Mentalismo histórico-dialético? Em torno de uma passagem d’O Capital

Por João Henrique Lima Almeida

“Pressupomos o trabalho numa forma em que ele diz respeito unicamente ao homem. Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e uma abelha envergonha muitos arquitetos com a estrutura de sua colmeia. Porém, o que desde o início distingue o pior arquiteto da melhor abelha é o fato de que o primeiro tem a colmeia em sua mente antes de construí-la com a cera. No final do processo de trabalho, chega-se a um resultado que já estava presente na representação do trabalhador no início do processo, portanto, um resultado que já existia idealmente.“[1]

1. Há pelo menos duas maneiras de se interpretar esta passagem da seção V de O Capital: (i) Há um primado da representação sobre a ação humana que chamamos trabalho; e (ii) Há um primado da ação humana que chamamos trabalho sobre a representação.

2. A interpretação (i) por primar a representação (Vorstellung), que é outro nome para imagem mental, pode naturalmente ser considerada uma interpretação mentalista, enquanto que a (ii), por submeter a representação à ação, pode naturalmente ser considerada uma interpretação pragmatista.

3. Se pensarmos com (i), tomaremos a imagem mental como condição necessária para a realização do processo de trabalho, enquanto que, com (ii), tomaremos a imagem mental como fenômeno contingente nesse processo.

4. Faço a leitura de que os professores Sérgio Lessa e Ivo Tonet em seu livro Introdução à filosofia de Marx, [2] manifestam a interpretação (i), quando dizem que “o machado é um objeto construído pelo homem e apenas poderia existir por meio da objetivação de uma prévia ideação” [3] e ainda “a ação e seu resultado são sempre projetados na consciência antes de serem construídos na prática”.[4] Ou seja, a pessoa que constrói um machado deve necessariamente “projetar em sua consciência” o resultado e o ato da construção desse machado previamente à efetivação do trabalho. [5]

5. Essa interpretação (i) possui alguns pressupostos e algumas consequências necessárias. Um dos pressupostos (p) é a noção da consciência como um cenário mental no qual transitam representações com as quais nos relacionamos. Uma das consequências (c) é que se o trabalhador não representou a si mesmo o resultado de sua atividade antes de efetivá-la, tal atividade não pode ser considerada trabalho.

6. O pressuposto (p) expressa um modo de pensar caro à filosofia moderna pela qual Marx é indubitavelmente influenciado. Nesse momento da filosofia podemos extrair concepções como as de que o ponto arquimediano de todo conhecimento é o ato de pensar, cujo conteúdo se pode pôr em dúvida;[6] a imaginação (conceito aparentado ao de representação) como uma junção de ideias, que são cópias mentais menos vívidas das impressões [7]; representações (Vorstellungen) como os objetos que nos são dados pela intuição, [8] que se originam da estimulação de nossos sentidos. [9]

7. Esse modo de pensar relativo ao pressuposto (p) foi criticado pela filosofia contemporânea em seu conteúdo ontológico e seu conteúdo epistemológico.

8. De um ponto de vista ontológico, o pressuposto (p) assume a existência de uma relação extralinguística com objetos interiores ao indivíduo. Porque se fosse assumido que nossa relação com, por exemplo, representações, fosse mediada pela linguagem, se assumiria que o modo como nos referimos linguisticamente a esses objetos determinaria o modo como os percebemos, tornando o método mais adequado para lidar com a existência desses objetos, não a introspecção, mas a análise da linguagem. Mas se as representações fossem linguisticamente inacessíveis, seria negada a própria possibilidade daqueles filósofos de filosofar sobre elas. Eles poderiam realizar introspecções, mas nada poderiam falar sobre seu objeto. Portanto, a existência de representações nesse sentido de inacessibilidade linguística, ou é uma quimera, ou nos é irrelevante. [10] Um outro argumento contra a noção de representação pode ser traçado se lembramos que um objeto ser representação de outro já constitui uma relação linguística. E como tal, necessita de critérios para a aplicação correta e incorreta que são públicos por natureza, como ocorreria se falássemos “cadeira” para se referir a uma mesa e fôssemos logo corrigidos. Sabemos que a palavra “cadeira” se refere a uma cadeira por conta de critérios públicos de ensino e aprendizagem. Seguindo essa linha, não faz sentido supor um objeto interno que está numa relação de representação com um objeto externo, uma vez não haveriam critérios para diferir a representação correta da incorreta.

