Querido Estefano

Por Umberto Eco, via Pirelli, Rivista d’i informazione e di tecnica, nº 6, 1963, traduzido por Zan Vesuvio.

O Natal está se aproximando. Em breve, as lojas do centro — e as do subúrbio, é claro — ficarão lotadas de pais empolgados encenando a farsa da generosidade anual, esperando ansiosamente pelo momento em que, contrabandeando através dos filhos, poderão comprar seus trenzinhos preferidos, teatros de fantoches, alvos de atirar dardos e mesas de pingue-pongue para suas casas.

Ficarei observando, porque este ano não chegou a minha vez. Você ainda é muito pequeno e os brinquedos montessorianos não me divertem tanto. Talvez, por eu não ter vontade de pô-los na boca, mesmo com seu rótulo garantindo serem impossíveis de engolir.

Não, terei que esperar: por dois, três, talvez, quatro anos.

Terei minha oportunidade, passará a fase da educação materna. Findará a era dos ursinhos de pelúcia e terá chegado a hora em que eu começarei a moldar, com a suave sacrossanta violência da autoridade patriarcal, tua consciência cívica.

E então, Estefano…

Te darei fuzis. De dois canos. De repetição. Com mira telescópica. Morteiros. Bazucas. Exércitos de soldadinhos paramentados para a batalha.

Castelos com pontes levadiças. Fortalezas para montar cerco. Casamatas, paióis, encouraçados, aviões a jato. Metralhadoras, punhais, revólveres de tambor, coltes, winchesteres, rifles, chassepots, carcanos, garands, obuses, colubrinas, passa-volantes, arcos, fundas, bestas, balas de chumbo, catapultas, faláricas, granadas, balistas, espadas, lanças, arpões, alabardas, ganchos de escalada; e peças de prata, aquelas do Capitão Flint de A Ilha do Tesouro (em honra de Long John Silver e Ben Gunn).

Adagas, do tipo favorecido pelo gascão Don Barrejo, e também lâminas de Toledo, capazes de desarmar três pistoleiros ao mesmo tempo e botar o Marquês de Montélimar para comer capim pela raiz. Ou a Técnica do Napolitano com a qual o Barão de Sigognac abatia o primeiro rufião que tentasse raptar a sua Isabela! E então machadinhas, partazanas, misericórdias, cris, azagaias, cimitarras, virotes e bengalas-espada, iguais aquela com que John Carradine era eletrocutado sobre o terceiro trilho, e quem não lembra disso, azar o dele.

Sabres para abordagem, que fariam os bucaneiros Carmaux e Van Stiller empalidecerem, pistolas arabescadas que Sir James Brooke, o Marajá Branco, jamais teve, ou não teria se rendido diante do português Yanez de Gomera e seu eterno cigarrinho sarcástico no canto da boca.

E estiletes de lâmina triangular, como o que tinha ao seu lado, enquanto em Clignancourt o dia morria tão suavemente, Rocambole quando se livrou do assassino Zampa — após este ter consumado a seu pedido o matricídio da velha e sórdida Madame Fipart.

peras da angústia; as que foram introduzidas na boca do carcereiro La Ramée enquanto o Duque de Beaufort — com os fios acobreados da barba tornados mais sedutores pelos longos cuidados com um pente de chumbo — afastava-se a cavalo enquanto saboreava antecipadamente a fúria do Cardeal Mazarino.

Canhões carregados com saraivadas de pregos, para disparar com os dentes escurecidos de mascar fumo, e espingardas com coronha de madrepérola, para serem empunhadas em cima de corcéis árabes com pelos brilhantes e curvilhões nervosos; arcos longos rapidíssimos, de deixar o Xerife de Nottingham verde de inveja, e facas para escalpo, como as que Minnehaha tinha ou — para você que é bilíngue —Winnetou.

Pistolas pequenas e achatadas, de por no colete, perfeitas para ladrões galantes usarem em seus golpes, ou pesadíssimas luger para inflar o bolso ou engrossar as axilas, ao estilo do detetive Michael Shayne.

E mais fuzis. Fuzis, fuzis tipo os de Ringo, Wild Bill Hickok ou Sambigliong, recarregados através do cano. Armas, meu filho, muitas armas, apenas armas. Isto te trarão os teus natais.

