O Direito à Autodeterminação dos Povos e a Questão Curda

Por Tom Hensgen, via Kommunistische, traduzido por Raul Floriano

Os curdos vivem principalmente na Turquia, no Iraque e na Síria. A presente “contribuição ao debate” trata, primariamente, da orientação política do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) e de suas organizações-irmãs (PJAK, no Irã; PYD, na Síria; e PCDK, no Iraque). Nesse contexto, são brevemente discutidos a União Patriótica do Curdistão (PUK) e o Partido Democrático Curdo (KDP), partidos que administram a região “autônoma” do Curdistão no Iraque. As diferentes organizações curdas possuem, em parte, um relacionamento inamistoso entre si.


Grande parte do movimento comunista na Alemanha é solidário ao PKK e ao “autogoverno” em Rojava/Curdistão Ocidental/Nordeste da Síria, sob liderança do PYD (Partido de União Democrática). Alguns comunistas chegam a pôr ênfase nessa temática. É exatamente isso que repudio. Minha crítica é dirigida, entre outros, às organizações que se concebem como marxista-leninistas (ML), como o Young Struggle (YS), o Partido Marxista-Leninista Alemão (MLPD), a Perspectiva Comunista (PK) e a Construção Comunista (KA).

Só porque, aparentemente, tantos comunistas são solidários ao PKK não significa que eles estão corretos. Ao contrário, isso pode ser interpretado como um dos vários sintomas da crise no interior do movimento comunista e deve, por isso, ser objeto de reflexão crítica. É importante, nesse caso, que o debate político seja conduzido com base em fatos e com argumentos, e não de maneira emotiva, polêmica ou a partir de teses sem comprovação. Creio que essa advertência seja especialmente relevante nesse tema, que será tratado aqui na seguinte ordem:

  1. O Marxismo-Leninismo e o Direito à Autodeterminação dos Povos
  2. Breve Resumo do Caráter do PKK: o PKK é revolucionário?
  3. Os Estados Unidos e a Ásia Ocidental
  4. Como os Estados Unidos deturpam o Direito à Autodeterminação dos Povos
  5. O PKK e os EUA: o PKK é pró-imperialista?
    1. ideologicamente
    2. militarmente
    3. economicamente
  6. Aliados Alternativos para o PKK
  7. O TKP em relação ao Imperialismo e à Ásia Ocidental
  8. Comparação Palestina-Curdistão
  9. Conclusão
  1. O Marxismo-Leninismo e o Direito à Autodeterminação dos Povos

É controverso se há apenas um povo e idioma curdos ou se existem vários povos e idiomas curdos. Ao mesmo tempo, não está claro se os curdos constituem uma nação autônoma. Existe a tese de que os curdos na Turquia (assim como outros povos) são parte da nação turca desde a fundação da República e do surgimento da nação. Defensores dessa tese supõem, em parte, que nunca chegou a ocorrer a formação de uma nação autônoma curda ao longo do tempo. Ibrahim Kaypakkaya, fundador do TKP/ML (Partido Comunista da Turquia), foi um dos primeiros a falar da existência de uma nação curda no interior da Turquia [1]. Prefiro evitar as diferentes definições sobre o tema e o debate em torno dele, adotando a hipótese de que existem uma ou mais de uma nação curda. Aceitar essa tese é pressuposto para que se possa discutir a questão do direito à autodeterminação.

No interior do movimento comunista é, com efeito, claro que o direito à autodeterminação dos povos não é válido incondicionalmente, para todas as nações e a qualquer momento, mas, ao contrário, depende dos fatos objetivos e concretos. No entanto, existem alguns atores que rejeitam esse ponto de vista. Para introduzir o tema, farei referência à posição de Marx, Engels, Lenin e Stalin. Isso é relevante, na medida em que suas análises permanecem atuais e constituem uma boa orientação para tratar de questões contemporâneas acerca do direito à autodeterminação.

Marx e Engels não possuíam uma relação unívoca com movimentos de libertação nacional. Eles se pronunciaram, por exemplo, em favor da separação da Irlanda [2], mas contra a independência dos eslavos [3]. Aqui deve ser considerado que entre esses dois textos sobre o tema haviam se passado quase 20 anos, e que suas posições se desenvolveram ao longo do tempo. Fundamental é que eles não eram incondicionalmente favoráveis à separação de todas as nações oprimidas.

No fim do século XIX e no começo do século XX houve uma ampla discussão no movimento comunista acerca da questão nacional, envolvendo, entre outros, comunistas alemães, holandeses, poloneses e russos. Ao longo desses debates, Lenin revisou parte de seus pontos de vista, como fica claro na maneira como seus textos mais novos contradizem, parcialmente, textos mais antigos. A seguir, cito a opinião de Lenin acerca do direito à autodeterminação contida na obra “Os Resultados da Discussão acerca da Autodeterminação”, uma vez que a passagem resume bem seu último ponto de vista em torno da questão:

“Nós não podemos ser a favor de uma guerra entre os grandes povos, a favor do assassinato de 20 milhões de pessoas, em nome da libertação problemática de uma pequena nação, cuja população talvez conte entre 10-20 milhões. É claro que não podemos fazer isso! Mas não podemos fazer isso não porque nós retiraremos a igualdade nacional de nosso programa, mas porque os interesses da democracia de um país devem ser submetidos aos interesses da democracia de vários e de todos os países. Suponhamos que entre duas monarquias haja uma menor, cujo príncipe esteja ligado aos monarcas das outras duas por laços familiares, e também por outros motivos. Suponhamos ainda que a proclamação da república nesse pequeno país, que a expulsão do seu monarca signifique, na prática, uma guerra entre os dois vizinhos maiores para restauração de um ou outro monarca no trono do pequeno país. Não há dúvidas de que o conjunto da social-democracia internacional [i.e, os comunistas], bem como a verdadeira parte internacionalista da social-democracia do pequeno país seria, nesse caso, contrária à substituição da Monarquia pela República. A substituição da Monarquia pela República não é nada de absoluto, mas apenas uma das exigências democráticas, que se submetem aos interesses da democracia (e, naturalmente, em maior medida, aos interesses do proletariado socialista) como um todo. Certamente esse caso não conjuraria a menor diferença de opinião entre os sociais-democratas destes países. Mas se por causa disso, algum social-democrata propusesse retirar a república do programa da social-democracia, ele seria certamente considerado como louco. Seria dito a ele: ‘não se pode esquecer a distinção lógica elementar entre o particular e o universal. […] Para ser um social-democrata internacionalista, não se pode pensar apenas em sua própria nação, mas deve-se, antes, colocar em lugar mais alto que ela os interesses, a igualdade e a liberdade geral de todas as nações. […] Ao contrário, o social-democrata deve colocar a ênfase de sua agitação na primeira palavra de nossa fórmula geral: ‘união voluntária’ das nações. Ele pode, sem violar seus deveres como internacionalista, ser a favor tanto da independência política de sua nação, como também de sua anexação pelo Estado-vizinho X, Y ou Z. Em todo caso, no entanto, ele deve lutar contra à estreiteza, à exclusividade e ao isolamento da pequena-nacionalidade, e a favor da observância do todo e do universal, a favor da submissão do interesse da parte pelo interesse da coletividade. […]. Em primeiro lugar, não existe uma única exigência democrática parcial, e não pode haver uma que não conduziria a abusos, se a parte não estiver submetida ao todo; nós não somos obrigados a apoiar “toda” luta de independência ou “todo” movimento republicano ou anticlerical. […]. Nas teses polonesas (parte III, no final do Ponto 2), é levantada a objeção – contra a ideia de um independente Estado-tampão polonês – de que essa seria uma utopia vazia de grupos pequenos e impotentes. Uma vez realizada, essa ideia significaria a produção de um pequeno Estado-residual, que seria colônia militar de um ou outro grupo de potências, um joguete de seus interesses militares e econômicos, um campo de exploração do capital estrangeiro, um campo de batalha de futuras guerras. Tudo isso se coloca muito corretamente contra a solução da independência da Polônia para hoje, pois mesmo uma revolução na Polônia não mudaria nada ali, mas desviaria a atenção das massas polonesas do ponto principal: da ligação de sua luta com a luta do proletariado russo e alemão. Não é nenhum paradoxo, mas uma realidade, o fato de que o proletariado polonês enquanto tal só pode servir à causa do socialismo e da liberdade (inclusive dos próprios poloneses), se eles lutarem em conjunto com o proletariado dos países vizinhos e contra os nacionalistas poloneses de mentalidade estreita. É impossível negar a grande contribuição histórica dos sociais-democratas poloneses à luta contra esses últimos. […] Os social-democratas poloneses não podem exigir a solução da independência da Polônia – uma vez que os internacionalistas proletários não podem fazer nada por ela – sem rebaixarem-se, como “Fracy”, a lacaios de uma das monarquias imperialistas” [ 4].

