aperfeiçoamento de nossa técnica clandestina é uma necessidade absoluta. Devemos admitir abertamente que, nesse sentido, estamos muito atrás dos velhos partidos revolucionários russos e devemos nos esforçar ao máximo para alcançá-los e ultrapassá-los. Sem uma organização melhorada não pode haver qualquer progresso para o nosso movimento operário em geral, e nem o estabelecimento de um partido ativo e de um órgão funcionando devidamente, em particular. Isso por um lado. Por outro, os órgãos do Partido que já existem (órgãos no sentido de instituições e grupos, bem como jornais) devem prestar mais atenção às questões organizativas e exercer influência nesse sentido nos grupos locais.

O trabalho local e amador sempre leva a um excesso de conexões pessoais, a métodos de círculo de estudo, e nós crescemos para além desse estágio, que se tornou muito estreito para nossos esforços atuais e que leva ao dispêndio desnecessário de nossas forças. Somente a fusão em um só partido nos permitirá observar estritamente os princípios de divisão do trabalho e da economia de forças, que deve ser atingido de forma a reduzir as perdas e construir um baluarte tão confiável quanto possível contra a opressão do governo autocrático e contra suas perseguições frenéticas. Contra nós, contra os pequenos grupos de socialistas escondidos no vasto “subterrâneo” russo, lá está a maquinaria de um dos mais poderosos estados modernos, que exerce todas suas forças para esmagar o socialismo e a democracia. Estamos convencidos de que devemos, no fim, esmagar esse estado policial, porque todas os setores sadios e em desenvolvimento de nossa sociedade estão a favor da democracia e do socialismo; mas, para conduzir uma luta sistemática contra o governo, devemos desenvolver a organização, a disciplina e a técnica clandestina ao seu mais alto nível de perfeição. É essencial que os membros e grupos de membros do Partido se especializem nos diferentes trabalhos do Partido – alguns na duplicação da literatura, outros no transporte entre fronteiras; uma terceira categoria, na distribuição no interior da Rússia; uma quarta, em sua distribuição nas cidades; uma quinta, na organização de locais secretos para reuniões; uma sexta, na angariação de fundos; uma sétima, na entrega de correspondências e todas informações sobre o movimento; uma oitava, na manutenção das relações etc., etc. Sabemos que esse tipo de especialização exige um maior autocontrole, uma maior habilidade em se concentrar em trabalhos modestos, invisíveis, mundanos, um heroísmo real muito maior que o usual nos círculos de estudo.

Os socialistas russos e a classe operária russa, no entanto, mostraram suas qualidade heróicas e, no geral, seria um pecado reclamar de falta de pessoas. É observável entre a juventude operária um entusiasmo acalorado e incontrolável pelas ideias democráticas e socialistas, e pessoas dispostas a ajudar os operários continuam a chegar, oriundos dos meios intelectuais, apesar do fato de as prisões e os locais de exílio estarem lotados. Se a ideia da necessidade de uma organização mais rígida for amplamente conhecida entre os recrutas da causa revolucionária, o plano de organização de um jornal do Partido mais regularmente publicado e entregue deixará de ser um sonho. Vejamos uma das condições para o sucesso desse plano – que seja assegurado ao jornal o suprimento de um fluxo constante de correspondências e materiais de todos os lugares. A história não mostrou quem todas as vezes que houve um ressurgimento de nosso movimento revolucionário, esse objetivo se provou atingível, mesmo se tratando de jornais publicados no estrangeiro? Se os Social-Democratas trabalhando em diversos lugares começarem a tomar o jornal do Patido como seu próprio e a considerar a manutenção do contato constante com ele, a discussão de seus problemas e as reflexões sobre o movimento como um todo como suas maiores prioridades, será possível garantir ao jornal o fornecimento de todas as informações sobre o movimento, contanto que as formas de manutenção do sigilo, não muito complicados, sejam observadas. O outro aspecto dessa questão, o da entrega regular do jornal em todas as partes da Rússia, é muito mais difícil, mais difícil do que a tarefa similar sob as formas prévias do movimento revolucionário na Rússia, quando jornais não eram, até certo ponto, destinados às massas do povo. O propósito de jornais Social-Democratas, no entanto, facilita sua distribuição. Os principais locais onde o jornal deve ser entregue regularmente e em grande quantidade são centros industriais, vilas e cidades fabris, distritos fabris das grandes cidades etc. Nesses centros, a população é quase inteiramente da classe operária; na realidade, os operários desse locais são os mestres da situação e têm centenas de formas de enrolar a polícia; as relações com centros fabris vizinhos se distinguem por sua atividade extraordinária. Na época Lei de Exceção contra os Socialistas (1878-90)[1] a polícia política alemã não era menos eficiente, mas provavelmente melhor, que a polícia russa; apesar disso, os operários alemães, graças à sua organização e disciplina, foram capazes de garantir o transporte regular através da fronteira de um jornal semanal ilegal, e de distribuí-lo nas casas de todos os assinantes, de forma que nem mesmo os ministros puderam deixar de admirar o serviço postal Social-Democrata (“o correio vermelho”). Nós, claro, não sonhamos um sucesso nesse nível, mas podemos, se juntarmos nossos esforços para isso, garantir que o jornal de nosso Partido apareça pelo menos doze vezes por ano e seja entregue regularmente em todos os principais centros de movimento a todos os grupos de operários que podem ser alcançados pelo socialismo.