Estou em choque, senhor! — dirão — não é você que milita em um comitê pelo desarmamento atômico, flerta com assembleias pela paz, participa de marchas na capital e cultiva a imagem de ativista? Ficaram surpresos, é? Eu me contradigo? Pois bem, me contradigo. (Walt Whitman).

Na verdade, não. Sei muito bem o que faço.

Era manhã, tinha prometido um presente ao filho do meu amigo e entrei em uma loja de departamento em Frankfurt, pedindo por uma bela pistola com tambor.

Olharam para mim escandalizados. Não fazemos brinquedos bélicos, senhor! Gelei na hora. Saí do estabelecimento mortificado pela vergonha, quase atropelei dois soldados passando pela calçada lá fora. Então, voltei a mim.

A partir daquele momento decidi que não deixaria mais ninguém me fazer de trouxa. Confiaria apenas na experiência pessoal e passaria a desconfiar de pedagogos.

Tive uma infância fortemente, exclusivamente belicosa: disparava em arbustos com zarabatanas improvisadas no último minuto, me agachava atrás dos poucos carros estacionados que havia na época, atirava com meu rifle de repetição; liderava investidas com baionetas, me perdia em batalhas sanguinolentas.

Em casa, soldadinhos de chumbo. Exércitos inteiros empenhados em estratégias enervantes, operações especiais com duração de semanas, campanhas militares completas que recrutavam para suas fileiras até mesmo os vestígios de um urso de pelúcia e as bonecas da minha irmã.

Organizava bandos aventureiros com meus amigos. Fazia um punhado de fidelíssimos facínoras me tratarem pela alcunha o Terror de Praça Genova (atual Praça Matteotti). Desfiz a formação dos Leões Negros para me fundir a uma gangue mais poderosa, na qual, como membro, mais tarde organizei um pronunciamento de êxitos desastrosos.

Fomos desbaratados lá para os lados de Monferrato. Acabei alistado a força para o Bando do Sendeiro, sofrendo uma cerimônia de iniciação que consistia em cem chutes na bunda e aprisionamento por três horas em um pombal.

Combatemos contra a turma do Rio Nizza, eram terríveis e cobertos de sujeira até os cabelos. Da primeira vez, tive medo e fugi. Na segunda, tomei uma pedrada no lábio e até hoje tenho um nódulo dentro da boca que consigo sentir com a língua.

(Depois chegou a guerra de verdade. Os partisanos nos emprestavam submetralhadoras Sten para admirar por uns dois segundos, e vimos amigos mortos com um buraco de tiro na cabeça. Mas então a idade adulta já estava chegando e se perambulava pelas margens do Rio Belbo para flagrar os maiores de idade fazendo amor, exceto naqueles momentos em que se estava ocupado tendo a sua primeira crise de fé).

Desta orgia de jogos belicistas emergiu um homem que conseguiu cumprir dezoito meses de serviço militar sem encostar em um fuzil, dedicando as intermináveis horas no quartel a severos estudos de filosofia medieval. Um homem manchado de muitas iniquidades, mas inocente do triste delito que constitui amar as armas e acreditar na santidade e eficiência do valor guerreiro.

Um homem que compreende o valor do exército somente quando o vê reencontrar uma nobre e serena vocação civil correndo em meio a lama, resgatando vítimas deixadas pela tragédia do rompimento de uma barragem.

Que não acredita absolutamente em guerras por causas justas, aprecia apenas as guerras civis nas quais quem luta o faz sem vontade, arrastado pelos cabelos, esperando aquilo terminar logo e que, por uma questão de honra, não pode deixar de fazê-lo.

Acredito dever este meu profundo, sistemático, maturado, bem documentado horror pela guerra aos saudáveis e inocentes desafogos, platonicamente sanguinários, concedidos a mim na infância.

Tal qual alguém sai de um filme de faroeste (depois de uma pancadaria solene, daquelas de fazer cair as paredes do saloon, partir mesas e grandes espelhos, nas quais atiram no pianista e as vidraças são estilhaçadas) mais livre, leve e solto; disposto a sorrir a pessoa que está passando e esbarra em você com o ombro, a prestar ajuda a passarinhos caídos do ninho — como Aristóteles bem entendia, quando pedia à tragédia para agitar diante de nossos olhos um pano vermelho-sangue, para nos purificar a fundo com o divino bicarbonato de ódio da catarse.