Stalin também trata dos movimentos de libertação nacional. Ele se baseia no conteúdo da opinião de Lenin e a aplica às lutas de sua época. Fica claro na citação a seguir que o direito à autodeterminação dos povos também não é defendido em geral, sendo sempre investigado em relação de dependência com as condições concretas:

“‘As exigências particulares da democracia’, diz Lenin, ‘entre elas o direito à autodeterminação, não são algo de absoluto, mas uma pequena parte do movimento mundial universal-democrático (agora: universal-socialista). É possível que em alguns casos concretos e particulares a parte contradiga o todo e, nesse caso, deve-se recusar a parte’. […] É isso o que ocorre com a questão dos movimentos nacionais particulares e do possível caráter reacionário desses movimentos. Isso ocorre, naturalmente, somente quando eles não são observados de um ponto de vista formal, quando não são observados de um ponto de vista de direitos abstratos; mas, sim, concretamente, do ponto de vista dos interesses do movimento revolucionário. O mesmo vale também para o caráter dos movimentos nacionais em geral. A natureza indubitavelmente revolucionária da maioria dos movimentos nacionais é, assim, relativa e peculiar, assim como a natureza possivelmente reacionária de vários movimentos nacionais é relativa e peculiar. O caráter revolucionário de um movimento nacional sob circunstâncias de opressão imperialista não pressupõe, de maneira alguma, que elementos proletários tenham, incondicionalmente, que tomar parte do movimento; ou que o movimento tenha que possuir um programa revolucionário, republicano ou um fundamento democrático. A luta do emir do Afeganistão pela independência do Afeganistão é uma luta objetivamente revolucionária, apesar das posições monarquistas do emir e de seus companheiros de luta, pois essa luta enfraquece, decompõe e debilita o imperialismo. Enquanto que a luta dos tais “obstinados” democratas e socialistas, “revolucionários” e “republicanos” como, digamos, Kerenski e Zereteli, Renaudel e Schneidemann, Tchernov e Dan, Henderson e Clynes durante a guerra imperialista foi uma luta reacionária, pois ela tinha por consequência o disfarce, o fortalecimento e a vitória do imperialismo. A luta dos mercadores egípcios e intelectuais burgueses pela independência do Egito é, pelos mesmos motivos, objetivamente uma luta revolucionária, ainda que os líderes do movimento nacional egípcio sejam de origem ou posição burguesas; ainda que eles sejam contra o socialismo. No entanto, a luta do governo inglês dos trabalhadores pela manutenção do estado de dependência do Egito é, pelos mesmos motivos, uma luta reacionária, ainda que os membros desse governo tenham origem e posição proletárias; ainda que eles sejam ‘a favor’ do socialismo. Isso sem falar dos movimentos nacionais de outros países ainda mais colonizados e dependentes, como a Índia e a China, nos quais cada passo no caminho da libertação, mesmo quando eles contrariam as exigências formais da democracia, é um golpe vigoroso contra o imperialismo, vale dizer: ele é, sem dúvidas, um passo revolucionário” [5].

Resumo dos aspectos essenciais de ambas as citações:

– Os interesses da democracia de um país são subordinados aos interesses da democracia de vários e todos os países.

– Exigências democráticas particulares (como a autodeterminação dos povos) são subordinados aos interesses da democracia como um todo.

– A diferenciação lógica elementar entre o particular e o universal é importante. (Em geral, os comunistas são a favor do direito à autodeterminação; no entanto, os comunistas devem observar as condições concretas, podendo ser, assim, contra o direito à autodeterminação em um caso concreto).

– Para ser um comunista internacionalista, não se pode pensar apenas em sua própria nação, mas, antes, deve-se priorizar os interesses de todas as nações, sua felicidade e igualdade gerais.

– A observância do todo e do universal contêm em si a subordinação dos interesses da parte aos interesses da coletividade.

– Não existe e não pode haver uma única exigência democrática parcial que não possa ser deturpada, quando não se subordina a parte ao todo.

– Pode ser útil lutar conjuntamente com o proletariado de países vizinhos em vez de precipitar uma separação estatal, que teria como consequência a criação de uma colônia militar de um grupo de potências, um joguete de interesses militares e econômicos, um campo de exploração do capital estrangeiro ou um campo de batalha de futuras guerras.

– Uma luta é objetivamente revolucionária quando ela enfraquece, decompõe e debilita o imperialismo. Quando uma luta nacional enfraquece o imperialismo, os comunistas devem defender o direito à autodeterminação.

–  Uma luta é reacionária quando ela tem por consequência o disfarce, o fortalecimento e a vitória do imperialismo. Quando uma luta nacional fortalece o imperialismo, os comunistas devem ser contrários ao direito à autodeterminação.

Eu não estou referenciando os clássicos do marxismo-leninismo porque eles automaticamente fariam tudo corretamente. Eles também cometeram erros em diferentes áreas, o que nós devemos investigar criticamente. Eu acredito, contudo, que ambas as citações e seus pontos centrais expõem aspectos centrais e corretos, pelos quais nós devemos nos orientar.

Em 2019, o Young Struggle (YS) publicou uma polêmica contra o Partido Comunista Alemão (DKP), o Partido Comunista Turco (TKP) e a Organização Comunista (KO). Nessa polêmica, contradisseram claramente a posição dos clássicos em relação à autodeterminação dos povos: “Cada nação – inclusive os curdos e as curdas – têm o direito à autodeterminação, sem ‘se ou ‘porém” [6]. Eles defenderam, portanto, que o direito à autodeterminação dos povos, isto é, o direito à separação estatal seria válido independentemente das condições concretas de cada nação, “sem se ou porém”. Ou eles não entenderam a posição de Marx, Engels, Lenin e Stalin ou eles rejeitaram-na conscientemente, sem realizar uma crítica explícita à posição dos clássicos.

Em uma entrevista de junho de 2021, o Partido Comunista Marxista-Leninista da Turquia (MLKP) declarou: “Sob o domínio dos imperialistas, o Curdistão foi dividido em quatro colônias. Por esse motivo, a luta de libertação nacional curda tem um caráter objetivamente anti-imperialista” [7]. Assim, parece que o MLKP quer fundamentar sua análise atual da situação exclusivamente com base nos resultados imediatos da I Guerra Mundial: já que a área de assentamento curda foi dividida em quatro partes, deve-se inevitavelmente apoiar a questão do direito à autodeterminação, independentemente das condições atuais? Não, a abordagem do MLKP é também um desvio do marxismo-leninismo. Eu também rejeito sua tese de que os territórios curdos seriam quatro colônias e de que, por isso, as lutas curdas seriam lutas anticoloniais. O MLKP deveria esclarecer como eles definem colonialismo e por que esse conceito seria aplicável. Também existem outras etnias que viviam no Império Otomano e hoje vivem como minorias nacionais em outros Estados – esses povos são igualmente povos colonizados? Todos os Estados nos quais nações são suprimidas são automaticamente potências coloniais?

Resumidamente, deve-se afirmar que os marxistas-leninistas fazem (ou deveriam fazer) do direito à autodeterminação um direito dependente das condições concretas, enquanto o Young Struggle (YS) e o MLKP se afastam desse princípio e tomam esse direito como universalmente válido. A seguir, adentrarei essas condições concretas para investigar como se deve avaliar o PKK e se o direito à autodeterminação dos povos curdos deve ser defendido sob as atuais condições.

  1. Breve Resumo do Caráter do PKK: o PKK é revolucionário?

Para poder fazer um juízo sobre PKK é relevante analisar sua posição em relação à luta de classe e ao imperialismo. Devido ao seu ponto de vista em relação a esses temas, não reputo o PKK como um partido revolucionário ou progressista.

Em 1978, o PKK foi fundado na Turquia, se colocando como um partido marxista-leninista. Em 1984, eles declararam uma luta armada contra o Estado turco com o objetivo de fundar um Estado curdo socialista. Após a dissolução da União Soviética, em 1989/1990, o PKK começou a transformar-se. A queda do socialismo foi, possivelmente (as forças motrizes internas teriam que ser melhor investigadas para que se pudesse responder mais exatamente a essa questão), a principal causa para a mudança de paradigma do PKK, enquanto outros aspectos contribuíram nos anos subsequentes para o fortalecimento dessa orientação: a inferioridade militar do PKK diante da Turquia conduziu a vários cessar-fogos unilaterais nos anos 90 e, em 1999, o presidente do PKK, Öcalan, foi perseguido internacionalmente por diversos serviços de inteligência, tendo sido, depois, preso.

Outros ingredientes da mudança do PKK foram, também, a renúncia do marxismo-leninismo como visão de mundo, a renúncia do objetivo de lutar por um Estado curdo por meio de uma guerra de guerrilha, e a adoção do projeto de um confederalismo democrático. O confederalismo democrático é defendido tanto pelo PKK quanto por seus partidos-irmãos (PJAK, no Irã; PYD, na Síria; e PCDK, no Iraque) e busca ser implementado por eles. O PKK integra, junto com seus partidos-irmãos, a União das Comunidades Curdas (KCK), que os integra como organização guarda-chuva. De acordo com essa ideologia, o KCK pretende construir estruturas autônomas de autogovernos locais, tornando-se, assim, independente dos Estados existentes. Sua solução é, portanto, chamada também de solução anarquista e sem Estado. Assim escreveu Öcalan em 2011, em sua brochura “Nação Democrática”: “A democracia completa é uma situação sem Estado” [8]. Mas sua utopia sem Estado não é uma sociedade sem classes, mas, sim, uma sociedade que se alicerça na conciliação de classes. A concepção da conciliação de classes tem efeitos fatais na práxis concreta e na estratégia. O confederalismo democrático não prevê que o Estado capitalista seja destruído ou que os capitalistas sejam expropriados. No Nordeste da Síria/Rojava, o PYD busca implementar esse conceito: no artigo 41 do contrato social local, a propriedade privada é explicitamente protegida e expropriações são rejeitadas [9]. Nesse local, organizações foram construídas, como a Saziyen Cîvaka Sîvil, nas quais trabalhadores e seus chefes se organizam conjuntamente [10]: a cooperação de classes é visivelmente um sólido componente da ideologia do PKK. Em um artigo no site “Make Rojava Green Again”, de 2018, lê-se: “Vilas que preferem permanecer em uma economia capitalista são livres para decidir isso por si mesmas, mas serão excluídas da rede econômica comunal” [11]. A forma econômica comunal, que também é uma forma de capitalismo, não passa de uma oferta facultativa: deve-se fundar um consenso entre os possuidores e os despossuídos. Ao mesmo tempo, o PKK rejeita a hegemonia: “O confederalismo democrático não abre nenhum espaço para qualquer aspiração à hegemonia. Isso é especialmente válido para o campo da ideologia” [12]. Sascha Stanicic escreveu sobre isso em 2015, em seu “Amor à Liberdade”: “Essa tentativa encontra uma expressão plástica de como os interesses dos ricos, empresários e donos de terra podem ser conciliados com os interesses das massas mais pobres no seguinte fato: Akram Kamal Hasu tornou-se primeiro-ministro do cantão de Cizîre. Ele pertence a uma das empresas sírias mais ricas existentes”. Na principal obra teórica do PKK, “Para além do Estado, Poder e Violência” (doravante designada “obra principal”), publicada em 2004, lê-se sobre isso: “O erro fundamental é a contraposição antagonística entre capitalistas e trabalhadores”.

