Sociedade Deimofágica

Por Rick Afonso-Rocha*

As pessoas gostam da ideia de que o amor faz o mundo girar… não faz. Você não tranca as portas à noite porque ama o próximo, você trava com aço reforçado porque tem medo do próximo. O medo é ordem. O medo é controle. O medo é segurança. O medo é ficção.[…] O medo é o produto da imaginação. É inventado na mente. A mente pode sonhar e pensar em qualquer coisa. Você ama o medo. Você ama o horror. Você paga por um par de óculos tridimensionais e pipoca por uma hora e meia de ansiedade. Algo na Terra que faz as pessoas pensarem é a ideia de que pode acabar a qualquer momento. O medo não tem fim. O medo é ilimitado. O medo prospera e se alimenta de si mesmo.

Mr. World, deus da globalização, personagem da série Deuses Americanos (cena inicial T2:E8).

Sociedade disciplinar, sociedade punitiva, sociedade de controle, sociedade regulamentar, sociedade da morte, sociedade farmacopornográfica, sociedade do espetáculo, sociedade do cansaço, sociedade antropoêmica, sociedade antropofágica, sociedade pornográfica, sociedade da memória, sociedade do medo, sociedade autofágica…

Alguns desses conceitos partem de uma perspectiva tipológica. Visam, com isso, a descrever o modelo societário vigente em dada época. O tipo de sociedade em primazia em determinado contexto sócio-histórico pressupõe um princípio de regularidade hermética – sem contradições – fundador de um modelo de sociedade imaginariamente coeso, uno, evidente, homogêneo, em dominância radical; impossibilitando, necessariamente, a percepção e descrição de outros modelos societários, ainda que dominados. Tal perspectiva funda-se no imperativo de continuidade e na episteme da superação, a partir de uma atitude empirista e positivista da história.

Diferente do modelo tipológico de sociedade, que pressuporia a necessária superação entre tipos distintos de sociedades em dada época, outros dos conceitos citados fundamentam-se na descontinuidade e na episteme da polivalência, de modo a levar em consideração os processos de dominância e sobredeterminância entre distintas formações sociais (ALTHUSSER, 1979), bem como suas contradições e coexistências. Neste caso, uma formação social não superaria a outra, mas estabeleceria, com as demais, complexas relações. Do tipo de sociedade à formação social.

Ao revés de tipos homogêneos, haveria, então, efeitos-sociedades dominantes e efeitos dominados – penso na reflexão althusseriana (2008) sobre a existência de, pelo menos, dois modos de produção em dada formação social, um modo de produção dominante, outro, dominado. Portanto, não se falaria, por exemplo, de um tipo de sociedade necropolítica, mas de uma efeito-sociedade dominantemente necropolítica, isto é, uma imagem de sociedade cujo paradigma de atualização, diferenciação e integralização das operações de poder, seria a necropolítica. Talvez, poderíamos falar em um efeito-sociedade necrofágica – vide a reflexão de Sayak Valencia (2020) sobre o capitalismo gore. Nessa mesma “sociedade”, haveria outros efeitos dominados. A determinância de um pode ser, inclusive, a condição de dominação do outro.

O caráter de “efeito” está relacionado com as formas pelas quais o poder se manifesta em dadas condições sócio-históricas, de modo a formatar e conformar determinadas posições subjetivas, ou seja, o efeito diz respeito aos paradigmas de poder, a exemplo da biopolítica, necropolítica, deimopolítica, nosopolítica etc.: “Paradigma aqui é tomado como forma de exercício do poder. Etimologicamente, aponta para os sentidos de ato, modelo, exemplo, padrão. Também aparecem derivações semânticas como mostrar, pôr-se em relação a.” (AFONSO-ROCHA, 2021b, p. 152). O paradigma de poder estabelece uma confluência com os processos de assujeitamento, pelos quais a forma-sujeito – para usar uma terminologia marxista comum a Althusser, Edelman, Pachukanis, Pêcheux e outros, especificamente Anselm Jappe (2021) – comparece como o modelo com o qual os indivíduos são colocados em relação à imagem e semelhança do Uno; nas sociedades mercantis, o sujeito como produto da socialização do valor: “A expressão ‘forma-sujeito’ indica uma forma a priori – mas limitada a uma fase histórica – na qual todo comportamento e toda consciência devem ‘se moldar’ para que o indivíduo seja reconhecido como um ‘sujeito’.” (JAPPE, 2021, p. 34).

O sujeito, portanto, não é uma existência biopsíquica, mas uma experiência histórica que emergiu junto ao trabalho, subordinado, assim, à lógica mercantil. Logo, somos levados a concordar que “Na sociedade em que domina o fetichismo da mercadoria não pode haver um verdadeiro sujeito humano: é o valor […] que constitui o verdadeiro sujeito. Os ‘sujeitos’ humanos são arrastados por ele, são seus executantes e ‘funcionários’ – ‘sujeitos’ do sujeito automático.” (JAPPE, 2021, p. 35). A expressão sujeito humano produz, assim, uma adjetivação imprópria, visto que o indivíduo é sujeito a, sujeito pelo e não sujeito de ou sujeito com. Sujeito ao Sujeito automático, sujeito ao valor. O indivíduo comparece como uma expressão possível da forma-sujeito. Isso porque cada paradigma de poder é responsável pela atualização, integralização e diferenciação de determinados efeitos-sociedades, isto é, de certos enquadramentos no eixo saber-poder que produzem condições específicas de reconhecimento de dada subjetividade, bem como regulamenta e estrutura suas regras de funcionamento.

