Surtos de Agressividade

Por Todd McGowan, tradução por Matheus Cornely Sayão

Trecho do livro “End of Dissatisfaction?: Jacques Lacan and the Emerging Society of Enjoyment”, escrito por Todd McGowan, e publicado pela editora State University of New York.


Se Spike Lee ilustra a pré-história da agressividade e violência contemporâneas, os tiroteios nas escolas representam o pleno desenvolvimento desses fenômenos. A segunda metade da década de noventa testemunhou uma série de tiroteios nas escolas, incidentes nos quais os estudantes iam para a escola com armas e com a intenção de atirar no maior número possível de alunos. O mais conhecido (e mais mortal) deles aconteceu na Columbine High School, no Colorado, onde dois estudantes (Eric Harris e Dylan Klebold, membros de um grupo que se auto intitulava “Trench Coat Mafia”) mataram doze colegas e um professor. . Excluídos como “aberrações” e “perdedores” na Columbine High School, Harris e Klebold vivenciaram sua castração – seu déficit de gozo – diariamente e, como Berkowitz em O Verão de Sam, responderam com violência.

Em uma sociedade que comanda o prazer, todo relacionamento com o outro produz o medo do roubo potencial de seu gozo ou a sensação de que o outro já roubou o seu gozo. É essa atitude que traz a agressividade ao nível que encontramos nos corredores de Columbine. O imperativo prevalecente de gozar cria uma luta de vida ou morte pelo gozo. Aqueles que saem do lado perdedor da luta pelo gozo freqüentemente respondem com agressividade para com aqueles que parecem ter tomado o gozo para si. Um déficit de gozo leva o sujeito a ver o prazer do outro como um prazer roubado que deve ser reapropriado. Os alvos dos atiradores de Columbine são exemplos disso. Os atiradores não só tinham como alvo estudantes e atletas populares, como também selecionavam estudantes de minorias sociais. Essa combinação parece desafiar uma análise política do tiroteio. Se vemos isso como uma atividade pseudo-revolucionária conduzida contra os poderosos na escola, isso explica por que os atiradores atiraram nos estudantes populares, mas não porque atiraram nos estudantes das minorias. Tal interpretação deve minimizar a importância dos estudantes de minorias sociais serem alvos. Se vemos isso como uma atividade neofascista conduzida contra os marginalizados, isso explica por que os atiradores atiraram nas minorias, mas não porque atiraram nos estudantes populares. Como a primeira interpretação, esta também deve minimizar um grupo visado pelos atiradores – neste caso, os estudantes populares. Ambas as linhas de interpretação se deparam com obstáculos significativos: a variedade de alvos parece diminuir o poder de dar um sentido ao massacre. Mas há algo que unifica todos os alvos em Columbine. O que estudantes populares e minoritários parecem compartilhar, pelo menos aos olhares externos dos brancos (como aqueles da “Trench Coat Mafia”), é uma relação privilegiada com o gozo. Ambos os grupos parecem estar se divertindo – ou melhor, se divertindo às custas dos membros da Trench Coat Mafia. O tiroteio é uma resposta a este gozo roubado, uma tentativa de arrancá-lo do outro [1].

As reações do público ao tiroteio de Columbine deixaram completamente de lado esse fator de gozo no cerne do evento. O clamor pós-Columbine procurou identificar a fonte da agressividade e violência que se manifestou nesse e em tantos outros tiroteios em escolas. Duas reações primárias se desenvolveram ao longo de linhas partidárias: os liberais ligaram a violência à ampla disponibilidade de armas, e os conservadores a ligaram à decadência moral na cultura [2]. No campo liberal, Rosie O’Donnell começou a fazer campanha em seu programa de entrevistas sobre a proibição de pistolas, chegando até mesmo a abertamente repreender o convidado Tom Selleck, em seu show em 19 de maio de 1999, por seus laços com a National Rifle Association. No campo conservador, Dan Quayle atacou grupos liberais, que promoviam um culto à autoestima na educação, afirmando que eles enfraquecem a disciplina escolar. Ambas as reações, apesar de suas diferenças óbvias, têm algo em comum: elas compartilham a crença fundamental de que a violência surgiu na ausência da autoridade (paterna). Como resultado, ambos os lados advogam a extensão da Lei – seja por meio da aprovação de nova legislação de controle de armas, seja por meio de uma educação mais rígida em casa – porque partem da premissa de que a violência emerge apenas quando a Lei está ausente [3]. Sem a Lei, de acordo com esse ponto de vista, as pessoas sentem-se livres para fazer o que bem entenderem, e fazer o que elas querem frequentemente inclui atirar em outras pessoas sem sentir nenhum peso na consciência.