Como o YPG/YPJ (braço armado do PYD) conseguiu, por meio do vácuo de poder de 2011, garantir para os curdos na Síria direitos civis e culturais, poderia se falar de uma revolução burguesa. Mas eu rejeito essa tese. Acontece que é necessário colocar o acontecimento em relação com o conjunto das relações sociais. Eu estou convencido de que a luta do YPG/YPJ não conduziu os curdos e outros povos locais nem um passo em direção ao socialismo, mas, ao contrário, os deixaram em uma situação ainda pior que a anterior por causa de sua relação com os Estados Unidos. Por isso eu rejeito nomear a luta de revolucionária ou progressista. Nas próximas páginas do presente texto, essa minha posição será esclarecida com maior exatidão. A Young Struggle (YS) fala de uma revolução em Rojava/Nordeste da Síria: “A Revolução em Rojava é uma revolução nacional-democrática, que rompeu a herança colonial do colonialismo sírio e, com isso, conquistou a libertação nacional” [14]. A Young Struggle (YS), exatamente como o Partido Comunista Marxista-Leninista Turco (MLKP), descreve a Síria como colonialista e parte, portanto, do pressuposto de uma luta anticolonial. Se os territórios curdos eram uma colônia sob Assad, o MLKP e a YS teriam invariavelmente que explicar por que hoje eles não são uma colônia dos Estados Unidos. Acontece que os curdos não foram libertados, mas, antes, tornados dependentes de um outro poder, na verdade, de outra potência, muito mais poderosa que a Síria. Por isso, a luta não é nenhuma revolução nacional-democrática. Mas será que se pode falar de algum outro tipo de revolução? Algumas das organizações inicialmente mencionadas descrevem a luta do confederalismo democrático como uma “revolução das mulheres”. Tanto pelos motivos acima, como também porque nenhuma das relações de propriedade foram tocadas, rejeito o conceito nesse contexto. Sua aplicação leva, sob minha ótica, a uma confusão ideológica entre o conceito de revolução e um aburguesamento [Verbürgelichung] relativo à posição da libertação das mulheres. Em sua obra principal, o próprio PKK escreve que é uma organização reformista: “O ponto principal da programática política deveria ser, pois, uma reforma que garanta uma prontidão do Estado à democracia para além de promessas vazias”. Dos motivos aqui enumerados resulta minha posição de que o PKK e suas organizações próximas não são revolucionárias.

Além do fato de que o PYD não é revolucionário, deve-se observar também que eles tampouco se posicionam em favor de uma livre convivência com todos os povos, como frequentemente é apresentado na esquerda alemã: “Um dia todos os árabes que foram trazidos para territórios curdos terão que ser expulsos”, afirmou o então copresidente do PYD, Salih Muslim, em 2013, em uma entrevista ao Rudaw [15]. O PYD não só se pronuncia contra os árabes no Nordeste da Síria/Rojava, como Öcalan chega ao ponto de se dizer contrário a emigrações dos curdos. Eles aparentemente veem Rojava/Nordeste da Síria como um território que deveria ser habitado apenas, ou, pelo menos, majoritariamente, por curdos. Öcalan vai ainda mais longe, e chega a culpar os imigrantes curdos pelo racismo na Alemanha: “Infelizmente, o desenvolvido país da Alemanha acaba sendo um pouco manchado em razão do subdesenvolvimento do nosso povo. Isso me entristece. A Alemanha não deveria poder ser infligida por essa ruindade. Existem tantas pessoas curdas sem trabalho. Eles vieram de vilas destruídas e foram enviados de maneira ilegal à Alemanha. Isso não deveria ter ocorrido. Isso também foi um crime. Eles foram acurralados em bairros miseráveis na periferia. Por isso o racismo está voltando a se expandir. Por sinal, justificadamente! Eu acredito que as direitas também têm razão. Falo com frequência que, neste ponto, não penso como um social-democrata. As direitas têm razão” [16]. Já em 1997 ele disse isso, logo, antes de sua prisão. Nesse contexto, deve-se destacar que, nos anos 90, havia uma onda fascista de progroms contra refugiados e imigrantes na Alemanha!

Para poder tratar com mais exatidão as questões do direito à autodeterminação e do caráter não-revolucionário do PKK, é preciso que vejamos a estratégia dos Estados Unidos e a posição do PKK em relação a ela, tanto na teoria, quanto em sua práxis.

  1. Os Estados Unidos e a Ásia Ocidental

Após a queda da União Soviética, os Estados Unidos desenvolveram o Plano do Grande Oriente Médio (GMEP). Com essa nova orientação estratégica, eles buscavam conseguir acesso, na Ásia Ocidental, a matérias-primas, rotas de comércio e mercados consumidores. Steven A. Cook, autor do Council on Foreign Relations, um influente think-tank estadunidense, escreveu, em 2018, que os três elementos centrais da estratégia do país para a Ásia Ocidental eram a guerra contra o terrorismo, a contenção do Irã e o apoio a Israel. Ele escreveu ainda: “O YPG foi um parceiro efetivo na luta contra o ISIS – ainda que eles tenham ligações com o PKK, que promove há décadas uma resistência contra a Turquia– e torna-se, assim, parte da presença de longo prazo dos Estados Unidos na Síria, para a contenção e o combate ao Irã” [17].

O Partido Comunista Marxista-Leninista Turco (MLKP) escreveu: “Os Estados Unidos não desejam apenas derrotar o ISIS, mas também cercar o Irã, limitar a influência russa e apoiar Israel. Por isso, desejam manter sua presença na Síria e a única força sobre a qual podem se apoiar é a FDS [Forças Democrático-Sírias, união militar sob o comando do YPG]” [7]. Se vocês compreendem o que os Estados Unidos desejam, como vocês podem ajudá-los a conseguir isso? E como vocês podem afirmar, na mesma entrevista, que essa ajuda seria apenas tática e militar?

Jürgen Wagner, membro da direção do “Centro de Informação sobre a Militarização”, esclarece por que a região tem uma grande relevância para os EUA: “A combinação de sua relevância econômica e militar faz do petróleo uma matéria-prima de relevância estratégica, uma vez que o controle sobre a maioria do petróleo das reservas internacionais dá ao controlador inacreditável vantagem e força de convencimento em relação a seus potenciais rivais” [18]. À medida que as reservas de petróleo são exauridas, a demanda por ele aumenta – e, com ela, a luta por seu controle. Quando, por exemplo, os países da OPEP quiseram reduzir a taxa de produção, a reação foi um aumento da exploração de petróleo em outros países, para conseguir pressionar justamente os países da OPEP. Esses estavam, havia muito, obrigados a vender petróleo a baixos preços. Quando as reservas de petróleo dos países de fora da OPEP foram acabando, os membros da organização aproveitaram a oportunidade e subiram o preço do petróleo. Isso levou os Estados Unidos a estabelecerem o objetivo estratégico de conseguir controle sobre essas regiões ricas em petróleo. Wagner esclarece que os Estados Unidos já desejavam, há muito tempo, o surgimento de um Estado curdo como opção para uma nova divisão da Ásia Ocidental, e produziram um mapa correspondente a como a região deveria parecer. Esse fato deve ser, inevitavelmente, levado em consideração na avaliação da luta curda.

Para os Estados Unidos não se trata apenas de possuir a maior quantidade possível de petróleo, mas também de garantir que toda transação de petróleo continue a ser paga em dólar. Saddam Hussein anunciou, em 2000, a transição para o euro, no que foi seguido pela Arábia Saudita e pelo Irã. Dessa forma, nações importadoras de petróleo não precisariam mais de reservas de dólares para comprar o produto. Sua demanda por dólar despencaria e, com isso, também o valor do dólar. A mera especulação sobre a tomada desse passo valeu como declaração de guerra aos Estados Unidos [18]. Seria possível mencionar, nesse ponto, outros Estados ricos em petróleo e sua relação com os Estados Unidos, para deixar ainda mais claro a extrema importância dessa matéria-prima para o país.

Por esses motivos, é central para os Estados Unidos controlar regiões que disponham de petróleo. Os grupos curdos que administram o Norte do Iraque viam os Estados Unidos como aliados já em 1991. Ao lado dos EUA, o Estado de Israel também apoia a “autonomia” curda no Norte do Iraque: “Quando se olha o Irã a Oeste, quando se observa a instabilidade da região, um Estado curdo unitário e estável no meio do pântano [isto é, no meio dos Estados árabes, do Irã e da Turquia] não é má ideia” [19], disse Golan, representante-chefe das Forças Armadas de Israel. “Uma lista de altos funcionários israelenses, incluindo o falecido Presidente Shimon Peres e o Ministro de Defesa Avigdor Lieberman, expressaram seu apoio à independência curda, em anos anteriores” [19].