9. De um ponto de vista epistemológico, é preciso recordar que na época em que O Capital foi escrito, não havia ciência psicológica propriamente dita. Portanto, tudo que era dito acerca de conceitos e fenômenos psicológicos derivava de reflexões ou especulações filosóficas e não de experimentações. Nesse sentido, os critérios para responder a pergunta “o que é conhecimento psicológico?” mudaram radicalmente de lá até cá. É por isso que hoje, se queremos falar de um fenômeno psicológico – como o desejo, a crença, a intenção –, é preciso que nos perguntemos: Quais critérios utilizamos para atribuir a existência desses fenômenos em outras pessoas? Organizando a pergunta nesses termos, não é difícil responder que utilizamos de critérios públicos como os relatos linguísticos e o comportamento. Disso decorre que, se queremos dizer que houve “prévia-ideação” na realização de uma atividade, todos os critérios que podemos dispor para afirmar isso são tão públicos como os acima citados.

10. Muito embora A Ideologia Alemã não seja, por óbvio, pedra de toque para uma exegese de O Capital, os excertos ali contidos nos ajudam a compreender a noção marxiana de consciência (Bewusstsein) que, na prática, é linguagem. [11] Nesse sentido, as objeções apresentadas acima não me parecem de modo algum desarmônicas com o materialismo característico do método dialético de Marx. Se a consciência é um produto social, então qualquer estado de consciência que podemos atribuir a outrem reside em critérios públicos, o que significa dizer que um estado dessa natureza é linguisticamente acessível.

11. Daí pode-se afirmar que ainda que Marx compreendesse a consciência como um cenário mental, seria um cenário inteiramente modelado pela linguagem que utilizamos para expressá-lo. Mas se linguagem é consciência prática e também ação, diremos que uma ação consciente necessita de uma representação prévia? É o mesmo que dizer que precisamos necessariamente pensar antes de falar, quando a fala é ela mesma pensamento. É nesse sentido que nenhuma ação, para ser consciente, necessita de uma representação prévia: a consciência já se expressa inteiramente na ação.

12. Marx diz em seguida à passagem em epígrafe: “[…] ele [o trabalhador] realiza neste último [elemento natural], ao mesmo tempo, a finalidade pretendida, que, como ele bem o sabe, determina o modo de sua atividade com a força de uma lei, à qual ele tem de subordinar sua vontade”. [12] De pronto, notamos como a vontade que o trabalhador exerce no processo de trabalho não é uma vontade, por assim dizer, pura, mas uma vontade organizada segundo uma finalidade. Essa finalidade, que “determina o modo de sua atividade com a força de uma lei”, não pode ser uma finalidade determinada de modo puramente subjetivo, senão o trabalhador estaria subordinando sua vontade à sua própria vontade, o que é um contrassenso. Então se trata de uma finalidade estabelecida por uma necessidade objetiva, como a de receber um salário (ou de quebrar um coco, na anedota do machado de Lessa e Tonet).

13. A necessidade objetiva impõe uma representação prévia para a realização do trabalho no sentido de “projeção na consciência”? Parece mais plausível que a pessoa que criou o primeiro machado o tenha representado previamente à construção, ou tenha alcançado a forma do machado de modo pragmático, por tentativa e erro? Quando estamos aprendendo algo novo, “projetamos sempre em nossa consciência” o resultado de nossa atividade, ou o agir é aqui o próprio pensar? E se nosso trabalho for apertar sucessivamente um parafuso, projetamos o resultado antes de cada ação?

14. Se retiramos a anedota do machado de seu caráter especulativo e abstrato e posicionamos na concretude com a qual as coisas efetivamente ocorrem precisaremos levar em conta que, nos processos que envolvem descoberta, o indivíduo não simplesmente projeta o resultado da ação na mente e age. Para quebrar um coco, uma pessoa tentaria utilizar um pau e uma pedra dos mais variados modos antes de chegar ao resultado de um machado, primando a ação e não a ideação. Tendo aprendido a forma adequada do machado, para repetir o processo ela não necessariamente precisaria “projetá-lo em sua consciência”, mas agir de modo similar. Uma outra pessoa que fosse aprender como se faz um machado não olharia muito fixamente para ter a representação do machado em sua mente e depois partiria para a atividade, mas precisaria mimetizar as ações de alguém que já realiza aquele trabalho.

15. Pode parecer trivial, mas quais critérios dispomos para atestar que uma abelha não representa a colmeia antes de construí-la, mas o humano representa o resultado do seu trabalho? É que os nossos conceitos de representação e de mente não se aplicam a seres que não se comportam como seres humanos, que não possuem uma linguagem como a nossa. [13]

16. Não é porque chegamos a um resultado que não nos surpreende, ou que de certo modo esperávamos, que esse resultado desfilou em nossas mentes antes da nossa ação. De outro modo, dizer que tudo o que falamos numa conversa corresponde à nossa finalidade significaria dizer que ensaiamos previamente o que diríamos, ou representamos em nossa mente o modo como a interlocutora reagiria. Contudo, a finalidade da ação está expressa no modo como agimos.