De fato, tornou-se uma verdade incontestável entre os conservadores vincular o aumento contemporâneo da agressividade e da violência na sociedade contemporânea à ausência de proibição e ao declínio da autoridade. A luta contra a agressividade é frequentemente expressa em termos de pais e figuras de autoridade social, mais uma vez reafirmando regras definidas e estabelecendo uma proibição estrita. De acordo com essa lógica, o estado lastimável de autoridade contemporânea produziu sujeitos que não sabem que devem aceitar limitações e que se recusam a comprometer seu próprio prazer em prol das restrições sociais. Estamos experimentando tantos surtos de agressividade, de acordo com essa visão, porque os pais não ensinaram aos filhos a palavra “não!” – ou eles não estiveram lá para ensinar isso a eles. Se quisermos evitar incidentes como os assassinatos em massa em Columbine High School, devemos ter pais que estejam mais presentes na vida de seus filhos. Esta posição representa a resposta conservadora predominante não apenas ao aumento da agressividade e violência, mas também à sociedade de prazer como um todo. E tem sua base na visão generalizada de que a autoridade é nossa única salvação possível.

A agressividade e a violência ao estilo de Columbine, no entanto, não são executadas em desafio à autoridade (ou na ausência dela), mas em obediência a ela. A autoridade simbólica na sociedade do gozo ordena o gozo e, assim, quando os sujeitos reagem violentamente contra o suposto roubo de seu gozo, eles obedecem a esse imperativo. Os tiroteios em escolas não são resultado da ausência de autoridade, mas de sua presença – sua presença na forma de imperativo de gozo. O problema está no excesso de obediência – e excesso de autoridade – e não na falta dela. De fato, Lacan chega a sugerir que a “conformidade social” em si tem uma “tendência a induzir agressividade no sujeito” [4]. Entendendo que a agressividade é baseada em obediência generalizada e não em transgressão, podemos responder ao clamor conservador pelo aumento da proibição, apontando o seu erro fundamental. Se a epidemia contemporânea de obediência passou despercebida, isso apenas indica a extensão atual da sua capacidade de se disfarçar de transgressão.

Hoje há uma tendência de ver os surtos de agressividade como uma atividade subversiva, como um desafio às forças no poder. Assim, certos esquerdistas, durante o bombardeio da OTAN de 1999 à Sérvia, saudaram Slobodan Milosevic como um bastião de resistência à investida hegemônica do capital global, negligenciando, dessa maneira, certa dimensão nacionalista e racista dessa “rebelião”. Da mesma forma, alguns também abraçaram a dupla de atiradores de Columbine como subversivos lutando contra o poder da ordem social à medida que este se manifesta como o sistema de castas do ensino médio [5]. Tais interpretações da agressividade contemporânea e sua conseqüente violência sucumbem ao pensamento dos perpetradores – isto é, à sua crença na natureza transgressiva das suas atividades -, deixando de ver que eles permanecem totalmente dentro da órbita da autoridade. Ao invés de colocar em risco a identidade simbólica dos sujeitos – e, portanto, ir além dos limites da autoridade simbólica -, essas ações reafirmam essa identidade – e, assim, reafirmam essa autoridade também.


Referências:

  1. Estou em dívida com Hilary Neroni por esta discussão sobre o massacre de Columbine.
  2. Talvez seja emblemático, por parte do presidente Bill Clinton, sua vinculação da violência tanto à disponibilidade de armas quanto à decadência moral na cultura.
  3. Ironicamente, a primeira proposta de lei subsequente ao massacre de Columbine exigia travas de segurança em pistolas para a segurança de crianças. Tais travas de segurança, embora indubitavelmente eficazes para evitar que crianças pequenas disparassem armas, não teriam feito nada para impedir o que aconteceu em Columbine. O fato dos membros do Congresso escolherem começar com esse enfoque particular, apesar de seu status tangencial em relação a Columbine, revela a crença generalizada de que o que é necessário é mais autoridade. O bloqueio de segurança para crianças é o correlato objetivo dessa autoridade.
  4. Jacques Lacan, “Aggressiveness in Psychoanalysis,” in Écrits: A Selection, trans. Bruce Fink (New York: Norton, 2002), 25.
  5. Durante o período do tiroteio, eu estava dando um seminário de pós-graduação sobre a influência de Hegel em teóricos subsequentes, e estávamos no meio da leitura de Os Condenados da Terra, de Frantz Fanon. Naquela situação sobredeterminada, os alunos da turma se sentiram fortemente tentados a interpretar Columbine à luz da luta pelo reconhecimento, vendo o tiroteio em si como o resultado da recusa dos estudantes populares em reconhecer os membros da Trench Coat Mafia, ou como um ato da máfia colonizada libertando-se, através da violência, do jugo do colonizador.

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