Parte do PKK deseja um relacionamento positivo semelhante com Israel: Murat Karayilan é comandante do HPG, braço militar do PKK, e membro do Comitê Executivo do partido. Em 2020, ele foi entrevistado pelo Jerusalem Post, onde se lê: “Enquanto comandante de uma prolongada insurreição, ele fala pouco com jornalistas. Mas, em diálogo com esta revista, esse experiente combatente explica sua preferência por atividades pacíficas para consecução dos direitos curdos: relações entre os Estados Unidos e o PKK” [20]. Toda a entrevista é repleta de declarações pró-imperialistas e de falsas esperanças com Israel e com os Estados Unidos. Anos antes, ele já havia se expressado positivamente acerca do Estado israelense, em uma entrevista para o Haaretz: “Você [o jornalista] sabe que isso é realmente um grande segredo pra mim. Pois eu, mais que qualquer outro no mundo, esperaria que Israel nos compreendesse e se identificasse conosco. […] Nos anos 60 e 70, Israel deixou de ajudar os curdos. Nós admiramos vocês. Mas desde os anos 80, desde que vocês fortaleceram sua cooperação militar com a Turquia, vocês contemplaram a decisão de pertencer àqueles que apoiam sistematicamente nossa opressão e nosso extermínio” [21]. Ele pede, portanto, que o Estado de Israel apoie o PKK. Apesar do papel do Estado israelense, ele deposita esperanças, assim como no caso dos Estados Unidos, em uma produtiva cooperação. Isso torna o PKK ainda mais interessante para Israel e para os Estados Unidos.

Vários adeptos do poder de ocupação sionista apoiam o PKK desde 2014: inclusive grande parte dos chamados “antialemães”. É problemático que parte dos comunistas alemães entre conscientemente em um front com essas pessoas, em vez de se ocupar profundamente com a questão curda e de se distinguir com clareza dos “antialemães”.

  1. Como os EUA deturpam o direito à autodeterminação dos povos

Os Estados Unidos são o país mais militarmente poderoso do mundo. Eles buscam trazer, para si e para sua política, organizações e partidos locais por meio de interferências nas diferentes regiões. Eles fazem isso também no sentido da suposta defesa do direito à autodeterminação dos povos e, assim, deturpam-no. Por isso seria um erro fatal reconhecer esse direito como sendo válido universalmente, como fazem o Young Struggle (YS) e o Partido Comunista Marxista-Leninista Turco (MLKP).

Quando um país fica no caminho dos Estados Unidos ou da União Europeia, eles procuram linhas divisivas dentro desse país por meio das quais seja possível demoli-lo por dentro. A Iugoslávia e a questão do Kosovo são um exemplo recente; outros exemplos seriam os nacionalistas bálticos, ucranianos e caucasianos na União Soviética e, de certa forma, na Rússia de hoje; os separatistas no Tibet e Xinjiang; o Partido Democrático do Curdistão (KDP) e a União Patriótica do Curdistão (PUK) no norte do Iraque; a minoria branca na Bolívia, e assim por diante. Isso é uma estratégia declarada da política externa americana, assim como antigas potências coloniais exploraram, sabidamente, conflitos internos para disrupção das colônias. Para isso, conflitos religiosos e étnicos mostram-se especialmente úteis. Ao lado da linha divisória sunita-xiita no Iraque, a questão curda também tem seu papel na Síria e no Iraque, tendo sido (e sendo) explorado pelos Estados Unidos para gerar divisionismos nesses países. O resultado da ação dos Estados Unidos na Ásia Ocidental inclui guerras civis que duram décadas, milhões de mortos e refugiados, e relações entre grupos da população local duradouramente envenenadas – mesmo quando os Estados Unidos fracassam em atingir seus próprios objetivos. Decidir, em uma situação dessas, “explorar” a estratégia do imperialismo dos EUA para conseguir algum espaço de manobra – como fazem o PYD/YPG/FDS – é fatal. Isso não é do interesse do povo curdo e é uma traição às lutas de libertação travadas por outros povos, com os quais de fato se vive e ao lado dos quais se deveria lutar. Os árabes também lutam por libertação na região: de um lado, do sionismo; de outro, das ocupações e guerras de intervenção dos Estados Unidos e de seus aliados. Uma libertação disso só pode ocorrer de forma conjunta.

  1. PKK e os EUA: o PKK é pró-imperialista?

5.1. Ideologicamente

No curso da mudança de paradigma do PKK, eles alteraram não apenas sua ideologia, do marxismo-leninismo para o confederalismo democrático, mas também – o que é muito mais importante – sua posição em relação ao imperialismo estadunidense e da União Europeia. A seguir, deve ser demonstrado por que o PKK deve ser classificado como pró-imperialista.

Já em meados dos anos 90, o presidente do PKK, Öcalan, afirmava em reuniões do PKK que o socialismo não funcionaria e seria contra o interesse da população, e que os Estados Unidos representariam um avanço: “Para nós não é possível ser comunista. Por que a União Soviética colapsou e os Estados Unidos não? Porque o governo no comunismo era tudo, e o homem, nada. Os Estados Unidos representam desenvolvimento” [22]. Em 2011, Öcalan escreveu em sua brochura “Nação Democrática”, que via também a União Europeia como modelo: “Depois de mais de trezentos anos de experiência com Estados-nacionais, os países da União Europeia aceitaram que a autonomia democrática é o melhor modelo e solução para os Estados-nação em relação a seus problemas regionais, nacionais e de minorias” [8].

A camarada Klara Bina, em sua “contribuição ao debate” [23], já adentrou a questão do posicionamento em relação aos Estados Unidos a partir da “obra principal” do PKK [“Para além do Estado, Poder e Violência”], tendo citado alguns de seus trechos. Nessa obra, o PKK posiciona-se a favor do Plano do Grande Oriente Médio (GMEP). Como esse é um ponto central da demonstração do posicionamento pró-imperialista e anticomunista do PKK, cito também alguns trechos do livro:

“Com esse modelo [GMEP], busca-se resolver os problemas e conflitos tornados crônicos (Israel-Palestina, Curdos-Arábes, Turquia, Irã), ao mesmo tempo que liberta o tecido social da pinça do despotismo, evitando, assim, novas explosões. Trata-se de uma espécie de Plano Marshall adaptado à região, assim como ele foi outrora adaptado para a Europa. Quando a região é muito importante para o sistema – e esse é o caso – e, ao mesmo tempo, ela atravessa uma fase de caos, então um projeto com esses objetivos é necessário e realista. Ele chega, inclusive, muito atrasado. […] Os problemas mais importantes de médio-prazo são as relações árabe-israelenses, curdo-árabes, curdo-iranianas e curdo-turcas, que possuem, todas, uma longa pré-história. As preocupações da ONU, da OTAN, da Coalização e da União Europeia vão contribuir para que esses problemas sejam resolvidos mais cedo. […] Israel possui uma democracia bastante estável. […] O antigo totalitarimo fascista ou sua versão real-socialista podem talvez ser consideradas como superadas. […] A Europa exerceu, em grande medida em nome de toda a humanidade, uma autocrítica acerca do tema do Estado e da democracia […]. Uma Turquia, que se alicerça no direito europeu, vai se tornar um garante para a paz. Tudo isso provaria que a Europa, que surgiu como autocrítica a um passado recheado de guerras e que valoriza a paz e os direitos humanos, é um bastião inviolável do direito e da democracia”.

Em toda a obra o PKK se posiciona positivamente em relação aos Estados Unidos, a União Europeia e Israel. Ao mesmo tempo, descrevem o socialismo-real como uma forma de fascismo, uma afirmação que deve ser avaliada como abertamente anticomunista. Em vez de querer lutar por uma alternativa ao imperialismo, eles afirmam claramente que se orientam pelos Estados ocidentais dominantes. Por esse motivo, o PKK deve ser categorizado, no campo ideológico, como pró-imperialista.

5.2. Militarmente

Não é nenhuma coincidência, decisão espontânea ou necessidade militar que, na luta contra o ISIS, acabasse-se em uma cooperação militar com os Estados Unidos, com diversas bases militares estadunidenses em territórios controlados pelo PKK/PYD. Em relação a isso, não se pode deixar de observar a metamorfose do PKK, que tinha necessariamente que conduzir a uma cooperação com os Estados Unidos, uma vez que o PKK se posicionava positivamente em relação a eles há 20 anos (cerca de 20 anos se passaram entre as declarações nos congressos do PKK até a cooperação militar). Os comunistas alemães reduzem a cooperação entre o PKK e os Estados Unidos ao campo militar, relativizando-a como “necessidade militar”. O presente escrito deve refutar essa visão e apresenta, a seguir, algumas citações de porta-vozes das Forças Democráticas Sírias (FDS) que refutam, elas próprias, a tese dos comunistas alemães.