O efeito-sociedade faz, portanto, intervirem as condições materiais de manifestação do poder. A existência de um efeito societário não está, necessariamente, condicionada a sua atuação como dominante ou dominado. Assim, o paradigma de poder denominado necropolítica (MBEMBE, 2018) atualizaria, diferenciaria e integraria hegemonicamente[1] um efeito-sociedade da morte, seja esse efeito localizável regional ou globalmente em dada formação social; a anatomopolítica (FOUCAULT, 2017) atualizaria, diferenciaria e integraria um efeito-sociedade disciplinar; a biopolítica (FOUCAULT, 2017), um efeito-sociedade de controle (DELEUZE, 1992); a farmacopolítica (PRECIADO, 2018) e a nosopolítica (FOUCAULT, 1984), um efeito-sociedade farmacopornográfica; a psicopolítica (HAN, 2018), um efeito-sociedade do cansaço; a noopolítica (LAZZARATO, 2006), um efeito-sociedade do pensamento, da memória; a deimopolítica[2], um efeito-sociedade deimofágica (AFONSO-ROCHA, 2021b), um efeito-sociedade do medo (BUDE, 2017).

Ainda é preciso considerar que há atualizações, diferenciações e integralizações subsidiárias e interseccionadas entre os efeitos e paradigmas. Há atualizações, diferenciações e integralizações disformes, heterogêneas, impróprias, deslocadas. O diagrama do poder se movimenta, contorna-se, deforma-se para capturar-nos. Isso porque há contradições desde a infraestrutura.

Parafraseando Althusser (1979) – ainda que impropriamente e com licença interpretativa, correndo o saboreável risco de amputar seu pensamento –, as contradições de um efeito-sociedade sempre serão sobredeterminadas. Logo, devemos pensar os efeitos como resultantes de encontros, da aleatoriedade, das contradições e de suas particularidades. Não há efeito-sociedade prévio ou ontológico. É sempre histórico. O efeito-sociedade resulta do encontro, da sujeição, da dominação, da resistência, da exploração, da guerra, das lutas de classes e de seus atravessamentos outros (gênero, raça, sexo…).

A dominância de um dado efeito-sociedade deve ser tomada circunstancial e contingencialmente. Um efeito pode ser dominante em relação a outro(s), ao passo que, igualmente, poderá ser objeto de dominação por outro(s). Disso resulta não haver mais do que um efeito-sociedade circunstancialmente dominante. Talvez pudéssemos falar em um efeito-sociedade sobredeterminante. Isto é, haveria um efeito-sociedade que determinaria, em última instância, qual ou quais dos outros exerceria(m) dominância em dada formação histórica e em dada formação social.

O conceito de formação social, de Althusser (1985), é interessante para pensar essas relações paradigmáticas entre os distintos efeitos-sociedades, suas particularidades, suas contradições e suas intercorrelações. Uma formação social é, tal qual a leio, um conjunto denso, contraditório e complexo de relações entre efeitos-sociedades (o enquadramento societário é posterior, um efeito das relações de poder).[3] A formação social resulta do modo de produção dominante numa estrutura social historicamente determinada, de maneira, inclusive, a comportar a existências de formações sociais anteriores à forma de produção dominante ou, pelo menos, elementos dessas formações dominadas. O efeito-sociedade está, assim, intrinsecamente ligado, ou melhor, condicionado às relações de trabalho, à economia política, às relações de classe. Por exemplo, não há necropolítica que não seja um efeito do capitalismo, visto que o efeito-sociedade necrofágica tem sua determinância sobredeterminada pela forma a priori autofágica e essa emerge do limite interno da (re)produção capitalista. Caso desprezemos isso, tomaremos a necropolítica apenas como um paradigma de poder, desconsiderando as relações materiais que está mantém com os modos de produção dominante e dominado em dada formação histórica. Logo, se levarmos em consideração as relações materiais que condicionam os diferentes exercícios do poder, o efeito-sociedade de morte comparece como um efeito-sociedade atualizado por um paradigma específico, a necropolítica, estando essa última atrelada às relações materiais de exploração.

Embora uma “sociedade”, agora qualificada como necropolítica, por exemplo, aqui pensada desde a socialização do valor, não apresente alterações substanciais em seus traços determinantes (narcisismo e fetichismo) – isto é, em sua forma a priori, pois estamos diante de uma derivação da “sociedade mercantil”, há mudanças em sua expressão histórica, mudanças que reclamaram tal qualificação, anteriormente inexistente, de modo que a subjetividade que emergirá em seu enquadramento, além dos traços determinantes, também será atravessada por traços outros, traços evocados pelas transformações experienciadas em sua forma histórica. No exemplo, pelo traço da administração das zonas de morte. Logo, o efeito-sociedade necropolítica consiste na conformação da morte como paradigma político (forma histórica) assentado na forma a priori mercantil ou autofágica.

