Sobre velhas mas sempre novas verdades

Por Vladímir Ilitch Uliánov, via marxists.org, traduzido coletivamente em Estratégia e tática da hegemonia proletária.

Publicado em Zvezda, n. 26, 11 de junho de 1911. Assinado por V. Iliin.

Os incidentes que impediram o comparecimento dos delegados dos operários ao II Congresso dos Médicos de Fábricas em Moscou são de conhecimento dos leitores pelos relatos da imprensa[1]. Não podemos nos deter aqui em detalhes desses incidentes ou em comentários sobre seu significado. Apenas observemos as reflexões instrutivas que apareceram na Rech[2] de 14 de abril, isto é, no dia da abertura do congresso, em um artigo principal que foi escrito na véspera do incidente:

“Infelizmente”, escreveu o órgão do Partido Constitucional-Democrático, “esta participação” [a participação dos representantes dos operários] “está sendo impedida por obstáculos externos. O destino que recai sobre alguns dos mais ardentes oradores é bastante conhecido. Como resultado, os representantes dos operários insistem em falar sobre suas dificuldades de se concentrar em questões especiais, sobre a impossibilidade de organizar uma representação adequada no congresso, sobre os obstáculos colocados no caminho de suas organizações e muitas outras coisas que, novamente, estão muito distantes do programa do congresso e cuja discussão desvia das questões da ordem do dia e, algumas vezes, levam a consequências indesejáveis. A atmosfera carregada explica também a intolerância mostrada pelos representantes dos operários em relação aos oradores ‘burgueses’, a todas as medidas tomadas pelo governo e à possibilidade de colaboração com os representantes de outros grupos sociais.”

Toda essa passagem é um exemplo característico das lamentações débeis, cuja impotência é explicada não pela composição aleatória ou algumas peculiaridades de um determinado partido liberal, de uma determinada questão etc., mas por razões muito mais profundas: as condições objetivas nas quais a burguesia liberal em geral se encontra na Rússia do século XX. A burguesia liberal anseia pelo tipo de “regime” sob o qual poderia fazer acordos com operários menos propensos “a fazer discursos muito ardentes” e que sejam suficientemente “tolerantes” para com a burguesia, no sentido da ideia de colaboração com a burguesia, e com “todas as medidas tomadas pelo governo”. Anseia por um regime sob o qual esses modestos operários “colaborem” com ela e possam “se concentrar em outras questões especiais” de política social, aceitando modestamente se limitarem a remendar o manto surrado da preocupação burguesa de Trichkin[3] para com seu “irmão mais novo”. Em uma palavra, os liberais russos anseiam por algo como o presente regime na Inglaterra ou na França, em contraposição àquele da Prússia. Na Inglaterra e França a burguesia detém todo o poder e exerce seu domínio praticamente (com poucas exceções) por si só, enquanto na Prússia são os proprietários de terra feudais, os junkers, e os militares monarquistas que estão em ascensão. Na Inglaterra e na França a burguesia utiliza frequentemente, livre e amplamente, os serviços de pessoas de origem proletária ou traidores da causa do proletariado (John Burns, Briand) na capacidade de “colaboradores” que “se concentram”, sem distúrbios, “sobre as questões especiais” e que ensinam a classe operária a manter uma atitude “tolerante” ao domínio do capital.

Não há nenhuma dúvida de que os sistemas inglês e francês são muito mais democráticos que o prussiano; que eles são muito mais favoráveis para a luta da classe operária, e tem em grande medida eliminado as instituições medievais que distraem a atenção da classe operária de seu principal e real adversário. Não há a menor dúvida, portanto, de que o apoio às aspirações de remodelar nosso país no sentido anglo-francês, mais do que no prussiano, coloca-se no interesse dos operários russos. Mas não devemos nos limitar a essa conclusão inquestionável, como é feito frequentemente. Aqui apenas começa a questão polêmica ou controversa (com democratas de vários matizes).