O porta-voz das Forças Democráticas Sírias (FDS), Talal Silo, afirmou, em entrevista à Reuters de 2017, o seguinte sobre os Estados Unidos: “Eles têm uma política estratégica para as próximas décadas. Vai haver acordos de longo prazo, no campo militar, econômico e político, entre a liderança dos territórios do norte (da Síria)… e o governo dos Estados Unidos”. De acordo com a Reuters, ele sugeriu que o Nordeste da Síria poderia se tornar uma nova base para as forças armadas dos Estados Unidos [24]. O site South Front, que entrevistou Silo já em 2006, escreveu: “Em uma entrevista exclusiva com Lifenews, Silo afirmou que a aliança com os Estados Unidos tem uma relevância estratégica para as FDS. Ele também destacou que os Estados Unidos e a coalizão internacional liderada por eles tomam decisões no campo estratégico e tático que devem ser seguidas pelas FDS. Por exemplo: uma cooperação com o Exército Árabe Sírio ou com os russos deve ser evitado e o ISIS não deve ser atacado sem um “sinal” dos Estados Unidos. “Nós não nos uniremos com o exército sírio contra o ISIS, pois nossas forças só operam com as forças da coalizão internacional liderada pelos Estados Unidos. Nós somos parceiros dos Estados Unidos e da Coalizão. Eles tomam as decisões. Não pode haver coordenação entre nós e os russos, porque nós temos, primacialmente, uma relação estratégica com os Estados Unidos e com a coalizão por eles liderada” [25].

E o porta-voz das FDS não é um caso único: para o PKK e para suas organizações próximas, a cooperação com os Estados Unidos não é uma questão de necessidade militar, mas, antes, uma questão político-ideológica. Sobre isso, pode-se observar também as declarações de Sipan Hemo, comandante-em-chefe do YPG, para a Rudaw: “Se a América e o Ocidente desejam realmente a democracia, eles devem cultivar uma relação próxima e sólida com os curdos. Solucionar a questão curda coloca as potências globais em uma posição melhor e mais forte, tanto em Rojava, como também no conjunto do Oriente Médio” [26]. Aldar Khalil, membro do Comitê Executivo de Coordenação do Movimento por uma Sociedade Democrática (TEV-DEM), fala abertamente com um órgão reacionário do establishment da política externa dos Estados Unidos e deixa claro que ele também tem orientação pró-imperialista. Ele fala por todos os curdos da Síria e praticamente pede que os Estados Unidos cooperem com ele: “Os curdos na Síria são pró-democráticos e pró-americanos. Eles procuram uma relação dinâmica e de longo prazo com os Estados Unidos – em especial com a nova administração [referência à então futura posse de Trump] – a qual representa um aliado indispensável na luta contra o ISIS. Os curdos na Síria são o melhor amigo e parceiro para a estabilidade política e econômica da região. […] O islamismo radical é uma ameaça a todo o mundo. Nossos homens e mulheres que lutam no front estão preparados e determinados a se unir com a América contra o inimigo comum. E nós estamos animados com a força e profundidade das relações com os Estados Unidos – a melhor esperança para a florescente democracia em Rojava. Nós estamos animados para construir e consolidar nossa amizade com a próxima administração – para o bem da América e dos valores liberais e democráticos que ela representa” [27].

Nesse ponto relembramos mais uma vez um trecho da entrevista do Partido Comunista Marxista-Leninista da Turquia: “Para os dois lados, essa aliança foi tático-militar. Em nenhum momento essa aliança assumiu um caráter político. Assim, a administração autônoma da Síria, que controla um terço da Síria, não foi convidada uma única vez para as Conferências de Genebra” [7]. A suposta comprovação dessa tese – de que a aliança é puramente tática, e não política – seria que o YPD não possui direito à voz. Mas isso não comprova a tese, apenas mostra que sua tese é tão fraca quando o poder de negociação que o YPD possui.

5.3. Economicamente

Em 2020, a relação [com os Estados Unidos] foi, consequentemente, tão longe, que se chegou ao ponto de se assinar um contrato de venda de petróleo com prazo de 25 anos [28]. Agora, enormes quantidades de petróleo são exportadas de Rojava/Nordeste da Síria para os Estados Unidos. Pelo menos a partir desse contrato não se pode mais falar de uma cooperação de curto prazo ou puramente militar. Os Estados Unidos queriam petróleo e conseguiram petróleo: e nós temos a mudança de paradigma do PKK e a negociação do YPD para agradecer por isso. Isso não é revolucionário, e sim uma tentativa de cair nas boas graças do imperialismo.

Ao ler, em 2017, uma entrevista no Jungen Welt [Mundo Jovem], eu acreditei inicialmente em seu conteúdo [29]: Talal Cudi, o Coordenador Econômico no Nordeste da Síria/Rojava, falava que o petróleo local não seria exportado, e ficaria o máximo de tempo possível completamente dentro da terra. Isso se provou falso. Assim, para mim, é no mínimo questionável até que ponto se pode falar de um “autogoverno”. Quem tomou a decisão de firmar esse contrato de venda de petróleo e no interesse de quem? Isso é uma democracia de base, no sentido de todos os povos, religiões e gêneros da região – como é apresentado normalmente na esquerda alemã – ou a liderança do YPD decidiu, seguindo seu caráter pró-imperialista, firmar esse contrato? Já em 2014, Cemil Bayik – copresidente da União das Comunidades do Curdistão (KCK) – falou à ANF que os recursos pertencem ao conjunto da sociedade e, portanto, o conjunto da sociedade deveria decidir sobre eles [10]. Isso soa bastante à democracia de base, mas não o é realmente.

Em resumo, isso significa que o PKK/PYD cultiva e quer cultivar, em vários setores, uma relação próxima e de longo prazo com os Estados Unidos. Eles recebem o petróleo, tão importante para os Estados Unidos, do próprio PYD. Esse fato representa a ponta do iceberg da cooperação do PKK/YPD e é prova de seu caráter pró-imperialista. Esse relacionamento é deletério para o povo curdo, uma vez que ele fica submetido aos Estados Unidos, e é útil para os interesses estratégicos dos Estados Unidos. Com isso, eles se afastam do socialismo, em vez de se aproximar dele.

  1. Aliados alternativos para o PKK

É frequentemente afirmado em discussões que o PKK/PYD/YPG se encontrava, em 2014, quando do massacre em Kobanî, em uma situação de emergência e precisava, assim, de um parceiro militar com urgência, para o qual o único candidato seriam os EUA.

Para poder seguir essa argumentação, é preciso primeiramente aceitar que, caso não houvesse ocorrido a transformação do PKK dos anos 90, nem a aproximação com os EUA, nem a obra teórica principal do PKK teriam, tampouco, existido. Pois tudo isso antecedeu a cooperação militar.

Qual seria então essa constelação de alianças alternativas? Primeiro, alguns apontamentos sobre a relação do governo sírio com os curdos e com o PKK: os curdos na Síria são oprimidos há séculos, seus direitos culturais e civis são negados. A utilização de sua língua, a comemoração de feriados nacionais etc, eram proibidos pelos governos de Hafiz Al-Assad e Bashar Al-Assad, ao mesmo tempo em que seu direito à nacionalidade e outros direitos correlatos eram negados ou esvaziados. Contudo, o PKK cooperou com Hafiz Al-Assad. Assad buscava, com isso, enfraquecer a Turquia, enquanto o PKK ganhava um local de refúgio, além de um caminho para o Líbano. Em 1979, Öcalan se estabeleceu no Líbano e membros do PKK foram militarmente formados ali, por um longo tempo, pelos palestinos: o caminho do PKK era traçado da Turquia, pela Síria, para o Líbano. Tanto Assad quanto o PKK auferiam vantagens nesse relacionamento, mas a situação dos curdos na Síria não melhorava de forma significativa. Em 1999, a Turquia colocou pressão sobre a Síria, pois desejavam prender Öcalan. Então, sob ordem de Assad, Öcalan deixou a Síria. Deve-se reter, em resumo, que existia um pacto entre o PKK e Assad.

Depois de o PKK manter, por 20 anos, uma relação relativamente boa com Hafiz Al-Assad, eles [isto é, o PYD] poderiam ter negociado com Bashar Al-Assad a coordenação da luta contra o ISIS, em 2014. A história pregressa aqui descrita não conduz necessariamente a uma cooperação produtiva entre eles, mas esclarece que uma cooperação com o presidente sírio, do ponto de vista do PKK, não representava um “no-go” absoluto. As negociações hipotéticas entre PKK/PYD e Assad, em 2014, deveriam ter como objetivo a melhoria da situação dos curdos e a abolição da discriminação, sob o fundamento de se comprometer com a unidade territorial da Síria. Uma luta temporária com o governo sírio contra o ISIS sob a exigência de que o governo reconhecesse aos curdos seus direitos no país seria muito mais interessante para os sírios do que uma submissão aos Estados Unidos. Dessa maneira, eles não colocariam os EUA em uma situação tão favorável na balança de poder, além de não colaborar com os planos estratégicos dos EUA para a região: antes, iriam atrapalhá-los. Mas o PKK/PYD já havia se tornado, muito antes de 2014, uma organização que se relaciona positivamente com o imperialismo ocidental. Disso decorreram, necessariamente, conflitos entre eles e o governo sírio: principalmente da própria intenção do PKK/YPD de não entrar em alianças com Assad, mas, sim, com os Estados Unidos.

Em resumo, deve-se notar que teria havido um outro parceiro para o PYD/PKK, que eles poderiam ter escolhido, caso eles não fossem pró-imperialistas. Dessa forma, não se pode falar, em referência a relação do PYD com os EUA, de uma falta de alternativa militar.