17. A consequência (c), como decorrência necessária da interpretação (i), impediria que chamássemos de trabalho aquelas ações em que não há prévia-ideação no sentido de “projeção na consciência”. Ela também impediria que chamássemos de trabalho determinadas atividades historicamente realizadas por mulheres, como as atividades de cuidado com os filhos, uma vez que não há ali um resultado a ser “projetado na consciência”.

18. Desse modo, o que parece fundamental ao conceito de trabalho é justamente como essa “finalidade pretendida” é determinada socialmente e a atividade laboral captada pela sociedade. A “vontade” do trabalhador, ou o que ele representa, está sempre subordinada ao modo como a sociedade organiza essas finalidades que agem “com a força de uma lei”. Logo, o que importa ao trabalho é o modo de captação social da atividade individual – ou a função que a atividade cumpre no interior de determinado sistema econômico –, que se expressa nas “finalidades pretendidas” e subordina as vontades e representações.

19. Podemos dizer agora que nem o pressuposto (p) nem a consequência (c) são admissíveis. Como anteriormente dito, o pressuposto (p) poderia até configurar uma espécie de “paradigma” na filosofia moderna, mas um que não faz mais sentido no nosso contexto contemporâneo, como mostram as objeções ontológicas e epistemológicas. Que o pressuposto (p) tenha atuado como um paradigma, justifica o uso do termo representação (Vorstellung) por Marx, uma vez que ainda não haviam fortes objeções filosóficas ao uso do termo como houve no século XX por pragmatistas, behavioristas e filósofos analíticos. Além disso, como previamente dito, não havia ciência psicológica. Mas o materialismo do método dialético de Marx abre condições para essa crítica dentro do próprio marxismo. E se julgamos o materialismo mais adequado que o mentalismo ou idealismo como componente teórico, não devemos tomar a noção de representação em Marx como uma mera “projeção na consciência”. E mesmo se tomássemos, seria anti-marxista cristalizar uma proposição marxiana como uma tese filosófica intocável, que resiste aos avanços materiais dos instrumentos científicos. De modo diverso, a teoria marxiana, como deve ser a marxista, parece advir do concreto e ser regra para sua transformação.

20. Em suma, fico com a interpretação (ii) como a interpretação mais adequada a uma teoria materialista como a de Marx. Deixemos a interpretação (i) para qualquer método que se queira denominar mentalismo histórico-dialético.


Notas:

[1] MARX, Karl. O Capital: Crítica da Economia Política, Livro I. Editora Boitempo, 2017, pp. 255-6, grifos nossos. No alemão, Marx não emprega o termo “mente” (Seel), mas “cabeça” (Kopf).

[2] LESSA, Sérgio e TONET, Ivo. Introdução à filosofia de Marx, Expressão Popular, 2011.

[3] Ibid., p. 20, grifo nosso.

[4] Ibid., p. 18, grifo nosso.

[5] Apesar de Lessa e Tonet dizerem no capítulo posterior que a anedota do machado “é rigorosamente impossível de ocorrer na história, pois não há indivíduo fora da sociedade” (p. 23), o que eles fazem é inserir esse evento num contexto coletivo, deixando as noções de consciência e ideação ali expressas intocadas.

[6] DESCARTES, René. Meditação Segunda. In: _____. Meditações Metafísicas. Editora Martins Fontes, 2005, pp. 41-56.

[7] HUME, David. Da Origem das Ideias. In: _____. Investigações sobre o entendimento humano e sobre os princípios da moral. Editora Unesp, 2004, pp. 33-40.

[8] KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Editora Vozes, 2018, p. 30.

[9] Ibid., p. 45.

[10] Cf. TUGENDHAT, Ernst. Consciência e Linguagem. In: _____. Lições introdutórias à filosofia analítica da linguagem. Editora Unijuí, 2006, pp. 85-106.

[11] MARX, Karl. A Ideologia Alemã. Editora Boitempo, 2007, pp. 34-35

[12] MARX, Karl. O Capital: Crítica da Economia Política, Livro I. Editora Boitempo, 2017, p. 256.

[13] Cf. WITTGENSTEIN, Ludwig. Philosophical Investigations/Philosophische Untersuchungen. Blackwell, 2009, §§281-3.

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