Dessa maneira, considerando a determinação da forma a priori, teríamos as formações sociais atreladas aos seus determinados modos de produção. Assim, vemos falar, ainda que com certa imprecisão teórica, em sociedade capitalista ou mercantil, sociedade feudal, sociedade escravagista, sociedade de transição. Prefiro: formação social em que domina o modo de produção capitalista, socialista ou feudal, por exemplo. As formações sociais são percebidas desde a ordem das representações coletivas conformadas pela necessidade de reprodução das condições de produção do modo de produção dominante. Temos, com isso, aquilo que chamei anteriormente de efeito-sociedade, tal qual podemos citar: efeito-sociedade de morte, disciplinar, de controle, de memória, farmacopornográfica, deimofágica. Aqui estamos na ordem da ideologia. Tais efeitos são necessariamente colocados em jogo desde as condições materiais da reprodução do modo de produção dominante por meio de um engenhoso modo de representação a ele subordinado. Por fim, se considerarmos apenas a dinâmica das relações de poder, desprezando todo o condicionamento material do modo de produção, bem como seu condicionamento ideológico pelo modo de representação, temos os paradigmas de poder, a exemplo da farmacopolítica, deimopolítica, psicopolítica. Vez ou outra os paradigmas são tomados equivocadamente, penso eu, como tipos de sociedade: sociedade biopolítica, sociedade necropolítica etc., desprezando, além das condições materiais, as contradições e heterogeneidades das formações sociais.

Deimofagia: alimentar-se do pânico

A partir da perspectiva descontinuísta e materialista traçada sobre as relações entre paradigma, efeito-sociedade, formação social e modo de produção/representação, busco pensar o efeito-sociedade deimofágica. Isso significa pensar o efeito-sociedade produzido nas e pelas malhas do poder em relação à gestão capitalista do pânico pela mobilização da tríade medo-esperança-terror (aqui considerados afetos impulsionadores do político). Faz-se aqui necessário destacar que aquilo que podemos enquadrar como sociedade, que podemos ler como sociedade, decorre de um enquadramento normativo dominante, de modo que a sociedade é, em si, um efeito do poder, um efeito das relações materiais de produção. Esse é o pressuposto angular dessa análise.

Deimofágico é um neologismo composto pela aglutinação de dois morfemas: Deimos[4] + fagia. Na mitologia grega, Deimos é o deus do Terror – filho de Ares, deus da Guerra, e Afrodite, deusa do Amor. Nascido da Guerra e do Amor, Deimos representa a personificação do pavor, irmão e companheiro de luta de Fobos, o deus do Medo, irmão de Harmonia, deusa da esperança e da paz. Na Teogonia, de Hesíodo, temos: “Citeréia [Afrodite] pariu Pavor (Deimos) e Temor [Fobos] terríveis que tumultuam os densos renques de guerreiros com Ares destrói fortes no horrendo combate e Harmonia que o soberbo Cadmo desposou.” (2007, p. 153). A depender da tradução e da narração, Deimos aparece como deus do Pavor ou do Terror. Já Fobos aparece como deus do Medo ou do Temor, Harmonia aparece como personificação da Paz e/ou da Esperança: “Envergonhada, Afrodite fugiu para Chipre e Ares para a Trácia. Desses amores nasceram Fobos (o medo), Deimos (o terror) e Harmonia, que foi mais tarde mulher de Cadmo, rei de Tebas.” (BRANDÃO, 1986, p. 217).

A relação entre os irmãos é experienciada a partir da relação que eles mantêm com seu pai, Ares; Fobos e Deimos acompanham Ares, em sua administração dos estados de guerra: “Enquanto Fobos se responsabiliza por causar o medo no coração dos seus inimigøs[5] de forma individual, Deimos o generaliza, espalhando-o, de modo a promover […] [um estado de pânico perpétuo]. (AFONSO-ROCHA, 2021b, p. 151). Contudo, não podemos negligenciar a participação de Harmonia na administração da guerra e na criação do estado de pânico. A guerra é gerenciada por Ares junto a seus três filhos. A harmonia como estado virtual mobilizado pela esperança. Juntos representam a personificação do medo da morte em batalha. Juntos apontam para a administração do pânico, representam a administração do estado de pânico permanente pela gestão do amor à guerra. Na mitologia grega, Deimos e seus irmãos são uma espécie de seres, a quem se denomina daemon – deuses que personificam aspectos, emoções, estados e afetos da natureza humana: Loucura, Ira, Velhice, Medo, Terror etc.

Se Fobos personifica o medo individual, Deimos representa o medo estrutural (Terror/Pavor) e coletivo da morte, minunciosamente produzido para mobilizar os afetos dos guerreiros em batalha; enquanto Harmonia conclama a esperança daqueles que se lançam, ou melhor, que são lançados nas batalhas. Trata-se, portanto, de pensar a subjetividade mercantil pela administração política dos afetos, isto é, desde as condições “[…] psico-emotivas vividas pelo sujeito enquanto ele enfrenta as oposições da vida: temor, apreensão, medo que o prepara à propensão de uma nova harmonia.” (SIMEONI, 2016, online).

Dessa articulação, surge o pânico. É o pânico que tanto serve para amedrontar o exército inimigø quanto para produzir a esperança da catarse pela superação da ameaça entre os amigos, de modo a re-animar as ações necessárias à eliminação daqueles que supostamente causariam medo. Diante da morte iminente, diante do medo de ter suas terras invadidas, saqueadas, os guerreiros são chamados ao sacrifício. Para proporcionar a vida da família, da comunidade e da nação, é preciso entregar tudo, é preciso colocar-se sem medo diante da morte.

