Jacques Lacan, mestre socrático

Por Mario Cifali, via Le Temps, traduzido por Anderson Santos

Lacan amado, Lacan odiado, psicanalista bajulado, enaltecido, censurado, rejeitado, Lacan, o mestre socrático que desperta mentes entorpecidas, é um pensador do tipo nietzschiano, que renova a obra freudiana.


Em livro recentemente publicado, a historiadora e psicanalista Elisabeth Roudinesco e o filósofo marxista Alain Badiou não trocam meras palavras sobre o fundador da Escola Freudiana de Paris; eles se colocam em um diálogo que trata da relação entre revolução subjetiva e revolução política.

Da relação pessoal com Lacan à leitura do drama contemporâneo, ambos abordam a desordem e as decadências contemporâneas, ao mesmo tempo em que apontam os avanços do genial psicanalista parisiense. Em sua companhia, não dizem que a única solução é mudar o mundo, dizem que a invenção freudiana forja uma interpretação do humano que, assim que é recebida e escutada, abala o cada-um-por-si onde muitos indivíduos de nossa época se refugiam.

De Lacan que revela o avesso da razão, que maneja o cristal da linguagem como um Mallarmé, que adora os animais, que os místicos fascinam, que admite a essência da espiritualidade, que atinge o destino das tragédias gregas (em particular Édipo em Colono), ao Lacan da dissolução de sua Escola, [Elisabeth e Alain] eles refazem o itinerário do transeunte que, no curso de sua tumultuada existência, profere uma palavra inovadora tanto entre os psicanalistas quanto entre os filósofos.

A cada um, Lacan faz com que a subversão freudiana, a potência do saber e não-saber, seja escutada como uma nova voz. Homem de desejo, em meio à insurreição que brota do abismo de seu inconsciente, ele desata pela palavra o que amarra, questiona as evidências, dissipa os engodos e se expõe à alteridade radical – uma maneira de evitar a capitalização do saber.

Uma diferença de estilo e abordagem dos problemas da mente distingue Lacan de Freud. Enquanto Freud trata principalmente das neuroses, Lacan mergulha no universo atormentado das psicoses, da loucura feminina, da lógica paranoica, observa Roudinesco. Para os dois psicanalistas, o tratamento e a prática da teoria não são brincadeira. A psicanálise não cessa de esbarrar no impossível das opacidades [l’impossible des aveuglements] e, desde a sua invenção, tem sido o antídoto para a ignorância de si.

Acreditar, como hoje, que o ser humano é apenas um amontoado de neurônios, uma máquina biológica que precisa ser estudada e modificada quimicamente, acreditando que assim se possa tratar do sofrimento no desdém de que a vida desejante e da palavra é absurda: essa é a crença do pior cientificismo e não o saber luminoso que se une à verdade do sujeito.

Badiou assinala que: sem dúvidas, se Lacan estivesse vivo, ele estaria revoltado contra os abusos desse cientificismo tanto na psicologia quanto em psiquiatria. Não há dúvida de que ele teria estigmatizado as terapias comportamentais e desafiado a medicalização excessiva dos corpos e mentes.

Não é surpreendente que ele seja criticado e caluniado por reacionários, como Freud foi em sua época. O principal não é isso. O essencial está no cerne do empreendimento que ele defende como o mais desejável: o da investigação psicanalítica, o questionamento de si.

Lacan não se envolveu no debate político, como fez Sartre. Psicanalista acima de tudo, sua visão é ao mesmo tempo rebelde e dramática sem ser ideológica. Diante da nova barbárie, a psicanálise que ele encarna sustenta os valores do universalismo freudiano, dizem Roudinesco e Badiou. Sua prática, tanto quanto sua teorização, é antipsicologização.

Com razão, Lacan nunca deixou de criticar a Psicologia do Ego norte-americana; não sem motivos, ele queria mais do inconsciente, mais do real para superar os impasses de uma psicologização que dificilmente é melhor do que a domesticação comportamentalista das consciências.

Roudinesco declara que, em Lacan, “a orientação ou a aspiração frente ao trágico é a principal forma de um retorno a Freud reivindicado por ele”. Tanto na filosofia quanto na psicanálise essa aspiração conduz às potências da pulsão de vida e morte. A existência é uma tragédia em si. “A tragédia começa” [Incipit tragoedia], escreve Nietzsche em “A Gaia Ciência”.

A cada passo, a tragédia habita Lacan. Durante suas conferências, seminários, vídeos ou escritos, ele age no sopro de seu pensamento: ele é o fogo de seu rito psicanalítico.

De acordo com Badiou a estilística de Lacan é definida de maneira crucial, ela participa de sua identidade; funde-se com os meandros do inconsciente; captura o que escapa à consciência reflexiva. Uma magia do verbo poetiza o discurso do mestre ao passo que o engendra. “Escutar ou ler Lacan, é escutar o inconsciente em ação, muito mais do que com Freud”, afirma Roudinesco.

Com Lacan, estamos longe do que falta às potentes sociedades psicanalíticas burocratizadas: uma alma, uma paixão, uma inteligência fina. Se Lacan provocou fúria, não foi à toa. Hoje, a psicanálise está em perigo. Os psicanalistas asseguram pouco ou mal a sua disciplina.

Defender a obra freudiana rearticulada por Lacan tornou-se, e não somente por parte dos psicanalistas, uma questão de civilização e cultura: é um combate vital contra a degradação das mentes.

Não há dúvida de que Lacan, em vida, teria contestado a medicalização excessiva dos corpos e mentes.

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