Em relação à alternativa de aliança proposta aqui, deve-se acentuar que o governo sírio não é “objetivamente anti-imperialista”. Se o PKK fosse uma organização revolucionária, a aliança na luta contra o ISIS deveria ter um caráter tático. Deveria tratar-se de garantir a unidade territorial e a soberania da Síria, de lutar contra a discriminação dos curdos e repelir os interesses imperialistas. O caráter tático significa, entre outras coisas, que os curdos não se distanciarim de seus objetivos estratégicos, mas, antes, os promoveriam. Uma expulsão dos Estados Unidos da Ásia Ocidental e uma batalha contra o ISIS por meio de uma luta conjunta de curdos e árabes fariam as condições para uma revolução socialista se aproximarem mais do que isso que é feito atualmente pelo PKK. Infelizmente, uma revolução socialista não é, em absoluto, o objetivo estratégico do PKK.

  1. O Partido Comunista Turco (TKP) sobre o Imperialismo e sobre a Ásia Ocidental

No juízo acerca da Síria também deve ser observado que eles cooperam com o governo russo, a qual não é nenhuma força de paz. Também o Estado chinês, que coopera com a Rússia, tem um papel crescentemente relevante na Ásia Ocidental. Como eu disse que consideraria o governo sírio como possível aliado tático (!) para o PKK (hipoteticamente, em uma situação em que o PKK não fosse pró-imperialista), poderiam levantar contra mim a objeção de que eu teria uma relação positiva com Assad ou Putin. Essa objeção, contudo, não é muito refletida e é marcada, provavelmente, por uma incompreensão acerca de cooperação tática e imperialismo. Comunistas não podem cometer o erro de escolher um dentre os blocos imperialistas.

A seguir, farei referência ao TKP, pois eles são mais importantes para a luta de classes na Turquia, assim como são, em conteúdo, melhores. Em seu site, o TKP escreve com muita clareza acerca de sua posição em relação ao imperialismo: “Nem a Rússia, nem a China podem ser a melhor alternativa em comparação com os Estados Unidos. A alternativa ao capitalismo não pode ser o capitalismo. A alternativa para um centro de poder imperialista não pode ser um outro centro novo de poder. A solução dessa situação encontra-se na ditadura do proletariado” [30].

Pois não é apenas os Estados Unidos que lutam na Ásia Ocidental por interesses econômicos. A China e a Rússia também o fazem, como o TKP descreveu em suas 61 teses sobre o imperialismo, em 2017: “Em sua intervenção na Guerra da Síria, a Rússia ganhou legitimidade para ‘responder’ a uma intervenção imperialista e ao massacre de grupos islamistas contrarrevolucionários e islâmicos. Esses motivos da Rússia não têm, contudo, nenhum outro significado além da busca de vantagens econômicas e políticas de Moscou em sua intervenção na Síria. As características ideológicas e classistas do domínio de Putin não são, de nenhuma maneira, compatíveis com a proteção do bem-estar dos povos sírios ou com um comportamento ético na política internacional. Assim, pode-se falar que a Rússia tomou uma decisão racional para proteger seus interesses e para conseguir uma nova posição no crescente conflito com o bloco imperialista liderado pelos EUA. […]

A Rússia expõe motivos definitivamente imperialistas em sua intervenção na Síria. O domínio de Putin segue uma política refinada e concertada para ligar a Síria à Rússia tanto no campo militar, quanto no campo diplomático, além de colocar Assad sob pressão em algumas questões. Especialmente chamativo é o fato de que algumas mudanças constitucionais em relação à liberalização econômica do país pertencem a essas imposições. Por fim, a Rússia se vale da Síria como meio para obter certa barganha com os EUA. Nesse sentido, a política síria em relação à Rússia deve ser vista não só como luta por hegemonia entre a Rússia e os Estados Unidos, mas também como sinal de que a Rússia não está submetida a nenhum cerco político ou econômico pelos Estados Unidos ou por outros países imperialistas que se orientem contra os russos. […]

Com uma alta taxa de crescimento há 30 anos, a República Popular da China ultrapassou os Estados Unidos em 2015, em renda nacional bruta e em participação na produção mundial. A economia chinesa utiliza 20% de todo o petróleo terrestre e 40% das minas do mundo. Sob essas condições, a China está obrigada a garantir sua participação no mercado mundial e a controlar o fluxo de matérias-primas para, assim, fortalecer sua posição na concorrência imperialista” [31].

Isso, que o TKP descrevia já há anos, fica ainda mais claro atualmente: em 22/7/2021, o Rudaw informou que a China importa quase a metade do petróleo iraquiano [32]. Por esse motivo é que eles são ativos na Ásia Ocidental.

Como o PKK se decidiu por uma orientação pró-EUA na década de 90 e apenas consolidou ainda mais essa orientação ao longo do tempo, o foco de uma análise sobre o PKK deve ser colocado sobre os EUA. Nós temos que nos perguntar o que aconteceria se existisse um Estado curdo pertencente ou aliado à OTAN. O que isso significaria para esse Estado, para a região e para a OTAN? Vejamos o que o TKP diz sobre a Turquia:

“A Turquia, que se submeteu aos planos do imperialismo ocidental e se tornou parte destes, está em desavença com todos os povos e nações de sua região, é inclusive seu inimigo. O imperialismo paralisou a indústria e a agricultura turcas. A indústria de armas e de defesa estão submetidas aos monopólios de poder estrangeiros. […]

Os Estados Unidos, que se veem como ponto alto da democracia, são os principais culpados pela maioria das calamidades e guerras no mundo. A Turquia jamais atingirá a democracia e a Liberdade por meio dos Estados Unidos. Nosso passado recente, marcado por golpes militares, é a prova disso. A primeira condição para a liberdade e independência é a tomada de posição contra os Estados Unidos e o Ocidente. […]

Como membro da OTAN, a Turquia submeteu suas forças armadas ao comando desta organização. Oficiais de alta patente da Turquia foram submetidos às ordens de oficiais de patente mais baixa dos Estados Unidos. As forças armadas turcas tornaram-se inteiramente ligadas a OTAN e dependentes dela.

Antes da acessão da Turquia à OTAN, foram firmados diversos acordos com os Estados Unidos nos setores militar, econômico e político. Como resultado, surgiram bases militares na Turquia, que são diretamente ligadas à OTAN e ao Pentágono do Departamento de Defesa estadunidense.

A Turquia ocupa hoje a posição de mercenário. As bases e campos militares continuam existindo na Turquia. Nelas, encontram-se armas nucleares sob o controle de oficiais e soldados estadunidenses. Essas bases militares são utilizadas pelos Estados Unidos contra países vizinhos à Turquia. A segurança do nosso país também fica, assim, ameaçada, e a soberania da Turquia fica em grande medida comprometida” [30].

Com o exemplo da influência dos Estados Unidos sobre o Estado turco deveria ficar claro: não tem como ser do interesse curdo a luta por um Estado curdo próximo à OTAN. Chega a ser irrealista ter um Estado curdo na OTAN enquanto a Turquia é membro da OTAN. Porém, é realista existir um território curdo autônomo ou um Estado curdo que fique próximo da OTAN, como já ocorre há tempos no caso do Norte do Iraque e, há alguns anos, no caso do Nordeste da Síria. Então os comunistas, em vez de apoiar ou tolerar uma aproximação com a OTAN, devem lutar contra ela incondicionalmente!

O Partido Comunista Marxista-Leninista Turco (MLKP) reconhece, na entrevista já mencionada, esse perigo: “Em referência à relação com a administração autônoma de Rojava, pode-se dizer que os Estados Unidos desejam esvaziá-la e transformar Rojava em Başûr” [7]. Por Bashur/Sul do Curdistão quer-se dizer a região autônoma do Norte do Iraque, dominada pelos Estados Unidos. Rojava/Curdistão Ocidental/Nordeste da Síria não corre nem o perigo de se transformar em uma Bashur: isso já ocorreu. E causa disso foi, como descrito, a metamorfose ideológica do PKK em uma organização pró-imperialista.

  1. Comparação Palestina-Curdistão

Como muitos comunistas na Alemanha comparam, ou mesmo equiparam, o movimento do PKK com a luta de libertação palestina, vou me ocupar concretamente com o tema. Já fiz referência, acima, às posições dos clássicos em relação ao direito à autodeterminação. O direito à autodeterminação não é válido de maneira absoluta, ele depende, antes, das condições concretas.

Palestina: Existe uma “autonomia” administrativa palestina, em cujo topo está a OLP, liderada pelo Fatah. A OLP assume um papel de colaborador, no sentido da manutenção e administração da ocupação. Ao mesmo tempo, existem forças palestinas que, apesar da existência da autonomia administrativa, avançam a luta de libertação e se posicionam, com isso, diretamente em contraposição a Israel e aos Estados Unidos.

Curdistão: Os Estados Unidos desejam um ou mais Estados curdos ou regiões autônomas que sejam dominadas por eles. As organizações curdas comprometem-se há décadas com esse objetivo.

Assim, existem diversos motivos pelos quais se deve posicionar a favor de um Estado palestino, mas não de um Estado curdo, bem como existem motivos pelos quais não se devem tratar as duas lutas nacionais como se fossem equivalentes: a posição das forças principais dos dois povos em relação ao imperialismo é completamente diferente. Enquanto o PKK, a União Patriótica do Curdistão (PUK) e o Partido Democrático Curdo (PDK) estão satisfeitos com sua “autonomia” submetida aos Estados Unidos, dão boas-vindas às bases militares norte-americanas, vendem petróleo aos EUA e assim por diante, as organizações palestinas lutam contra o Estado de Israel, não estão satisfeitas com a “autonomia” concedida a elas e têm divergências fundamentais com os Estados Unidos.

Não é do interesse dos povos da Ásia Ocidental que todo povo tenha, incondicionalmente, um Estado próprio. A interpretação e aplicação errôneas do direito à autodeterminação dos povos conduz à popular comparação entre Palestina e Curdistão no campo das esquerdas. Causa disso são tanto as análises superficiais, como a concordância confortável com a opinião majoritária na esquerda.