Deimos reclama a coragem da morte, a coragem de matar o outro em nome da vida e a coragem de morrer na luta pela vida. É um estímulo ao encorajamento, um estímulo existencial à vida bélica. Uma política mortífera de comoção e esperança impulsionada pelo medo: medo do outro, medo da morte, medo da destruição. Uma eterna reatualização da dialética do senhor e do escravo. Medo que impõe o sacrifício radical da vida. Gozar com a morte do outro significa comemorar a “nossa” vida. A morte do outro como esperança. Para “nossa” sobrevivência, seria preciso entregar-se ao risco, ainda que imaginário, da morte, seria preciso colocar-se à disposição afetiva de aniquilar a ameaça a todo custo, ao custo da própria vida, da própria liberdade.

fagia é um afixo que expressa o sentido de alimentar-se de, diz respeito, portanto, ao processo de nutrição. Aparece também associado ao canibalismo. Comumente é significado por “devorar”. Logo, Deimofagia: pânico + devorar. Deimofágica é a imagem da sociedade que se alimenta do pânico, que produz o outro (efeito de “eles”) como ameaça permanente (medo) – produzindo também os sujeitos amedrontados, aqueles supostamente ameaçados (efeito de “nós”), aqueles que estariam perdendo a guerra fantasmática, aqueles que devem estar dispostos a morrer para aniquilar as ameaças (esperança).

Deimofágico é o efeito-sociedade que produz o pânico como fundamento da autoridade, visando a mobilizar, com o medo ao/do outro, a esperança – daqueles produzidos como ameaçados – no Estado burguês e no capitalismo, visto que o Estado é estruturalmente subordinado à esfera do valor, à lógica mercantil (JAPPE, 2021). Deimofágico é um efeito-sociedade que emerge pela deimopolítica, ou seja, deimofágico é um efeito caracterizado pela gestão da tríade medo-esperança-terror; efeito marcado pela socialização pelo pânico, de que emerge o sujeito como produto das políticas de medo-esperança-terror. Deimofágico é o efeito do capitalismo que desencadeia e justifica a necessidade do apelo fascista[6] como mecanismo de manutenção da ordem ne(cr)oliberal deimocrática. Deimofágica é a fantasia capitalista do pânico: “[…] aquele perverso, simiesco duende que pula sobre as costas do homem quando ele carrega justamente o fardo mais pesado.” (NIETZSCHE, 2000, p. 163). Com isso, o estado democrático de direito se desvela como um estado deimofágico, um estado subordinado à gestão do pânico como estratégia de naturalização e aceitação da exploração mercantil.

A produção do pânico, pela gestão da tríade medo-esperança-terror, garante a reprodução das condições de produção do capitalismo. O gerenciamento do outro como inimigø sublima os efeitos da exploração capitalista sobre os corpos, tornando o sólido aparato de extração do mais-valor em uma imperceptível engrenagem gasosa econômica: o funcionamento naturalizado do mercado. Nessa lógica, não haveria exploração, mas apenas o mero funcionamento da economia. O medo do outro é uma das condições estruturantes da forma-mercadoria, pois, ao sublimar os efeitos da dominação capitalista sobre os corpos, o medo garante o fetichismo da mercadoria, a servidão dos indivíduos às mercadorias, isto é, o medo possibilita a socialidade pelo valor (JAPPE, 2021). Ao produzir o outro como ameaça, desvia-se as atenções do processo de trabalho, da exploração burguesa, dos processos de sujeição, da gestão das guerras, do gerenciamento do fascismo pelo Estado burguês….

O Estado capitalista precisa produzir o outro como inimigø para que ele mesmo não seja percebido como inimigø da classe operária, como inimigø dos sujeitos subalternizados. O efeito-sociedade deimofágica tem no medo uma das principais condições de reprodução da lógica mercantil. A gestão do medo insere-se na reprodução do modo de produção capitalista, ou seja, insere-se no funcionamento do aparato ideológico (ALTHUSSER, 2008). Sobre isso, devemos ter em conta que Silvia Federici (2019) relacionou a produção do medo às “bruxas” como condição essencial para a acumulação primitiva do capitalismo, visto que a gestão do medo às mulheres teria moldado a estrutura nuclear da família reprodutiva e monogâmica, afinal “A sociedade capitalista, baseada no trabalho e no valor, é também uma sociedade patriarcal – em sua essência, e não só por acidente. Historicamente, a produção do valor é um assunto masculino.” (JAPPE, 2021, p. 310). A distribuição do reconhecimento de humanidade está intrinsecamente condicionada a esfera do valor e do não valor. Dessa forma, o estatuto de sujeito e de não sujeito deve ser pensado e tensionado desde a crítica do valor (JAPPE, 2021).

O capitalismo teve e tem no pânico o mais essencial dos combustíveis para a (re)produção das suas condições de existência, de permanência, de legitimidade, de autoridade, de transformação. É o pânico, aqui tomado pelo encadeamento medo-esperança-terror, que produz a eternidade do motor do capitalismo, que potencializa que a sua autodestruição impulsione sua pretensa eternidade, sua incansável e perpétua reprodução.

A máquina, para continuar devorando mundos (KRENAK, 2020), precisa produzir determinados sujeitos como objeto identificável das frustrações sociais: o bode expiratório, conforme reflexão de René Girard (2020). Produzem-se, assim, sujeitos cujas existências devem, necessariamente, provocar o medo na sociedade, devem causar pânico, cujas existências devem despertar o ódio, pois esses sujeitos são responsabilizados pelas mazelas sociais, pela destruição e pelo caos, administrados e gerados pelo capitalismo, suscitando, com essa transferência afetiva, a esperança no sistema, a esperança na autoridade ou no líder com a força necessária para eliminar as ditas ameaças. Por isso, o capitalismo se estrutura como uma religião (BENJAMIN, 2013), gerenciando a culpa e administrando também os rituais de expiação, “Precisamente porque tende, com todas as suas forças, não para a redenção, mas para a culpa, […] para o desespero, o capitalismo como religião não tem em vista a transformação do mundo, mas a destruição do mesmo.” (AGAMBEN, 2007, p. 70).