É necessário apoiar tais aspirações. Mas, para apoiar os fracos e vacilantes, é necessário sustentá-los com algo mais sólido e dissipar as ilusões que os impedem de enxergar sua fraqueza e entender as suas causas. Aquele que reforça tais ilusões e soma sua voz às débeis lamentações dos partidários da democracia impotentes, inconsistentes e instáveis, não apoia as lutas pela democracia burguesa, mas enfraquece essas lutas. A burguesia da Inglaterra e da França, em meados do século XVII e final do XVIII, respectivamente, não lamentou a “intolerância” de seu irmão mais novo, e não fez caretas frente aos “mais ardentes oradores” entre os representantes de tal irmão mais novo, mas ela própria forneceu os mais ardentes oradores (e não somente oradores), que despertaram um sentimento de desprezo pela pregação da “tolerância”, aos suspiros impotentes, à hesitação e à indecisão. Entre tais oradores ardentes estavam pessoas que, no curso dos séculos, serviram como faróis-guias da humanidade, professores, apesar das limitações históricas e da frequente ingenuidade de suas ideias a respeito dos meios para se livrar de todo o tipo de infortúnio.

A burguesia alemã, assim como a russa, também lamentou o fato de os oradores representantes do “irmão mais novo” serem “muito ardentes” – e deixou para trás na história da humanidade um modelo de baixeza, mesquinhez e servilismo, pelo que foi recompensada com chutes das botas dos junkers. A diferença entre uma e outra burguesia explica-se, evidentemente, nãos pelas “características” das diferentes “raças”, mas pelos níveis distintos de desenvolvimento econômico e político, que levaram a burguesia a temer o “irmão mais novo”, e oscilar impotentemente entre condenar a violência do feudalismo e censurar a “intolerância” dos operários.

Essas são velhas verdades. Mas elas são sempre novas, e assim permanecem quando se lê as seguintes linhas em uma publicação de pessoas que pretendem ser marxistas:

“A derrota do movimento de 1905-06 não se deveu aos ‘excessos’ da esquerda, pois tais ‘excessos’ foram eles próprios a consequência da combinação de um grande número de causas; nem se deveu à ‘traição’ por parte da burguesia que, em todos os lugares do Ocidente, ‘traiu’ no momento crucial; deveu-se à ausência de um partido burguês formalizado que pudesse suplantar a burocracia obsoleta no comando do governo, e que fosse economicamente forte e democrático o suficiente para contar com o apoio do povo atrás de si.” E, algumas linhas depois: “[…] a fraqueza dos democratas burgueses urbanos, que deveriam ter se tornado o centro de gravidade político do campesinato democrático […]” (Nacha Zaria, n. 3, p. 62, artigo do sr. V. Levitski).

O sr. V. Levitski concebeu sua renúncia à ideia de “hegemonia” [do proletariado] (“os democratas burgueses urbanos” e ninguém mais, “deveriam ter se tornado o centro de gravidade”!) com mais ousadia, até o fim, de modo mais definitivo do que o sr. Potrésov, que retocou seu artigo em O movimento social[4] sob influência dos ultimatos de Plekhánov.

O sr. Levitski argumenta como um liberal. Ele é um liberal consistente, não importa quantas frases marxistas ele use. Ele não tem ideia de que o “centro de gravidade do campesinato democrático” deve ser uma categoria social completamente distinta da democracia burguesa urbana. Ele esquece que esse “deve” foi uma realidade durante os principais períodos históricos na Inglaterra e na França, bem como na Rússia – e nesse último país esses períodos foram grande em significado, embora de curta duração, enquanto naqueles dois primeiros países foram na maior parte os setores plebeus democráticos, ultrademocráticos e “muito ardentes” que uniram os vários elementos heterogêneos das “classes baixas”[5].

O sr. Levitski esquece que mesmo naqueles curtos períodos em que eles passaram a desempenhar o papel de “centros de gravidade para o campesinato democrático” na história, quando conseguiram arrancar esse papel das mãos da burguesia liberal, eles exerceram uma influência decisiva sobre o grau de democracia que o país obteve nas décadas subsequentes, do chamado desenvolvimento pacífico. Essas “classes baixas”, nos curtos períodos de sua hegemonia, educaram sua burguesia e a remodelaram a tal nível que, quando ela então tentou retroceder, foi incapaz de levar esse movimento retrógrado para além de, digamos, uma Câmara Alta na França, ou certos desvios dos princípios de eleições democráticas etc., etc.