Retornando à questão da especialização, devemos pontuar também que sua insuficiência se deve, parcialmente, à prevalência de trabalhos “amadores” e, parcialmente, ao fato de nosso jornal Social-Democrata dar pouca atenção a questões de organização.

Somente o estabelecimento de um órgão comum do Partido pode dar ao “operário em um dado campo” da atividade revolucionária a consciência de que ele está marchando com as “bases”, a consciência de que seu trabalho é diretamente essencial para o Partido, de que ele é um dos elos da corrente que formará o laço para estrangular o maior inimigo do proletariado russo e de todo o povo russo – o governo autocrático russo. Somente a aderência estrita à esse tipo de especialização pode economizar nossas forças; não só todos aspectos do trabalho revolucionário serão conduzidos por um número menor de pessoas, mas também haverá a oportunidade de transformar muitos aspectos da atividade atual em negócios legais. Essa legalização das atividades, sua condução dentro dos parâmetros legais, foi há muito recomendada aos socialistas russos pelo Vortwärts [2], o principal órgão dos Social-Democratas alemães. À primeira vista, esse conselho surpreende, mas na realidade ele merece uma atenção cuidadosa. Quase todos que já trabalharam em círculos de estudo locais em alguma cidade facilmente se lembrarão que, entre os numerosos e diversos negócios em que o círculo se engajava, alguns eram, em si, legais (por exemplo, a coleta de informações sobre a situação dos operários; o estudo da literatura legal sobre muitas questões; a consulta e revisão de certos tipos de literatura estrangeira; manutenção de certos tipos de relações; o auxílio aos operários para que obtenham uma educação geral, estudo das leis fabris etc.). Tornar os assuntos desse tipo em função principal de um contingente especial de pessoas reduziria a força do exército revolucionário “na linha de frente” (sem qualquer redução de seu “potencial de luta”) e aumentaria a força da reserva, aqueles que substituem os “mortos e feridos”. Isso só será possível quando tanto os membros ativos quanto a reserva vejam suas atividades refletidas no órgão comum do Partido e sintam sua conexão com ele. Reuniões locais de operários e grupos locais serão, obviamente, sempre necessárias, independentemente do nível de nossa especialização; mas, por outro lado, o número de reuniões revolucionárias de massa (particularmente perigosas do ponto de vista de ação policial e frequentemente resultando em danos maiores que os ganhos) se tornarão consideravelmente menos frequentes e, por outro lado, a seleção de vários aspectos do trabalho revolucionário como funções especiais possibilitará grandes oportunidades de mascarar essas assembleias por trás de formas legais de reunião: entretenimento, reuniões de sociedades sancionadas pela lei etc. Não foram os operários franceses, sob Napoleão III, e os operários alemães, no tempo da Lei de Exceção contra os Socialistas, capazes de desenvolver todas as formas possíveis para esconder sua atividade política e reuniões socialistas? Os operários russos conseguirão fazer o mesmo.