Para contextualizar o debate, vejamos como Sara Wagner York (2020) problematiza a inimigalização do corpo trans na “sociedade deimofágica”:

[…] diante de colegas profissionais da educação, sou um exemplo de profissional que ‘dá problemas’, por apresentar muitas questões que problematizam o contexto hegemônico escolar, por causar desconforto em muitos grupos, por questionar a normatividade e ser alguém que ‘estaria sempre pronta para o ataque’, quando, na verdade, face a um CIStema que opera em outra mão, tudo passa a ser muito ofensivo. Insisto em dizer, muitas vezes, que sou avó, talvez por que o meu maior medo seja reviver com meu neto o dia que encontrei meu filho no aeroporto, depois de quinze longos anos de saudade e dor, um abraço de pai e filho e um comentário em voz alta: ‘esses viado não respeitam ninguém!’. Pai em um momento – aos 16 anos – e avó, com alguma experiência sobre a vida e nossos processos de escolhas e de narrar a nós mesmas neste momento. Quero sair e passear com meu neto, sem precisar me preocupar se serei humilhada mais uma vez, e sempre publicamente, e sem apoio de qualquer um que assista. Quero ser (re)conhecida, talvez, por medo de nunca poder caminhar junto à família, que posso ter somente agora. (YORK, 2020, p. 39-40).

É nesse sentido que, como relatado e analisado por Sara York (2020), seu corpo emerge como amedrontador, um corpo qualificado como “aquele que causa problemas”, uma existência desde sempre marcada como bélica, “que ataca”; sendo, assim, enquadrada (BUTLER, 2018) como uma corporalidade não merecedora de compaixão, de afetos, um corpo impossibilitado de receber afago, um corpo cuja existência, por “representar um risco”, deve ser mutilada, violentada e eliminada. Há uma inversão da posição de fragilidade.

Diante da corporalidade outra, da corporalidade trans, indígena, negra ou quilombola, por exemplo, o privilégio branco, cis, hétero, de classe consegue afetar, consegue produzir emoções, compaixão, mesmo quando os sujeitos que emergem desses significantes são os agentes de crimes cruéis e violentos; consegue potencializar o gozo do auditório que vibra e fica com tesão ao ser noticiado dos assassinatos daquelas corporalidades produzidas como ameaçadoras.

Nesse sentido, deimofágico é o efeito societário que se move de modo a produzir um extremo sentimento de vitimismo entre os sujeitos constituídos pelos significantes de maiores privilégios: homem, cis, hétero, cristão, urbano, magro, branco, urbano, oriundo das classes sociais mais abastadas… Por ser um efeito-sociedade, a deimofagia se insere na ordem da reprodução ideológica das condições materiais instanciadoras do modo de produção dominante. Esses sujeitos devem ser, assim, percebidos e reconhecidos como sujeitos ameaçados. Logo, devido à metonímia social, a “sociedade”, essa ficção patrocinada pela burguesia, estaria em perigo, uma vez que os demais sujeitos são afetados de modo a se perceberem como parte de uma mesma totalidade em iguais condições, já que as relações sociais capitalistas dependem da ilusão da igualdade jurídica, pois a forma-sujeito responde à forma-mercadoria. A ameaça aos sujeitos produzidos como universais corresponde, então, à ameaça à globalidade social, pois é, em alguma medida, a ameaça à forma-sujeito, ameaça à socialidade pelo valor, pelo contrato.

Nessa lógica, o Estado burguês desaparece do quadrante de exploração, reaparecendo como agente na luta contra as ameaças pelo ponto de vista dos amedrontados e também como agente de reconhecimento da vulnerabilidade daqueles produzidos como amedrontadores que, paradoxalmente, são levados a recorrerem ao Estado burguês em busca de proteção. Paradoxalmente, pois recorrem à instituição que, se não os produz diretamente como ameaças, certamente tem participação qualificada nessa produção. O efeito-sociedade deimofágica gerencia o pânico, produzindo determinados sujeitos como ameaçadores, ao passo que produz igualmente um universalismo vitimista (branco, cis, hétero, burguês, cristão…) como forma de sublimar a exploração capitalista, deslocando os anseios das lutas de classes. Um dos efeitos da produção desse vitimismo é a mobilização de uma imediata proteção daqueles que supostamente estão em ameaça ou em ataque. A condição de vítima acaba por demandar e acionar uma autoridade em sua proteção.

É nesse sentido que o (cis)sexismo, o racismo e o nacionalismo, por exemplo, são constitutivos do encadeamento exploratório do modo de produção capitalista cuja determinância sobre os já sempre-sujeitos é obliterada pelo seu modo de representação. Não podendo, portanto, tais fenômenos serem restringidos a uma suposta fragmentação da “luta de classes” ou a uma explicação simplista de como tais lutas serviriam à neutralização dos anseios revolucionários; o que comprovaria, nessa mutilada lógica, a necessidade de superá-las em nome de uma luta maior ou de tomá-las como ontologicamente lutas liberais. Quando, em verdade, tais fenômenos são constitutivos do englobamento capitalístico e, portanto, são constitutivos da amplitude e complexidade das lutas de classes. A luta contra a exploração capitalista não deve, acredito eu, afirmar uma suposta superioridade da luta de classe econômica, mas sim compreender a indissociabilidade entre as lutas política, ideológica e econômica de classe, reconhecendo, portanto, a complexidade da “sociedade mercantil” desde seu assentamento em um modo de produção autodestrutivo (modo de destruição), cuja visibilidade é tornada opaca pelo funcionamento de seu modo de representação.