Fico imaginando aqui, em vez disto, a infância que teve Adolf Eichmann, o Arquiteto do Holocausto. Curvado, com seu olhar de necrocontabilista sobre um quebra-cabeça mecânico, seguindo as instruções de um manualzinho, ávido para abrir seu conjuntinho multicolorido de químico mirim, sádico no posicionamento dos seus instrumentos de jovial marceneiro, que incluem uma plaina com largura de um palmo e uma serra de vinte centímetros em cima de um compensado de madeira.

Temei os jovens brincando de construir com pequenos guindastes! Em suas mentes frias e distorcidas de mini matemáticos estão se condensando os complexos atrozes que irão movimentá-los na maturidade. Em cada um destes monstrinhos acionando os trilhos do seu ferrorama vejo os futuros diretores de campos de concentração!

E, cuidado, com as crianças apaixonadas por automóveis colecionáveis. Estes que a indústria do brinquedo propõe a elas horrendamente em fac-símiles perfeitos, com porta-bagagens que levantam, vidros que se abrem. Uma atemorizante, terrificante brincadeira, feita para futuros sargentos de um exército eletrônico, destinado a desapaixonadamente apertar os botões vermelhos iniciadores da guerra nuclear.

Você já é capaz de identificar estas pessoas hoje.

Especuladores, escultores de ordens de despejo em pleno inverno. Gente que formou seu caráter jogando o infame Banco Imobiliário, acostumando-se a ideia de compra e venda de propriedades, à concessão desinibida de pacotes de ações.

São os avarentos Sr. Scrooge de hoje em  dia, que amamentaram seu gosto por acumulação e vitória a partir das cartelas de um bingo. Tecnocratas genocidas educados com kits de engenharia mecânica, e também os burocratas, já meio mortos por dentro, iniciados no seu declínio espiritual com envelopes e cartinhas, brincando de correio elegante…

E amanhã? O que acontecerá com uma infância em que o Natal industrial trará bonecas dos Estados Unidos, que falam, cantam e se movem sozinhas? Autômatos japoneses pulando e dançando, com bateria infinita? Carrinhos de controle remoto dos quais nunca se compreenderá o funcionamento…

Estefano, meu filho, te presentearei com fuzis.

Porque um fuzil de brinquedo não é um jogo em si. É uma deixa para brincar. A partir dela você precisará inventar uma situação, um conjunto de relações, dialéticas de eventos.

Você precisará dizer bang com a boca e descobrirá, a brincadeira tem valor por aquilo inserido nela, e não pelo que encontra já pronto. Irá imaginar que destrói inimigos, satisfazendo um impulso ancestral que nenhuma máscara de civilização conseguirá  ofuscar — não sem te transformar em um neurótico visitando periodicamente a psicóloga da firma para realizar testes com borrões de tinta.

Mas você se convencerá que destruir inimigos é uma convenção lúdica. Mais um jogo em meio a outros jogos. Vai entender ser prática estranha à realidade, algo que, enquanto você brinca,  aprenderá a conhecer bem os limites.

Se purgará de raiva e tensões, terá mais facilidade para acolher outras mensagens além de morte e destruição. Aliás, espero que para você morte e destruição pareçam sempre coisas pertencentes ao reino da fantasia. Como as fadas, e o lobo da Chapeuzinho Vermelho — que todos nós conhecemos e odiamos, sem isso se converter em um ódio irracional por huskies siberianos e pastores alemães.

Mas, talvez, isto não resuma tudo. E realmente não se resumirá tudo a isso.

Não permitirei que dispare a tua Colt apenas para desestressar, uma purificação lúdica dos instintos primordiais. Deixarei, para depois que isto acontecer, a parte construtiva. A comunicação de valores. Tentarei te fornecer ideias enquanto você ainda está atirando escondido atrás do sofá.

Antes de mais nada, não ensinarei você a atirar em povos nativos, mas nos traficantes de armas e bebida, que destroem as reservas indígenas. Nos escravagistas do sul confederado, implicando que você lutará como um soldado do presidente Lincoln. Não ensinarei você a atirar em canibais congoleses, e sim em caçadores de marfim. E, em um momento de fraqueza, ensinarei você a cozinhar o Doutor Livingstone em uma panela, I suppose.

