Marighella e o problema da conciliação

Por Jailson Ramos.

Marighella (2019) é o filme de estreia de Wagner Moura na direção. A obra passou pelo circuito de festivais europeus em 2019 e teve uma bem-sucedida exibição em Berlim que, inclusive, impulsionou a divulgação aqui no Brasil. Entretanto, apesar de todo o burburinho, o longa não pôde ainda ser exibido no país. Segundo os próprios produtores e realizadores, isso se deu por motivos políticos e, de fato, houve problemas com a Ancine, agência reguladora do cinema nacional, e com representantes do Estado na gestão atual que implicaram numa data de estreia prevista apenas para novembro de 2021. Só que o filme vazou via torrent e parte do público brasileiro teve acesso.


Nesse sentido, gostaria de registrar minhas primeiras impressões acerca da obra, especialmente por toda a repercussão que teve o filme, por se tratar do mais famoso guerrilheiro brasileiro e por ter sido a estreia de Wagner, reconhecidamente um dos maiores atores do cinema nacional, como diretor. É por isso também que me dedico inicialmente ao filme propriamente dito.

A primeira sequência do filme é, de fato, bem impactante: acompanhamos em um plano sequência com câmera na mão o assalto a um trem repleto de armamento, alvo do grupo revolucionário da ALN (Aliança Libertadora Nacional). Durante o assalto, experienciamos o evento em sua integralidade temporal pela forma como Wagner decide filmar, opção estética que se repete diversas vezes por todo o filme. Nesse sentido, outro ponto alto é a cena do assalto ao banco, também filmada em plano longo — e, confesso, é bem legal assistir aos rapazes mandando bala pra cima dos policiais defensores do Estado ditatorial.

Contudo, há também uma falta de critério no uso desses planos longos que se acentua no decorrer do filme, pois quase todas as cenas prescindem da montagem, o que em si não se configura como um problema. A questão, no entanto, é que não se diferencia uma cena de tiroteio de uma cena de reflexão, não há contraponto entre uma cena de discussão e uma cena de tortura. Há um nivelamento das condições e características da experiência. Estamos a todo momento acompanhando a exata temporalidade dos eventos sem que isso represente mais do que o fetiche por um realismo que deturpa a própria razão de ser do modelo. Aliás, nem preciso dizer que quase todos os planos sequência, por tais motivos, poderiam muito bem ser montados sem prejudicar em nada a narrativa. Pois, nesse caso, o respeito ao tempo não implica exatamente o respeito à duração e sua efetiva percepção, mas apenas a sua expressão mediada pelo movimento, de modo que o que temos é somente um registro passivo da duração e a subordinação desta à sua expressão física.

Mas além do fetiche da forma, que se traduz num problema muito recorrente desses filmes de estética publicitária — marcado também pelos planos sem profundidade de campo -, o que mais incomoda na opção pelos reiterados planos em sequência é a cena em que Jorge é torturado. Novamente, acompanhamos o evento integral dele sendo levado ao pátio, onde é agredido por um grupo de policiais torturadores, e em seguida é levado ao interior de um galpão, despido e molhado para ser eletrocutado — tudo no mesmo plano longo. Ao fim da tortura, Jorge consegue se levantar, diz algumas palavras e corre para cima de Lúcio, o delegado, que o atinge com um cano de aço na testa e diz: “mais um patriota que se vai”.