Ademais: somente através de uma melhor organização e do estabelecimento de um órgão comum do Partido será possível estender e aprofundar o próprio conteúdo da agitação e propaganda Social-Democrata. Precisamos muito disso. O trabalho local quase inevitavelmente leva ao exagero das particularidades locais, ao . . . . . . . . . [3] isso é impossível sem um órgão central que será, ao mesmo tempo, um órgão democrático avançado. Só então irá nosso ímpeto de converter a Social-Democracia em uma combatente de vanguarda pela democracia se tornará realidade. Somente então, também, seremos capazes de elaborar táticas políticas definidas. A Social-Democracia renunciou à teoria falaciosa sobre a “massa reacionária”. [4] Ela considera o uso do apoio das classes progressistas contra as classes reacionárias como uma das mais importantes tarefas políticas. Enquanto as organizações e publicações tiverem um caráter local, essa tarefa sequer pode ser posta em prática: não vão além de relações com “liberais” particulares ou a obtenção de diversos “serviços” deles. Somente um órgão comum do Partido, consistentemente aplicando os princípios da luta política e mantendo erguida a bandeira da democracia, conseguirá ganhar para seu lado militantes democráticos e usar todas as forças progressistas russas na luta pela liberdade política. Somente então conseguiremos converter o ódio disperso dos operários pela polícia e pelas autoridades em um ódio consciente ao governo autocrático e em determinação para conduzir uma luta desesperada pelos direitos da classe operária e de todo o povo russo! Na Rússia moderna, um partido revolucionário estritamente organizado, construído sobre essa fundação, provará ser a maior força política!

Nas edições subsequentes devemos publicar o rascunho do programa do Partido Social-Democrata Russo e começar uma discussão mais detalhada sobre várias questões organizativas.


Notas:

[1] A Lei de Exceção contra os Socialistas foi promulgada na Alemanha em 1878. A lei suprimiu todas organizações do Partido Social-Democrata, organizações de massa dos operários e a imprensa operária; a literatura socialista foi confiscada e o banimento dos socialistas começou. A lei foi anulada em 1890 sob pressão do movimento de massas da classe operário.

[2] Vorwärts (Avante) – o órgão central da Social-Democracia Alemã; foi publicado desde 1876 e editado por Wilhelm Liebknecht e outros. Engels usou suas colunas para a luta contra todas manifestações de oportunismo no partido. A partir do meio dos anos 90, no entanto, após a morte de Engels, Vorwärts começou a publicar regularmente artigos dos oportunistas, que predominavam na Social-Democracia Alemã e na Segunda internacional.

[3] Parte do manuscrito não sobreviveu.

[4] Lênin se refere à teoria de Lassalle, denunciada por Marx em sua Crítica do Programa de Gotha:

“4. «A libertação do trabalho tem que ser obra da classe operária, em face da qual todas as outras classes são uma só massa reacionária.»

A primeira estrofe é tirada das palavras introdutórias dos Estatutos internacionais, mas «melhorada». Diz-se lá: «A libertação da classe operária tem que ser o feito dos próprios operários»; aqui, pelo contrário, «a classe operária» tem que libertar — o quê? «O trabalho.» Compreenda quem puder.

Em compensação, a antístrofe é, pelo contrário, uma citação de Lassalle, da mais pura água: «em face da qual (da classe operária) todas as outras classes formam uma só massa reacionária».

No Manifesto Comunista diz-se:

«De todas as classes que hoje em dia defrontam a burguesia, só o proletariado é uma classe realmente revolucionária. As restantes classes desmoronam-se e soçobram com a grande indústria; o proletariado é dela o produto mais próprio.»

A burguesia é aqui apreendida como classe revolucionária — como portadora da grande indústria — face aos feudais e estados médios [Mittelstände] que querem manter todas as posições sociais que são obra de modos de produção antiquados. Não formam, portanto, juntamente com a burguesia, uma só massa reacionária.

Por outro lado, o proletariado é revolucionário face à burguesia, porque, crescido ele próprio do solo da grande indústria, se esforça por despojar a produção do carácter capitalista que a burguesia procura perpetuar. Mas o Manifesto acrescenta: que os «estados médios [Mittelstände]… (se tornam) revolucionários… em vista da sua passagem iminente para o proletariado».

Deste ponto de vista, é, portanto, de novo um contra-senso que elas «juntamente com a burguesia» e, sobretudo, com os feudais, face à classe operária, «formem uma só massa reacionária».

Recordou-se, aquando das últimas eleições, aos artesãos, aos pequenos industriais, etc, e aos camponeses: face a nós, formais com burgueses e feudais uma só massa reacionária?

Lassalle sabia de cor o Manifesto Comunistatal como os seus crentes [sabem] os sagrados escritos da autoria dele. Se, portanto, ele o falsificou tão grosseiramente, isso só aconteceu para embelezar a sua aliança com os adversários absolutistas e feudais contra a burguesia.”

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