Em nossas brincadeiras estaremos ao lado dos árabes e não de Lawrence da Arábia, que, para ser franco, nunca me pareceu um modelo exemplar de masculinidade sadia a ser imitado por mocinhos de bem.

Se brincarmos de Roma Antiga, estaremos ao lado dos gauleses. Eram celtas como nós piemonteses e bem mais louváveis do que o tal Júlio César, a quem logo você precisará aprender a olhar com desconfiança. Pois não se suprime liberdades democráticas a uma comunidade dando em troca, como esmola, alguns belos jardins para as pessoas passearem aos finais de semana.

Estaremos do lado de Touro Sentado contra aquele repugnante indivíduo que foi o General Custer. Do lado dos boxeres chineses contra o colonizador europeu, naturalmente. Do lado de Fantomas, o Mestre dos Disfarces, e não do inspetor Juve, homem demasiadamente apegado ao seu dever para se recusar a matar um argelino a cassetadas.

Mas exagero: eu te contarei, é claro, que Fantomas era um mau sujeito, mas não serei cúmplice da corruptora romancista Baronesa de Orczy e recusarei a te ensinar  que o Pimpinela Escarlate foi um herói. Era sim um monarquista safado, causador de aborrecimentos ao bom Danton e ao puríssimo Robespierre e — caso esta seja nossa brincadeira da vez — você irá tomar parte na queda da Bastilha.

Serão  formidáveis as brincadeiras que faremos juntos! Ahá, então vossa majestade queria nos mandar comer, brioches?! Avante, monsieur general Santerre, faça rufar os tambores! Senhorinhas de todo mundo fazendo tricô enquanto assistem às execuções da guilhotina, regozijai vossas agulhas! Hoje vamos reencenar a decapitação de Maria Antonieta!

Pedagogia perversa? Quem disse? Os cineastas que acharam uma boa ideia fazer filmes sobre o Frei Diabo? Um homem o qual, se algum dia já existiram capangas, foi o jagunço definitivo dos senhores de terra e da família dos Bourbon?

Alguma vez, ensinaram os seus filhos a brincar de Carlo Pisacane? Ou permitiram ao ensino fundamental italiano, e aquele poeta de poste que foi Luigi Mercantini, transformar, aos olhos de nossos meninos, a imagem do revolucionário na de um loiro idiota e inofensivo. Algo a se memorizar porque vai cair na prova?

E você — VOCÊ! — que, podemos afirmar, é antifascista desde criancinha, já brincou com seu filho de guerrilheiro?  Já se abrigou atrás da cama, fingindo estar nas colinas e gritando, atenção, às armas, às armas, fogo nos nazistas?

Não, você dá de presente para o seu filho bloquinhos de encaixar e depois faz ele ir com a babá ao cinema assistir filmes que exaltam a destruição de nações indígenas!

Sendo assim, querido Estefano, eu te presentearei com fuzis. E te ensinarei a brincar em guerras muito complexas, onde a verdade nunca está de um lado só. Você vai aproveitar sua a juventude, acabará meio confuso das ideias, mas lentamente irá adquirir algumas convicções.

Mais tarde — já adulto — irá acreditar que tudo foi uma fábula. Chapeuzinho Vermelho, Cinderela, o pirata Sandokan, os fuzis, os canhões, homem contra homem, a bruxa contra os sete anões, exército contra exército.

Mas se, por acaso, quando você crescer ainda existirem as monstruosas figuras dos teus sonhos infantis, feiticeiras, duendes, esquadras navais, bombas, alistamento obrigatório; quem sabe até lá você não tenha desenvolvido uma visão crítica em relação à ficção — e acabe aprendendo a navegar criticamente através da realidade.

Por enquanto, só te desejo um feliz Natal!

Seu presente este ano será um tabuleiro de encaixe com círculos concêntricos, que talvez o ajude a se iniciar nos mistérios da geometria.

Referências bibliográficas

ECO, Umberto. Caro Stefano. Pirelli — Rivista d’i informazione e di tecnica, Milão, volume, nº 6, pág 84-87, Dez, 1963.

ECO, Umberto. Diário Mínimo. São Paulo: Difel, 1985.

ECO, Umberto. Missreadings. Orlando: Harcourt Inc. and Jonathan Ltda, 1993.

ECO, Umberto. Diario Minimo. Milão: Bompiani, 2001.

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