Isso significa afirmar, não uma pretensiosa interseccionalidade como se fosse possível separar classe, gênero, sexo e raça equacionando a posteriores seus efeitos, mas sim o encadeamento constitutivo desses fenômenos no modo de produção capitalista. Não há classe sem atravessamento constitutivo de gênero, sexo e raça. Ainda que reconheçamos a primazia da classe, é impossível sustentarmos uma dimensão pura da classe na história. A classe em estado puro é uma invenção gestada e administrada pela imaginação capitalista, inexistente, portanto, na história. A classe nunca se dissipou como instância pura. Onde há classe, há contradições de gênero, de raça, de sexo… Se há guerras de subjetividades, precisamos reconhecer que há uma continuidade intrínseca entre a acumulação primitiva e essas guerras, pois, na acumulação, “[…] já se delineia uma divisão internacional do trabalho com hierarquias que são de ‘classe’ por serem de gênero, raça e civilização.” (LAZZARATO; ALLIEZ, 2021, p. 28).

Devemos considerar que as guerras de subjetividades são gerenciadas pelo capital. Se não há capitalismo sem guerra e não há guerra sem mobilização do pânico, não há capitalismo sem gestão e exploração do medo, do terror e da esperança. Dito isso, poderíamos afirmar que o capitalismo é a guerra orquestrada e continuada por meios racionalizados. Ou melhor, o capitalismo é a guerra continuada como racionalidade política, é a guerra continuada pela gestão do amor à destruição.

Não é de estranhar que após a dissolução da URSS, em 1991, houve um forte movimento capitalista para apagar a memória da revolução do imaginário social. Com isso, alguns intelectuais da burguesia puderam se beneficiar com um terreno fértil para a germinação da teoria da terceira via. Conforme esses autores, a exemplo de Ulrich Beck (2010) e Anthony Giddens (1999),[7] estaríamos passando de uma sociedade de inimigos para uma sociedade de riscos, isto é, uma sociedade sem inimigos. Uma sociedade pragmática gerida por gestores e empreendedores. Contraditoriamente, é a partir do início do século XXI, época da tão alarmada e festejada democracia cosmopolita e da sociedade de governança, que o modo de produção capitalista levará a produção do inimigo às últimas consequências, fazendo da gestão da guerra a principal força reprodutora das suas condições de produção. Uma “sociedade” que depende da exploração de inimigos fantasmáticos (concretizáveis com uma frequência cada vez mais assustadora) e que igualmente depende do escamoteamento dessa mesma produção. Por isso, nossa época histórica pode ser definida como a época do pragmatismo político: uma época marcada pela gestão dos riscos que impõe o deslocamento do debate revolucionário para o debate administrativo; uma época marcada pela sublimação da inimigalidade que impossibilita perceber que o capitalismo é uma máquina de produzir inimigos, explorando essa produção como força reprodutora e que impossibilita a  percepção pelas classes exploradas de que o capitalismo e a burguesia são os inimigos a serem combatidos; uma época marcada pela limitação da imaginação política; uma época marcada pela impossibilidade imaginativa da revolução…

Conforme discutimos, o gerenciamento capitalista do pânico produz, como efeito dos funcionamentos supracitados, a tentativa de impossibilitar as identificações anticapitalistas ou as desidentificações com a lógica mercantil. Isso porque tal gestão investe, primeiro, na impossibilidade de construção de qualquer universalismo concreto, pois produz o vitimismo universalista burguês que é, então, refletido de forma invertida na “luta revolucionária”. Tal universalismo abstrato faz-nos duvidar e questionar qualquer tentativa de construção de um agenciamento coletivo. Segundo, investe-se na fragmentação da identidade dos explorados. O “sujeito coletivo”, normalmente construído como decalque do universalismo burguês, não comporta as particularidades das guerras de subjetividades, visto que tal sujeito emerge de uma limitada leitura da tradição marxista.

A pretexto de apontarem a fragmentação ocasionada pelas lutas ditas, pejorativamente, como identitárias, os pretensos construtores da luta revolucionária investem, com tal prática, na fragmentação que pensam denunciar. O voluntarismo dos proletários intelectualizados da classe média deixa escapar a complexa gestão capitalista dos afetos, especificamente manifestada na produção do estado de pânico como impulsionador da sua força, paradoxalmente, autodestrutiva e vital. Os messiânicos da revolução interpretam o efeito como causa, apontam o dedo para o espelho e não percebem que o que se visualiza é um mero reflexo, um buque invertido.

A estatização das práticas de guerra garante a ilusão da paz, a ilusão da ordem social. Mas não nos enganemos: há uma guerra perpétua dissimulada que é responsável pela vitalidade do laço social (adesão à ordem civil) e, consequentemente, das relações sociais de exploração. É o risco que o outro supostamente representa que garante, afiança e legitima a adesão à autoridade burguesa e também ao autoritarismo. A suposta ameaça mobiliza o corpo social em defesa da sociedade, da família, da nação, isto é, em defesa do Estado, da autoridade, do capitalismo, ainda que tal defesa seja radicalmente transmutada em defesa do desejo de morte, em defesa do fascismo. Paradoxalmente, a salvação do Estado – da pátria, do estado de direito – perpassa a coragem de lançar-se ao fascismo, dependendo, em situações ditas extremadas, da suspensão do Estado de direito, para trazer uma reflexão de Giorgio Agamben (2015).