Me pergunto sobre o caráter ético dessa forma de mostrar a exasperação do torturado. Veja, ao nos propor um modo de olhar que respeite todo evento em sua integralidade, o diretor respeita também nossa fruição. Não há nada que nos leve a um distanciamento capaz de gerar uma perspectiva crítica em relação ao acontecimento: nem a nível de enunciação (por meio da montagem, da performance dos atores ou das falas), nem a nível de enunciado propriamente. Ou seja, há um completo movimento de identificação passiva que, no fim, resulta também num certo fetiche pelo sofrimento alheio. De modo que essa cena seja análoga à uma outra, clássica do cinema brasileiro contemporâneo: quando em Cidade de Deus (Fernando Meirelles e Kátia Lund, 2002) assistimos, da mesma forma (plano sequência, câmera na mão, de fronte para quem sofre e por trás — do ponto de vista — de quem agride), ao grupo de crianças decidir, chorando, quem será assassinado por causa de algum erro cometido. É o mesmo prazer de olhar o sofrimento dos corpos subalternos, num movimento de referência feito por Wagner, consciente ou inconscientemente, ao cinema hegemônico, do qual ele é parte fundamental — a começar pelo Capitão Nascimento, também lembrado quando dos tapas nas caras do rapaz negro nos trilhos e do Frei na livraria, muito parecidos àqueles desferidos por Moura no terrível Tropa de Elite.

Não é por outro motivo que entre os produtores do filme estejam Fernando Meirelles e sua O2 Filmes, além é claro da toda-poderosa Globo Filmes. A primeira, talvez a maior produtora do cinema nacional e a Globo, um dos maiores conglomerados de comunicação do capitalismo global, apoiadora do Golpe de 1964 e da ditadura empresarial-militar que dele se seguiu. Ambas responsáveis pela decadente e precária realidade estético-ideológica que atravessamos, cujos motivos não são aqui o foco. Entretanto, o conluio entre essas duas grandes empresas não é novidade a nível de capitalismo tanto monopolista, como dependente. São elas que têm monopolizado as representações audiovisuais e, por consequência, os discursos ideológicos a respeito de pautas políticas (seja a ambiental, como a econômica ou a cultural) por meio de seus produtos. Inclusive, cooptando parte de certa “esquerda liberal” por causa de seu suposto posicionamento “anti-fascista”. Então, o que gera o questionamento é o fato de que o diretor do filme, autodeclarado como um homem progressista, associou-se a tais representantes da burguesia nacional para representar a história do revolucionário marxista-leninista Carlos Marighella.

Alguns argumentarão que desta forma o filme e a história de Marighella poderão alcançar as massas, assumindo que, quando de sua estreia em solo nacional, haverá ampla divulgação no horário nobre da emissora, matérias especiais em seus principais jornais, entrevistas ao Bial e a quem mais puder. E que, também por isso, o filme fez a opção pela forma melodramática de levar a narrativa às telas. De modo que, pelos interesses de mercado, mas também pela estratégia na luta ideológica, estaria tudo muito bem justificado e a obra seria o melhor que o campo progressista e popular poderiam ter nas condições atuais.

De fato, essa poderia até ser uma perspectiva interessante se não ignorasse o fundamental: o que isso implica na forma como Marighella é representado? Pois o melodrama em si não é, como pensavam os radicais de ontem, uma forma essencialmente reacionária. Embora apropriada pelos produtos e produtores burgueses, essa forma foi amplamente usada também no campo cultural da esquerda de maneira primorosa. Basta lembrarmos aqui de Eles não usam blacktie (1981) de Leon Hirszman, o mais comunista dos cinemanovistas, ou também da peça Rasga coração (1974), de Vianinha (adaptada para o cinema em 2018, por Jorge Furtado, não sem contradições). Sem falar das contemporâneas apropriações que se fazem de elementos melodramáticos a fim de ressignificá-los ou transcendê-los, como é o caso de Arábia (Affonso Uchôa e João Dumans, 2018) — alguns questionarão esse enquadramento, rs — ou de Inferninho (Pedro Diógenes, Guto Parente, Fabio Seidl e Tiago Lins, 2019).

A questão é que, como qualquer outra forma narrativa, o melodrama também tem seus limites, especialmente no caso de lidar com uma representação eminentemente política. Pois, a grosso modo, suas principais características estariam relacionadas à estética dos excessos — do chororô, das reiterações dramáticas, das gritarias — e também às narrativas de dramas familiares ou amorosos — enfim, capaz de explorar em profundidade a esfera privada da vida dos sujeitos. E é aí que se encontra o problema do filme sobre Marighella.

