Kafkiano: a condenação precede os autos do processo

Por William José da Silva

“O processo penal brasileiro materializou no realismo de Franz Kafka. Ler atentamente uma sentença condenatória é adentrar o campo do realismo esquizofrênico e se deparar com os tormentos do Josef K. n’O processo. A condenação precede os autos do processo. Se a prova não existe qual a razão de sua produção? A condenação não se funda na administração da lei, mas na convicção indubitável dos funcionários máquina burocrática jurídica.”


É preciso queimar os autos do processo? Pois se queime tudo. A punição se antecipa cronologicamente ao ato!

Theodoro Adorno comenta: ¹ “Em Kafka a História vira um inferno porque o momento da salvação foi perdido” (apud Carone, Modesto. 2007), no processo penal brasileiro o inferno precede a história porque o momento da salvação nunca existiu.

Kafka é atemporal e não dialoga com o poder.

Não é à toa que Adorno considera Kafka o maior prosador contemporâneo.

No romance O Processo, Josef K. é acusado, negado o direito ao contraditório e a ampla defesa, sentenciado, condenado e por final executado sem ter acesso aos autos do processo que pois fim em sua vida. Em Kafka o processo penal é permeado por abusos, ilegalidades e arbitrariedades, porque existe um sistema jurídico vicioso, cínico e falho. Aliás, será que é possível afirmar que esse processo penal é permeado de vícios, pois, no algoz sentenciante se funde os três poderes do Estado, ou seja, dele decorre a elaboração, fiscalização e aplicação da lei. Sentencia, julga e a executa no corpo do indivíduo.

Em Kafka o processo não tem horizonte.

Na novela Na Colônia Penal o indivíduo tem a sentença condenatória insculpida em seu corpo, ou melhor, ela é redigida de maneira lenta, dolorosa, torturante e pungente, por uma agulha ligada a uma máquina burocrática de fabricar dor. Ao final de doze horas de dor e sofrimento excruciantes, irá matá-lo como sanção pelo desrespeito da lei do algoz sentenciante.

A lei é revelada na sentença e a sentença só pode ser conhecida por intermédio de um castigo físico.

A narrativa kafkiana é um tormento e deixa cicatrizes no espírito.

Na novela Sobre a questão das Leis, em três parágrafos escritos precisamente, Kafka revela dez características das leis duma sociedade, sendo elas: ²secretas, antigas, efetivas, interpretáveis, tendenciosas, particularistas, parciais, sábias, incomodas e inevitáveis”.

Neste escrito de Kafka, a elaboração, a construção e a interpretação das leis são exercidas visceralmente pela burguesia e que somente esse bando é capaz de significar e resignificar o sentido da lei. É necessária que a parcela explorada seja alienada perante a lei. A própria alienação edifica o aparelho judiciário.

Kafka dialoga com o conceito de alienação em Marx.

Em Marx o operário é alienado em relação ao seu produto de trabalho, na manifestação do direito na literatura kafkiana o acusado é alienado pela desumanização através da humanização, através da sentença condenatória desenha com requintes de tortura e crueldade em seu corpo.

O indivíduo alienado está submetido à imposição de uma série de fatores à sua volta e sua alienação se torna um intermédio para punição do seu corpo.

“É certo que os tribunais dispõem de códigos. Mas eles não podem ser vistos. ‘Faz parte da natureza desse sistema judicial condenar não apenas réus inocentes, mas também réus ignorantes’, presume Kafka. […] é certo que na obra de Kafka o direito escrito existe nos códigos, mas eles são secretos, e através deles a pré-história exerce seu domínio ainda mais ilimitadamente.” (Benjamin, Walter. 1985)

Kafka escritor e advogado compreende com precisão técnica o aparelho judiciário, o aparelho burocrático estatal, os autos do processo e a aplicação da lei na sua época. Nunca imaginou que seus escritos não lançados ao fogo pelo amigo e testamenteiro, Max Brod, são atemporais, pois na pós-modernidade o acusado não tem garantia ao contrário e a ampla defesa. Noutras palavras, até tem, mas cada passo já está previsto e revisto pelo algoz sentenciante.

Aliás, é necessário que tenha algum direito ou garantia constitucional? Afinal, se a pessoa é acusada, por si só já é o suficiente para ser condenada: ⁴ “A culpabilidade não deve jamais ser colocada em dúvida!” (Löwy, Michael. 2000).

O processo penal brasileiro materializou no realismo de Franz Kafka. Ler atentamente uma sentença condenatória é adentrar o campo do realismo esquizofrênico e se deparar com os tormentos do Josef K. n’O processo. A condenação precede os autos do processo. Se a prova não existe qual a razão de sua produção? A condenação não se funda na administração da lei, mas na convicção indubitável dos funcionários máquina burocrática jurídica.

A culpabilidade atrai os capangas do poder judiciário e o poder midiático. O condenado decifra a sentença nas chagas. O excesso de punitivíssimo dentro do aparelho burocrático enfraquece o Estado de Direito e legitima excesso na sociedade, pois, notoriamente, excessos não necessitam de punição.