Produz-se o fundamento da necessidade da deimocracia liberal, inclusive entre aqueles fabricados como ameaças, visto que só a deimocracia impediria o avanço do fascismo ou seria responsável pelo seu retrocesso. Quando, em verdade, o fascismo é um mecanismo de sobrevida das ruínas estruturais da deimocracia burguesa. O fascismo faz reforçar o culto à deimocracia burguesa. Com isso, produz-se a necessidade do capitalismo, bem como sua eternidade condicional à própria existência da humanidade.

A deimopolítica trabalha para impossibilitar a compaixão, o remorso e a sensibilidade diante da dor daqueles produzidos como ameaças sociais. A deimopolítica desarticula a vergonha e faz ver a morte do outro como triunfo. Afinal, há um álibi moral: é possível gozar livremente com a morte do inimigø. O gozo, o triunfo e o prazer só são possíveis, porque aquele que se encontra morto ou violentado não é exatamente uma vida humana, mas é apenas uma bicha, uma mulher, uma travesti, um indígena, um negro, um quilombola, não é um de “nós”, não é um ser humano, pois não é um sujeito. Pelo contrário, sua existência representa uma ameaça à vida humana, à vida normal, à vida que merece ser vivida. Logo, sua eliminação pode ser lida como um triunfo. Sua morte pode ser comemorada. Uma morte que não merece luto. Uma morte que serve à canalização do desejo fascista: não há espaço para se envergonhar ou sentir-se moralmente perturbado diante do desejo, do gozo, do prazer diante da morte daquele produzido como ameaça. A deimopolítica enquadra a humanidade numa cadeia semântica subordinada à esfera do valor: sujeito = humano = homem = branco = cis = heterossexual = cristão

A reprodução do modo de produção capitalista é também garantida pela neutralização dos anseios revolucionários, pela construção do outro igualmente marginalizado e subalternizado como ameaça a ser eliminada, pela sublimação do ódio de classe, pela mobilização em defesa do Estado, pelo fortalecimento da ilusória igualdade jurídica que mascara a natureza de classe do Estado e das demais instituições burguesas, pela impossibilidade de construção de uma identidade universal concreta fundada na experiência da exploração de classe e atravessada constitutivamente pelas contradições raciais, étnicas, de gênero, de sexo etc.

Resta-nos refletir sobre o que fazermos diante da produção do pânico como alimento do capitalismo. Voltemos para o neologismo proposto: deimofagia. Gostaria de trazer outro sentido também reclamado por ele: fagia diz, igualmente, do excretar (FREIRE, 2020). Alimentar-se de x para excretar. Afinal, tudo que é comido é excretado. Fagia: comer + defecar, devorar + excretar. O excremento torna-se a finalidade não esperada do alimentar-se. De Deimofagia = pânico + devorar para Deimofagia = pânico + nutrir-se de x (para excretar). Do processo fágico algo sempre sobra, algo não é plenamente destruído ou absorvido. Algo perpassa todo o caminho da alimentação e é, posteriormente, expelido, excretado. Aquilo que é excretado, que, não absorvido, comparece e faz memória. Ainda que, efetivamente, já seja outra coisa, pois o rito alterou sua matéria. Alimenta-se, não apenas para sobreviver, mas também para excretar.

Aquilo que significa o perigo dos excluídos e que justificaria sua própria exclusão pode comparecer, então, como arma nas lutas anticapitalistas, de modo a reivindicar uma identidade coletiva de inimigø (identidade de não sujeito, emergindo da esfera do não valor), mobilizando o ódio como instrumento revolucionário, o ódio aos exploradores, o ódio à burguesia, ao Estado, ao capitalismo zumbi e sua insaciável fome.

A inimigalidade como universalidade concreta. Se eles nos produzem como inimigøs, devemos nos apropriar dessa identidade e colocá-la em jogo, devolvendo a produção da inimigalidade. Reconheçamos: temos um inimigo que precisa ser destruído: a burguesia. Nosso inimigo não é plástico ou virtual, é real e concreto. Reconheçamos que “Perante a regressão e a descivilização promovidas pelo capital, é preciso descolonizar [a imaginação] […] e reinventar a felicidade.” (JAPPE, 2021, p. 310).

[1] Um paradigma pode participar da atualização, diferenciação e integralização de outros efeitos-sociedades, assim como um efeito-sociedade também pode ser atualizado, integrado e diferenciado a partir da confluência entre outros paradigmas de poder.

[2] Com o neologismo “deimopolítica” (Deimos, deus grego do Terror), pretendo colocar em jogo a gestão do pânico como afeto estruturante e estruturado no/do modo de produção capitalista. Pânico que é produzido pela administração capitalista da política de medo, da política de terror e da política de esperança, visto que não há estado de pânico que não seja produzido pela exploração da esperança, do terror e do medo como seus afetos impulsionadores. Apontando, com isso, para a mobilização dos afetos coletivos em defesa da sociedade pela fabricação de inimigøs imaginários (ordem da representação capitalista/ideologia), ou seja, pela gestão da tríade medo-esperança-terror que faz o capital. Medo dos inimigøs. Esperança no Estado burguês, na democracia, no capitalismo (AFONSO-ROCHA, 2021b). Terror como condição da socialidade democrática. O capitalismo como administração de zonas e estados de pânico permanente.