A priori, é muito interessante e positivo que o filme se esforce para nos mostrar Marighella em sua dimensão pessoal, especialmente na relação com o filho, mas também no trato quase paterno com os outros companheiros, isto é, seu lado “humano”, do homem que ri, conta piadas, se diverte e, porque não, briga e fala grosso quando precisa. O lance é que esse registro nos mostra um revolucionário emocionado — algo um tanto inconcebível. Por exemplo, a segunda cena em que, salvo engano, ele discute com Jorge Salles — o dono do jornal — beira o ridículo: as palavras de ordem para justificar a atitude infantil da gritaria respondem ao formato, mas contrariam certamente a História. Veja: não se trata exatamente de uma discussão ou debate acalorado, mas antes de bravatas de um lado pro outro, a fim de demarcar o campo político — mais contemporâneo do que de seu tempo, aliás — defendido por Marighella.

O próprio peso narrativo dado à relação com o filho é problemático tendo em vista o objeto da representação. Pois assumindo que, enquanto um político e um revolucionário, a vida de Marighella tenha sempre sido reconhecida pelo seu caráter público, qual o sentido de secundarizá-lo? Qual o objetivo de mostrá-lo primeiro como um pai, representando algo como “a luta do bem contra o mal” e reduzindo a causa dos movimentos armados contra a ditadura e ao capitalismo brasileiro à questões pessoais? A perspectiva é a todo momento a dos indivíduos. E pior: guiados por seus medos, inseguranças, ansiedades, paixões, em suma, por uma irracionalidade que é quase pejorativa e se aproxima ainda mais de um reacionarismo romantizado. Que é, aliás, a visão geral de toda a experiência histórica que o filme representa.

De modo que as razões pelas quais Marighella luta são antes familiares e privadas e sua imagem como um bom pai e líder político afetado resultam na mistificação de sua história — cujo ponto alto é sua morte. Assim, assistimos à uma narrativa acrítica e mistificadora, que jamais encena qualquer tipo de discussão propriamente ideológica — a única cena em que falam da teoria de ação do proletariado é em tom de chacota — e reduz Marighella a um nacionalista qualquer. Toda a carga valorativa fica restrita ao papel idealizado dos personagens — mocinhos e bandidos guiados apenas pelas vontades e escolhas individuais, tornando-os essencialmente bons e maus -, expresso sobretudo em Lúcio, interpretado muito bem por Bruno Gagliasso. Perceba: o problema é no personagem, não no ator ou na atuação. E tudo isso porque não há política no filme: aparecem os policiais, mas não o Estado como instituição central de poder. Em momento algum as pautas políticas da época foram representadas, parece até que não impactavam mesmo na vida concreta dos personagens revolucionários, que foram mostrados mais ou menos alheios à realidade.

Portanto, é inegável que o ímpeto de massas, refletido tanto a nível de produção (associada aos inimigos da cultura e das causas defendidas por Marighella), como no campo estético, resultou mais em uma domesticação da figura de Carlos Marighella e dos movimentos armados contra a ditadura. Os problemas políticos foram reduzidos à causas pessoais, individuais e privadas; a carga ideológica ficou dissolvida num nacionalismo sem sentido de ser — lá em 68 e sobretudo aqui em 2021 — e o que era parte de um avanço na luta revolucionária virou um discurso contrário, que se por um lado não exalta a ditadura, rechaça a alternativa radical, ou seja, em última instância assume o capitalismo como único caminho possível. (Aquele discurso de Humberto antes de ser fuzilado pelos policiais é o ponto alto desse posicionamento).

Então, ok, pode ser que o filme alcance as amplas massas do público brasileiro, mas quem é o Marighella a que eles terão acesso? Remodelaram o personagem histórico e político a ponto de torná-lo quase irreconhecível e, pior, atraente aos interesses impopulares defendidos pelos produtores da obra. Preferiram ser fiéis ao “gosto popular” do que às ideias de Marighella. Esqueceram que não há separação possível entre ética e estética no campo da expressão artística. Domesticaram-no. De resto, me fica na cabeça somente uma pergunta: o que Carlos Marighella pensaria ao se ver representado nesse filme?

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