Quando o algoz sentenciante, junto com o acusador punitivista barato, condena o réu antes da materialização dos autos processo, a lei que aspira a todos, se esvazia por completo, se torna injusta ao condenado, e se afigura na razão de existir, defender os interesses duma minoria. O processo penal é vingativo, midiático, especulativo, punitivista e qualquer ilegalidade, sorrateiramente, se amolda na legalidade, como a seguinte justifica kafkiana: ⁵ “Isso é a lei. Onde é que poderia haver aí um engano?” Desta forma, o condenado não pode esperar justiça de um aparelho jurídico vinculado à administração da ilegalidade.

O processo penal é o esquartejamento da justiça. A verdadeira linguagem é a da carne e o condenado não necessita conhecer a sentença condenatória.

Günther. Anders nos diz que em Kafka: ⁶ “O que é espantoso não espanta ninguém.”, ou seja, os acontecimentos e os sujeitos presentes em sua narrativa soam de maneira natural e comum de se ouvir no mundo, o grotesco naturaliza na explanação, certamente o que ocorre nos autos do processo penal brasileiro, o que torna a leitura kafkiana menos aterrorizante do que uma sentença penal condenatória.

Não é a circunstância do indivíduo adentrar as portas da lei e ter os seus direitos negados, mas que essa negação assombrosa torne-se trivial e banalizada e que a negação veemente e esdrúxula dos direitos contamine todos os ramos do aparelho estatal.

Os autos do processo se materializam na via sacra punitiva contra o corpo do condenado – digo condenado e não réu, pois, antes do processo, já está sentenciado –, e é preciso iniciar, desde logo, a punição com doses homeopáticas e depois, num golpe de misericórdia, arrancar-lhe a cabeça e entregar ao poder midiático, que como O Grande Irmão de Orwell, observa e sabe de tudo.

A deusa da justiça e a deusa da vitória, numa figura só, são representadas no processo penal brasileiro. Na verdade não há nada de errado nisso, pois, se a balança não oscilar para o lado que financia o poder judiciário não será possível um veredicto justo.

Em seus dias de tormenta, Kafka, questionou sobre as garantias constitucionais do processo? Não. Em razão de que as garantias constitucionais existem e estão aí. No instante de criação da lei, o algoz sentenciante preocupa-se com a validade de seus atos e com o caminho que o réu pode percorrer no labirinto kafkiano sucedido da escada escher. Quem é o condenado perante a lei?

É perfeitamente possível a visualização do contraditório e da ampla defesa. O condenado sabe da sua sentença, pode produzir provas, participa dos atos processuais, usa de armas para um bom combate, mas não é necessária uma movimentação inicial enérgica e por final agonizante, a intimação pelos funcionários a serviço da justiça é a comunicação oficial da condenação.

O conceito de justiça no processo penal brasileiro se identifica pela alienação do condenado e a aplicação da lei criada pelo algoz sentenciante de maneira aterrorizante e grotesca. A porta da lei está aberta somente para o condenado, sendo assim, como pode ser injusta?

Não há como lutar contra o algoz sentenciante e contra o tribunal chancelador do sentenciante é preciso aceitar a condenação e aguardar a absolvição dada pela história a todos condenados ao arrepio da lei. Não é possível resistência à engrenagem mortífera do aparelho estatal:

É estúpido se prostrar diante da lei.

Na narrativa kafkiana, que permanece atual, o desfecho dos autos do processo está determinado pelo plano normativo e mostra todas as faces do aparelho burocrático estatal na administração do poder (in)judiciário, representado por um mundo de pesadelos, angústias, maldições, de porões imundos e de medos que assombram a consciência do condenado e da sociedade.

O processo penal brasileiro deu vida aos tormentos vividos por Josef K. n’O processo, pois, o indivíduo kafkiano se encontra acorrentado a situações que ele não controla e às quais ele não pode oferecer nenhuma forma de solução.

Seja qual for o sentido dos escritos kafkianos, o algoz sentenciante usa dos elementos da narrativa atormentadora para esculpir de maneira lenta e com inúmeras laudas a sentença condenatória, pressupondo que o condenado e a sociedade considerem o mais natural e corriqueiro possível condenações permeadas de abusos, ilegalidades e arbitrariedades.

Recorro à expressão precisa de Jorge Luis Borges: ⁷ “Seu trabalho modifica nossa concepção do passado, assim como há de modificar o futuro”.


William José da Silva é graduando em Direito pela USJT – Universidade São Judas Tadeu, em Filosofia pela UNIFESP e pós-graduando em Economia e Trabalho pelo DIEESE – Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos.


Referências bibliográficas

  1. Carone, Modesto. Lição de Kafka. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
  2. Cintra, Rodrigo Suzuki. Vivendo em um fio de navalha: Kafka, (anti) filósofo do direito. Acesso em 10.04.2018: http://rsuzukicintra.blogspot.com.br/2018/02/vivendo-em-um-fio-de-navalha-kafka-anti.html#links
  3. Benjamin, W. Obras Escolhidas: Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 1985, vol. 1, p.140.
  4. Löwy, Michael. Barbárie e modernidade no século XX. Acesso em 10.04.2018: http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/25798-25800-1-PB.pdf
  5. Kafka, Franz. Obras escolhidas: A metamorfose; O processo; Carta ao Pai, tradução de Marcelo Backes, Porto Alegre, RS: LP&M, 2017, p.91.
  6. Anders, Günther. Kafka: pró e contra – os autos do processo. São Paulo: Cosac Naify, 2007, p. 20.
  7. Borges, Jorge Luis. Outras Inquisições (1952) in “Kafka e seus precursores”, São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p.130.

 

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