A essa altura, eu gostaria de esclarecer mais um ponto. Antes que alguns leitores achem que eu aprovaria uma direção palestina que fosse antissemita, reacionária, radical-islâmica ou mesmo fascista: isso só podem achar aqueles que seguem e confiam na euforia burguesa contra os palestinos. Como existem comunistas na Alemanha que passam a impressão de fazer justamente isso, eu vou tratar dessa hipótese rapidamente – isso é relevante no contexto da comparação Palestina-Curdistão.

A Construção Vermelha (RA: Rote Aufbau) escreveu: “Muçulmanos nunca poderão ser parceiros confiáveis, pois sua visão de mundo é reacionária. Quando eles tiverem a oportunidade, irão nos massacrar. Assim, nós não podemos, enquanto comunistas, ter uma relação positiva com eles. Eles têm, sobretudo, um interesse em travar o conflito em um campo religioso, o que também está fundado em seu antissemitismo religioso. É dessa maneira que eles podem fazer propaganda de si como o maior defensor de sua própria fé. Sob essa perspectiva, o Hamas ataca indiscriminadamente o conjunto do povo israelense com seus foguetes” [33].

A Construção Comunista (KA: Kommunistische Aufbau): “A rejeição do sionismo não deve nos levar a seguir outras frações imperialistas e as forças reacionárias lideradas por elas, como o Hamas ou o Fatah. Por isso devemos lutar, ferozmente, também contra posições islâmico-fundamentalistas, antissemitas e fascistas, que circulam na Alemanha acerca da questão na Palestina e em Israel, como, por exemplo, na exigência de uma eliminação do povo israelense, ou na expulsão dos judeus e judias do Oriente Médio” [34]. “Os seguidores do fundamentalismo islâmico não constituem uma luta de resistência anti-imperialisma, mas, sim, um apoio a uma ideologia fascista, que serve às classes dominantes reacionárias locais, divide a classe e luta ofensivamente contra as revolucionárias e os revolucionários. Eles não podem ser aliados – a não ser em situações táticas excepcionais – dos revolucionários” [35].

O Partido Marxista-Leninista da Alemanha [MLPD]: “O MLPD rejeita, por princípio, ao mesmo tempo, as organizações islâmicas fascistas e a “Jihad Islâmica”, bem como forças fundamentalistas e reacionárias como o Hamas, que lança foguetes sobre civis israelenses” [36].

As citações da RA, KA e do MPLD representam, na minha opinião, exemplos de como a situação na Palestina é discutida de maneira indiferenciada e limitada. A Jihad Islâmica e o Hamas são parceiros de muitos anos dos comunistas, na esteira de sua legítima resistência popular: em maio, lançaram foguetes contra Israel juntamente com a Frente Democrática de Libertação Palestina (FDLP) e com a Frente Popular de Libertação Palestina (FPLP) [37, 38]. A FPLP julga essa unidade de ação como uma realização concreta [39]. Acerca do tema, recomendo escutar o podcast da Organização Comunista (KO) sobre a Palestina [40].

Quem define as forças islâmicas como forças antissemitas, fundamentalistas, reacionárias e fascistas deveria definir e esclarecer esses conceitos, e como eles se aplicam em cada caso. O chamado “antissemitismo religioso” também requer um esclarescimento, caso contrário, o conceito coadunará com a ideia de que o Islã seria por princípio antissemita. A Carta de Fundação do Hamas não tem relevância há décadas e o antissemitismo contido nele não tem nada que ver com o Islã [41]. O Hamas tem um novo documento de fundação, em que eles rejeitam o antigo e se afastam do antissemitismo.

Eu faço o apelo para que o conteúdo do que as diferentes forças locais escrevem e fazem seja lido e posto sob escrutínio. Quem não faz isso e se informa exclusivamente pela mídia burguesa, arrisca reproduzir a propaganda burguesa: reduz a resistência palestina ao Hamas e a chama de fundamentalista, reacionária, fascista e antissemita. Isso implica apresentar falsamente a situação local, bem como sua luta. A euforia burguesa de políticos e da mídia contra a solidariedade palestina, em maio, levou à propaganda racista contra muçulmanos e árabes, à interdição de discursos (discursos principalmente sobre antissemitismo, sobre deportações etc, em vez de discursos sobre limpeza étnica e apartheid) e à legitimação ideológica da repressão (ameaça de criminalização do FPLP e da bandeira do Hamas). Os comunistas devem reconhecer e repudiar essa situação, em vez de a fortalecer!

Quem rejeita a unidade da resistência popular palestina (não conto, aqui, o Fatah, tendo em vista sua colaboração com o regime de ocupação) e se contrapõe aos comunistas locais, deve poder justificar essa posição. A FPLP é anti-imperialista, deseja lutar pelo socialismo e tem, na minha opinião, uma política de alianças claramente melhor que a do PKK. Assim, eu caracterizaria a FPLP, em contraste com o PKK, como revolucionária. Para deixar mais ainda mais claro a diferença entre as duas lutas nacionais, eu repasso, com prazer, minhas considerações gerais acerca do direito à autodeterminação dos povos.

  1. Conclusão

As organizações citadas no início – Young Struggle (YS), o Partido Marxista-Leninista Alemão (MLPD), a Perspectiva Comunista (PK) e a Construção Comunista (KA) – encontram forte referência no Partido Comunista Marxista-Leninista turco (MKLP). Nesse ponto, não conheço argumentos mais relevantes do que aqueles levantados por Klara Bina [23] ou por mim mesmo. O presente texto direciona-se a todas as organizações pró-PKK, inclusive àquelas que não foram aqui mencionadas.

No seio de movimentos de libertação nacional, forças não comunistas também merecem solidariedade, contanto que elas se posicionem contrariamente ao imperialismo. Como o PKK e as organizações próximas dele, como o PYD, devem ser definidas como pró-imperialsitas, não cabe dar a elas nossa solidariedade. Nós devemos criticar abertamente suas características e rejeitar as organizações propriamente ditas. A luta do povo curdo contra a discriminação e a opressão deve ser apoiada sempre quando o internacionalismo proletário assim o requerer. Para isso, é necessário um conhecimento exato da condição do povo curdo nas diversas partes da Ásia Ocidental.

O fato de soar contraditório para alguns leitores que o Partido Democrático do Curdistão (KDP) e a União Democrática do Curdistão (PUK), no Curdistão do Sul/Norte do Iraque, e o Partido de Unidão Democrática (PYD), no Curdistão Ocidental/Nordeste da Síria, trabalhem conjuntamente com os Estados Unidos – apesar de que ambas as regiões são sempre atacadas pela Turquia, membro da OTAN – não é prova de que o KDP, PUK ou o PYD sejam anti-imperialistas, mas apenas prova que o imperialismo é cheio de contradições. Mesmo a Turquia e os Estados Unidos estando organizados juntos na OTAN, ambos os Estados têm interesses nacionais, que se contradizem. A OTAN não é um bloco unitário. No Nordeste da Síria/Rojava e no Norte do Iraque/Bashur, por exemplo, é claro que tanto a Turquia, quanto os Estados Unidos, gostariam de ter acesso às matérias-primas, mas as organizações curdas têm posições divergentes sobre cada um destes países.

Mais informações sobre congressos do PKK ou sobre o Plano do Grande Oriente Médio podem ser facilmente pesquisadas pelo leitor. Como mencionado, esse plano é, desde muito, o plano dos Estados Unidos, o qual é apoiado pelo PKK em sua obra principal. A solidariedade ao PKK na esquerda alemã parece ser, desde 2014, um consenso cada vez mais amplo e menos contestado, porque há poucos textos críticos sobre o tema e, então, muitos acreditam tratar-se de coisa boa. A isso se acrescentam falas como aquela do Coordenador Econômico, bem como um amplo silêncio ou relativização do relacionamento do PKK com os EUA. Esse relacionamento é minimizado não só por comunistas na Alemanha, como também por funcionários do PKK, como mostra o exemplo de Riza Altun. Ele escreveu que o PYD/PKK “explora” os EUA, chegando a afirmar que isso seria comparável ao Pacto de Não-Agressão entre o Reich alemão e a União Soviética [42].

Agora, para quem é da opinião de que nós aqui na Europa Central estamos em uma boa situação e não deveríamos nos ocupar em fazer juízos acerca do que ocorre naquela região, mas, ao contrário, deveríamos meramente acreditar nos comunistas locais, afirmo: é claro que devemos levar em conta seus posicionamentos, isso é certo. Contudo, como comunistas, nós devemos questionar tudo criticamente. E eu tentei provar que o Partido Comunista Marxista-Leninista turco (MLKP) está errado em sua interpretação acerca do direito à autodeterminação dos povos. E caso se deseje acreditar nos comunistas locais, por que acreditar justamente no MLKP?  Deve-se observar que lá existem outros partidos comunistas (PCs), que são, sobretudo, consideravelmente mais relevantes e claramente maiores.