Essa ideia, confirmada pela experiência histórica de todos os países europeus – a ideia de que nos períodos de transformação burguesa (ou, mais corretamente, de revolução burguesa) a democracia burguesa de cada país se configura de uma maneira ou de outra, assume uma forma ou outra, é educada em uma tradição ou em outra, reconhece esse ou aquele mínimo de democracia, dependendo do quanto, nos momentos decisivos da história nacional, a hegemonia passe não para a burguesia, mas para as “classes baixas”, para os “plebeus”, no caso no século XVIII, ou para o proletariado nos séculos XIX e XX – essa ideia é estranha para o sr. Levitski. Essa ideia de hegemonia constitui um dos princípios fundamentais do marxismo; e o abandono pelos liquidacionistas desses princípios (ou mesmo sua indiferença a ele) é a fonte mais profunda de toda uma série de divergências fundamentais irreconciliáveis com os oponentes do liquidacionismo.

Todo país capitalista atravessa uma era de revoluções burguesas que produz este ou aquele grau de democracia, esta ou aquela forma de constitucionalismo ou parlamentarismo, este ou aquele grau de autonomia, independência, amor à liberdade e iniciativa dentre as “classes baixas” em geral e dentre o proletariado em particular, esta ou aquela tradição permeando toda a vida política e social do país. Qual será este grau de democracia e esta tradição depende de se, nos momentos decisivos, a hegemonia pertencerá à burguesia ou ao seu antípoda; depende de quem será (de novo, em tais momentos decisivos) o “centro de gravidade do campesinato democrático” e, em geral, de todos os grupos e estratos democráticos intermediários.

O sr. Levitski é um mestre em forjar formulações brilhantes que tem o efeito de revelar de uma só vez os fundamentos ideológicos do liquidacionismo, trazendo-os à tona de maneira clara e ousada. Tal é sua famosa fórmula: “não hegemonia, mas um partido de classe” – que, traduzida para o russo, significa: não marxismo, mas brentanismo [6] (social-liberalismo). As duas fórmulas observadas no presente artigo – a saber: “a burguesia democrática urbana deveria ter se tornado o centro de gravidade do campesinato democrático” e “a derrota […] deveu-se à ausência de um partido burguês formalizado” – estão, sem dúvida alguma, destinadas a se tornar tão famosas quanto.


1 N.E. Os delegados operários do II Congresso de Médicos de Fábrica de Toda a Rússia foram presos em 13 de abril de 1911, na noite anterior ao Congresso.

2 N.E. Em russo, “Discurso”: órgão oficial do Partido Democrata-Constitucionalista (Kadet).

3 N.E. Referência ao personagem da fábula de I. A. Krilov, O caftã de Trichkin rasgou nos cotovelos. Para consertar os cotovelos do seu caftã, uma peça de vestimenta, Trichkin corta as mangas e fez remendos. Quando começaram a rir de suas mangas curtas, tenta consertar esse infortúnio cortando agora outras partes da peça. A metáfora alude a uma situação em que, devido a meios limitados, a tentativa de resolver um determinado problema acaba negligenciando a solução de outro, ou criando um novo problema.

4 N.E. Obchtchestvennom dvijenii: O movimento social na Rússia no início do século XX é o título de um livro de cinco volumes (quatro volumes foram publicados) editado pelos mencheviques L. Mártov, P. P. Máslov, A. N. Potrésov. Após o outono de 1928, G. V. Plekhánov, que fazia parte da equipe editorial original, deixou a publicação, discordando da inclusão no primeiro volume desta obra do artigo liquidacionista de Potrésov, intitulado: A evolução do pensamento sociopolítico na era pré-revolucionária.

5 N.E. Em russo, nizov: literalmente, a parte mais próxima ao chão em uma construção; figurativamente, à época, as “classes baixas”, a “base”, o “chão” da sociedade. Lênin usa entre aspas o termo e suas variantes.

6 N.E.: Brentanismo: nome derivado de Ludwig Joseph Brentano (1844-1931), formulador de uma doutrina liberal reformista que reconhece a luta de classes somente se for uma luta de classe não-revolucionária, limitada ao terreno institucional das reformas dentro do sistema capitalista.

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