[3] Isso não significa que estou tomando o poder como determinante em última instância. Nem mesmo Foucault assim o concebeu, embora em suas análises, é preciso reconhecer, deu primazia ao político. O poder, ou melhor, as relações de poder, a microfísica do poder, em toda sua rede capilar, difusa, polivalente, são atravessadas e muitas vezes, condicionadas, pela exploração mercantil. Com essa afirmação, sinalizo que, com Foucault, entendo que o poder não pode ser reduzido à esfera econômica. Há, na instância política, certa autonomia relativa, sobredeterminada. diga-se, pela esfera econômica. Claro que o capital não deriva de determinadas relações de poder, como interpretam alguns foucaultianos; mas, igualmente, o poder não é um espelho da lógica do capital. Se ainda fosse um espelho, é preciso pontuar: a imagem refletida já é sempre uma outra, há distorções. O poder diz da esfera política, mas também de suas contradições e de seus atravessamentos pelas esferas ideológica e econômica. Pensar o político como absolutamente autônomo é reproduzir a fantasia democrática burguesa, que produz o imaginário de igualdade de interferência na estrutura do poder (uma pessoa = um voto), cujo efeito é deslocar e neutralizar a luta de classe, substituindo por uma política sem luta, sem dissenso, uma política sem classe. Embora o poder seja difuso, não seja centralizado, é igualmente direcionado. Há pressurização ideológica e econômica, que se estabilizam como relações hegemônicas de poder, funcionando como centro ilusórios, como locais imaginários de comando. Tal direcionamento acaba mascarando, como efeito, as instituições de atualização da ideologia dominante, pois produz centros imaginários, a exemplo do Estado – é preciso ressaltar: há eficácia do imaginário – que busca direcionar as ações dos grupos subalternizados contra pontos específicos dos aparelhos mercantis, de modo a deixar imperceptível o trabalhar ideológico de outras peças do aparelho burguês, neutralizando as lutas dos explorados. Um controle mercantil da luta antiburguesa. Nesse sentido, o que Foucault chama de dispositivos e tecnologias políticas são, acredito, um efeito dos aparatos mercantis percebidos desde a instância política. Foucault, por não tensionar as contradições resultantes dos atravessamentos pelo ideológico e pelo econômico, acaba deixando escapar o funcionamento da aparelhagem mercantil. Por não atrelar a dimensão política ao ideológico e ao econômico, a descrição política foucaultiana encontra um limite de atuação, pois ao não pensar o funcionamento ideológico e econômico, sua descrição não ultrapassa a localização do funcionamento estritamente político, como se tal fosse absolutamente autônomo.

[4] O termo deimo é pouco usual nos processos de formação de palavras no português e em outras línguas, como no espanhol e no inglês, inclusive por neologismo. Além de deimopolítica, deimocracia, que propus em 2019, e deimofagia, que agora proponho, só encontrei um outro conceito com este prefixo: deimografia, proposto por Cătălin Ghiţă (2011), em língua romena, para descrever a escrita literária que construiria, como efeito de recepção, cenários de terror, de medo e de pânico. Nesse sentido, o autor fala em uma prosa deimográfica romena. Em sua proposição, Cătălin Ghiţă evidencia o deus grego Deimos como personificação do medo da morte, do terror generalizado e também como o deus que representa o lado obscuro do amor, destacando sua origem: filho do Amor e da Guerra.

[5] O símbolo do vazio “ø” aponta para a plasticidade semântica da ameaça. No capitalismo, o inimigo é produzido e enquadrado em condições sociais e históricas. Não há um inimigo ontológico. Isso não significa que qualquer um pode figurar como ameaça. A história garante a condição de inimigalidade a alguns enquanto impede a outros. A produção do inimigo no capitalismo aponta para o sintoma de que é algo próprio a uma conjuntura, ou que numa se atualiza de uma maneira e não de outra.

[6] “Essa ressignificação do fascismo como fascismo/fasCISmo visa a demarcar as políticas sexuais e de gênero (aqui poderia se falar em ideologia de gênero fascista-deimocrática) que lhes são inerentes. Parece-me impossível dizer fascista ou fascismo sem enunciar a ordem cisgênera.” (AFONSO-ROCHA, 2021b, p. 30).

[7] Para uma análise da importância das obras desses autores na construção do pragmatismo político, ver Chantal Mouffe (2015).

Referências

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*Doutorando e mestre em Letras: Linguagens e Representações, pela Universidade Estadual de Santa Cruz (PPGL/UESC). Bacharel em direito (UESC) e advogada (OAB/BA). Bolsista FAPESB. Integrante do grupo de pesquisa O Espaço Biográfico no Horizonte da Literatura Homoerótica (GPBIOH), do Núcleo de Estudos Queer e Decoloniais da UFRPE (NuQueer) e do Grupo de Pesquisa Estudos Literários Contemporâneos: Fontes da Literatura de Jornal da UEFS. Colabora com o Grupo de Estudos Discursivos em Arte e Design (NEDAD/UFPR), com o Grupo de Estudos Discursivos da UESC (GED) e com o blog Resista! Observatório de Resistências Plurais.

Agradeço a André Mitidieri, Iago Moura, Isaías Carvalho e Maurício Beck, pelas ricas contribuições e sugestões provocativas. Os erros, os equívocos e as limitações deste texto são de minha responsabilidade, pela insistência em colocá-los em jogo.

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