A Young Struggle (YS) acusa o Partido Comunista Alemão (DKP), a Organização Comunista (KO) e o Partido Comunista Turco (TKP) de social-chauvinismo. Eles acusam o TKP, ainda, de não serem comunistas. O único argumento da YS deve ser, então, sua própria interpretação errônea acerca do direito à autodeterminação dos povos. Os argumentos dos quais eles partem, comprovados por fontes, seriam do meu maior interesse. Partindo do meu conhecimento atual da situação, considero que o TKP tem uma compreensão melhor do imperialismo e uma melhor abordagem da luta de classes que o MLKP. Enquanto o MLKP se submete a um movimento burguês e pró-imperialista, o TKP visa à organização dos trabalhadores turcos e curdos. Em vez de querer lutar “sem se ou mas” por um Estado curdo, que muito provavelmente será membro da OTAN, o TKP busca realizar uma revolução socialista na Turquia [43]. Uma luta conjunta de trabalhadores turcos e curdos pelo socialismo não é, certamente, simples, entre outros motivos porque há muito racismo anticurdo entre o povo turco. A luta pelo socialismo, porém, nunca é fácil, devendo-se buscar a unidade dos explorados, em vez de se submeter ao imperialismo dos EUA.

Quem ainda for da opinião de que a crítica ao PKK não trata senão de umas duas declarações irrelevantes de Öcalan, as quais ele fez na prisão, deveria pensar no seguinte: e o que ele falava antes da prisão? Por que sua obra é a obra principal do PKK? De que forma isso é convertido em práxis, em bases militares, em contratos de venda de petróleo, etc, etc?

A esquerda alemã deve questionar, em vez de ter preguiça de análises. Nem toda pessoa de esquerda precisa escrever um texto de 20 páginas com 40 notas de rodapé sobre todos os temas. Mas grupos organizados em todo o país, com pretensão de serem marxista-leninistas, devem trabalhar em uma teoria revolucionária e fazer análises com base no socialismo científico – caso contrário, sua pretensão não vai se realizar. Eu mesmo fui, por muito tempo, a favor do “autogoverno” em Rojava/Nordeste da Síria em protestos. Porém, eu ainda não tinha me atentado o suficiente para a posição desse autogoverno com os Estados Unidos, assim como confiava em declarações como aquelas feitas por Talal Cudi. Mas agora tenho um quadro melhor da situação e posso tomar uma decisão melhor. Acreditar na opinião majoritária da esquerda e, nisso, tornar-se também um “preguiçoso de análises”, piora a crise na qual os comunistas se encontram, e que avança sobre muitos outros temas. Com base na posição dos comunistas alemães sobre a questão palestina, já pude mostrar acima as consequências concretas que a “preguiça de análises” tem.

Meu objetivo com esse texto é criticar fortemente, mas com solidariedade, outras organizações, com vistas a estimular uma reflexão e um debate críticos. Se vocês ainda considerarem seu posicionamento como sendo correto, peço para que o justifiquem melhor, tanto em geral, em relação ao direito à autodeterminação, quanto em relação ao colonialismo, ao conceito de revolução, ao imperialismo, à questão curda e à questão palestina. A por mim chamada “preguiça de análises” é uma tentativa de classificar como surgem alguns pontos de vistas – da minha perspectiva – errados. Com isso quero dizer que esses pontos de vista só são defendidos por vocês, porque falta uma análise marxista-leninista extensiva acerca do tema. Porque ou vocês defendem conscientemente um movimento pró-imperialista, ou vocês fazem isso inconscientemente (preguiça de análise), ou o movimento não é pró-imperialista.

Outros ingredientes que, na minha opinião, conduzem também a uma solidariedade com o PKK e fortalecem essa posição são: 1. A quantidade de partidos comunistas turcos e a dificuldade, ligada a isso, de conseguir-se uma visão geral deles e de suas posições; 2. O fato de que o PKK/PYD conduz uma luta armada e não há nada comparável a isso na Alemanha; 3. A não-existência de um partido comunista na Alemanha e a crise do movimento comunista; 4. A falta de reflexão acerca dos próprios pontos de vista.

A Organização Comunista (KO) também não tem análises suficientes acerca de todos os temas. Mas nós almejamos realizar, planejadamente, análises sobre as principais questões. Todos os comunistas deveriam fazê-lo, uma vez que isso é condição para a superação da crise dos comunistas e para a construção de um partido. A posição em relação à questão curda inclui, entre outras coisas, uma posição em relação ao imperialismo, a qual pertence às questões centrais do movimento comunista.

Indepentemente de ser curdo ou não, como marxista-leninista, deve-se chegar à conclusão de que o PKK e o autogoverno em Rojava/Nordeste da Síria não faz por merecer ser apoiado, agindo, ao contrário, no interesse dos Estados Unidos. Não se trata também de uma questão de curto prazo, tática ou meramente militar. E é justamente por ser curdo, que penso que devemos olhar com maior exatidão para o que os diversos atores locais estão fazendo.

Notas:

[1] Kaypakkaya-DieKurdenfrageInDerTuerkei.pdf (bannedthought.net)

[2] Karl Marx – Entwurf eines Vortrages zur irischen Frage, gehalten im Deutschen Bildungsverein für Arbeiter in London am 16. Dezember 1867 (mlwerke.de)

[3] “Neue Rheinische Zeitung” – Der demokratische Panslawismus (mlwerke.de)

[4] Lenin – Die Ergebnisse der Diskussion über die Selbstbestimmung (mlwerke.de)

[5] J.W. Stalin: Grundlagen des Leninismus (Kap.6) (marxists.org)

[6] YS zitiert in ihrer Polemik die Teile von Lenins Standpunkten, die er im Laufe der Diskussion revidierte. Um das zu überprüfen, können seine älteren und neueren Texte zum Thema verglichen werden. Hier die Polemik vn YS: Solidarität mit Rojava (I) – Abschließende Polemiken zum Anfang des Krieges (young-struggle.blogspot.com)

[7]  Exklusives Interview: Die MLKP Antwortet auf Fragen – Young Struggle (young-struggle.org)

[8] DE-Broschüre_4_Demokratische-Nation_2018.pdf (civaka-azad.org)

[9] http://tatortkurdistan.blogsport.de/2014/03/01/gesellschaftsvertrag-fuer-rojava/

[10] https://www.rosalux.de/fileadmin/rls_uploads/pdfs/sonst_publikationen/VSA_Flach_ua_Revolution_in_Rojava_akt_Auflage.pdf

[11] Rojava’s economics and the future of the revolution – Make Rojava Green Again

[12] konfed_DE.indd (freeocalan.org)

[13] Rojava – Demokratische Autonomie oder sozialistische Demokratie? (diefreiheitsliebe.de)

[14] broschc3bcre-selbstverwaltung.pdf (wordpress.com)

[15] PYD Leader Warns of War with Arab Settlers in… | Rudaw.net

[16] https://www.zeit.de/1997/10/wallraff.txt.19970228.xml

[17] Trumps Nahost-Strategie ist total langweilig – Außenpolitik (foreignpolicy.com)

[18] IMI-Analyse2007-06.pdf (imi-online.de)

[19] Netanjahu: Israel unterstützt die Errichtung eines unabhängigen Kurdistans – Israel News – Haaretz.com

[20] https://www.google.de/amp/s/m.jpost.com/middle-east/kurdish-pkk-leader-tells-post-of-peaceful-struggle-against-turkey-650318/amp

[21] PKK leader: Israel is helping Turkey to destroy us – Haaretz Com – Haaretz.com

[22] Abdullah Öcalan: “We Are Fighting Turks Everywhere” :: Middle East Quarterly (meforum.org)

[23] https://kommunistische.org/diskussion/die-pkk-und-der-proletarische-intern

[24] https://www.reuters.com/article/us-mideast-crisis-syria-usa-exclusive-idUSKCN1AX1RI

[25] SDF Spokesman Confirms the Group Does Nothing without ‘Signals’ from the United States (Vdieo) (southfront.org)

[26] YPG-Kommandeur: Kurden in Syrien “verdienen” US-Unterstützung | Rudaw.net

[27] What the Syrian Kurds Want | The National Interest

[28] https://zeitungderarbeit.at/international/syrien-kurdische-autonomieverwaltung-geht-deal-mit-us-olkonzern-ein/

[29] https://www.jungewelt.de/loginFailed.php?ref=/artikel/312087.rojava-aufbau-im-krieg.html

[30] Die TKP in 16 Fragen – TKP – Kommunistische Partei der Türkei (tkp-deutschland.com)

[31] http://www.tkp-deutschland.com/tkp_thesen_zum_imperialismus_entlang_der_achse_von_russland_und_china/

[32] https://www.rudaw.net/english/business/22072021

[33] Zionismus und Antisemitismus spaltet, Klassenkampf vereint! – Roter Aufbau (roter-aufbau.de)

[34] Die Nationale Frage in Palästina und Israel – Kommunistischer Aufbau (komaufbau.org)

[35] Islamischer Fundamentalismus und Imperialismus – Kommunistischer Aufbau (komaufbau.org)

[36] Vor einer dritten Intifada? — Website (rf-news.de)

[37] Freiheit – Nationale Widerstandsbrigaden verkünden militärische Ernte am siebten Tag der Schlacht am Schwert von Jerusalem (alhourriah.org)

[38] Abu Ali Mustafa Brigaden kündigen Kampf um “Call of Jerusalem” | Märtyrer Abu Ali Mustafa Brigaden

[39] Abu Ahmed Fouad: Die Errungenschaft der konkreten Schlacht ist die Einheit des palästinensischen Volkes um den Widerstand | Märtyrer Abu Ali Mustafa Brigaden

[40] #17 – Palästina | Kommunistische Organisation

[41] Was ist die Ursache für die Gewalt in Gaza? | marx21

[42] https://civaka-azad.org/mit-dem-paradigma-der-pkk-den-sozialismus-neu-schaffen

[43] TKP – Das Sozialismus-Programm – TKP – Kommunistische Partei der Türkei (tkp-deutschland.com)

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